As várias infâncias
INFÂNCIAS, SABERES E FAZERES
Marie Ange Bordas conta como cria livros colaborativos com crianças de comunidades tradicionais brasileiras – e o que descobrem juntas nesse processo.
Como é ser criança na beira do mar? E numa aldeia indígena? Que infâncias existem numa grande cidade? E em um contexto mais inserido na natureza? Quais são os fazeres e saberes dessas crianças? A artista, autora e mediadora cultural Marie Ange Bordas desenvolve, desde 2009, o projeto Tecendo Saberes, de criação colaborativa de livros infantis e material audiovisual em comunidades tradicionais brasileiras.
Dele resultaram os livros Histórias da Cazumbinha (com Meire Cazumbá, Cia das Letrinhas, 2010), Manual das crianças do Baixo Amazonas, Manual das crianças Huni Kui (Prêmio Petrobrás Cultural, 2015) e, ainda, o Manual da Criança Caiçara (Ed.Peirópolis, 2011). Nesta entrevista, ela conta um pouco de suas impressões após conviver por longos períodos com crianças quilombolas, caiçaras e indígenas de vários estados do Brasil.
Como funciona o Tecendo Saberes?
O projeto tem três momentos: o primeiro é o convívio diário nos lugares e a criação do conteúdo do livro, junto com as crianças, inclusive fotos e ilustrações. Ao serem estimuladas a lançar um novo olhar sobre sua realidade, as crianças tornam-se as protagonistas do levantamento dos saberes e fazeres de suas comunidades. Depois, com o livro impresso, eu volto e ele é lançado e distribuído no local de origem. Faço formações com os professores de cada lugar também para incentivá-los a incluir esta sabedoria local em suas aulas. No terceiro momento, o livro vem para a cidade, onde organizamos uma exposição, cineminha, teatro ilustrado, enfim, uma série de atividades. Eu me vejo nesse processo como uma artista-ponte, um mensageiro entre espaços e mundos. O projeto pretende construir pontes também entre as crianças e os mais velhos, que muitas vezes reclamam que as crianças não conhecem mais sua cultura. Mas esta ideia se desfaz rapidamente: é só sair andando por seu território e ouvi-las falar das árvores, dos animais, das especificidades culturais de forma orgânica, para constatar que sua identidade cultural está gravada na relação com o território e nos afetos. E elas não deixam de ser quilombolas ou caiçaras porque não sabem mais uma dança ou música específica.
Muitas vezes pergunto às crianças: o que tem de bacana aqui? E elas titubeiam ou dizem: “Não sei, não tem nada.”
Daí eu pergunto: “E se um marciano aparecesse aqui, o que ele veria de diferente? Será que ele faz xixi como vocês? Aí, pela brincadeira, o olhar para a particularidade desperta e a autopercepção às vezes calcificada se expande.
Minha escolha por criar livros com estes grupos é uma escolha política, para fazer com que essas crianças entrem nas escolas e livrarias do resto do país com sua sabedoria e não apenas como “objetos do estudo da diversidade brasileira”. Além de ter um status social agregado, o livro é também uma ferramenta de comunhão, de resgate e de preservação.
Você acha que existem muitas infâncias? Ou é possível distinguir um traço comum, único?
Acho que são várias infâncias e que essas classificações genéricas são, muitas vezes, heranças coloniais: crianças de comunidades tradicionais, crianças indígenas. Essas são classificações que ocorrem sempre a partir de uma visão eurocêntrica redutora do mundo, que toma suas construções e conceitos como verdade inicial. Nestes anos, tive várias experiências, com várias infâncias, de vários lugares. Se for citar uma característica comum, eu acho que é a curiosidade. Agora, cada sociedade e cada comunidade enxerga a infância e as crianças por diferentes óticas. Na cultura indígena, por exemplo, a criança faz parte da dinâmica social – inclusive de suas responsabilidades – muito cedo, ela não se diferencia tanto do adulto como aqui, na cidade, onde crianças são vistas como um agregado que a sociedade tem que cuidar. Às vezes, quando mostro para crianças daqui os vídeos das crianças da Amazônia, elas ficam muito chocadas: “Nossa, as crianças estão trabalhando!”. Na cultural rural, o que aqui seria chamado trabalho, tem outro sentido.
Como comparar a infância de uma criança num grande centro com a das crianças indígenas, caiçaras ou quilombolas com quem você conviveu?
Eu odeio esse tipo de comparação! Na verdade, acho que a grande diferença entre elas talvez seja a liberdade. Fiz um vídeo com as crianças de uma comunidade extrativista do baixo Amazonas, em Oriximiná, perguntando: “o que vocês acham que as crianças da cidade vão pensar do livro que produzimos?” Elas responderam: “Eles vão achar que a gente é muito sabido, porque sabe fazer muitas coisas e lá eles ficam no videogame, no celular o dia todo. Mas também vão pensar que somos muito atrasados, porque aqui não tem luz. Mas o importante é eles saberem que aqui na Amazônia não tem só floresta. Tem gente!”.
Fiz com o livro um circuito por várias bibliotecas públicas em São Paulo e em todos os locais, independentemente de faixa social, as crianças começavam dizendo: “Ah, é um pessoal pobre, né?”. Há uma associação direta entre os quilombolas, o negro e a pobreza, uma visão de que a vida rural é uma vida com menos. Aí, quando a atividade termina eles falam: “Nossa! Essas crianças são muito sabidas, sabem fazer arco e flecha, construir brinquedos!”. Esse é um dos grandes objetivos do trabalho: fazer as crianças de comunidades tradicionais entrarem pela porta da frente no mundo da cidade, com seus saberes e fazeres, como crianças muito sabidas. Falamos da vida em um lugar a partir da experiência dessas crianças. E elas são primeiro crianças, e depois brasileiras, paraenses, quilombolas ou caiçaras. Então, quando você pergunta a grande diferença, acho que é a maior liberdade e a relação íntima com seus territórios e com a natureza. Quem vive fora dos grandes centros talvez esteja um pouco mais protegido, de certo modo, de um mundo no qual a ideia de criança anda meio complicada…
Como assim?
Esse mundo da superproteção, no qual a vida social dos filhos está totalmente amarrada na vida social dos pais, em que as crianças ficam ocupadas o tempo inteiro. Eu trabalho muito com alfabetização visual, uso a fotografia como ferramenta de percepção do mundo. E quando você trabalha com crianças que estão mais perto da natureza, percebe que a criatividade delas é ‘encaixotada’ mais tarde. Por exemplo: quando você pede para uma criança daqui: “desenha uma árvore”, ela faz um tronco, uma copa e maçãs vermelhas. Numa aldeia, a variedade é muito maior: aparece um cacaueiro, um patuá, um açaizeiro… eles desenham as árvores e os peixes como eles são, em sua diversidade. Então, existe uma conexão e uma consciência do ambiente muito maior. Há mais espaço para ver, para observar. Na cidade, depois de uma certa idade (escolar geralmente) os desenhos não vêm de referências das coisas do mundo, mas de outros desenhos, da TV, do celular. Estão geralmente mediados por outras formas de comunicação.
Na cidade há uma ansiedade em garantir um futuro para as crianças e muito do que elas passam está ligado a essa expectativa. Como é nos outros lugares?
Estamos vivendo um momento muito complexo no planeta, tem paradigmas sendo quebrados o tempo todo. Falando em trabalho, por exemplo, as pessoas são do século 21, pensando com cabeça de século 20: “vou estudar, me formar, virar advogado”. Essa ideia da sociedade do desempenho é de onde surge também essa criança com agenda de executivo. Acontece que milhares de trabalhos não vão mais existir, não vai mais ter emprego. Essa, infelizmente, é uma ideia neoliberal muito bem concebida, que se apropriou de corações e almas: somos escravos de nós mesmos nessa sociedade do desempenho. E acho que um dos instrumentos principais dessa ideia homogênea do mundo foi a educação. Uma educação colonial, militar, baseada no desempenho, no progresso, na propagação de uma ideia de nação. Me parece um dos grandes males da atualidade: achar que a construção do futuro do seu filho esteja ligada a uma padronização da educação. Porque esse modelo não faz nada para conectar o indivíduo ao ambiente onde vive, e muitas vezes não tem nada a ver com sua cultura. Vi isso em campos de refugiados, na África, onde as pessoas vão passar 10, 20 anos, com pouquíssimas perspectivas: ainda assim o sistema escolar diz que eles tem que se formar, virar advogados ou programadores. Ninguém quer voltar para o Sudão e trabalhar com rebanhos, que é o centro de sua economia. O sistema educacional acaba desligando as crianças de sua realidade e criando uma realidade paralela.
Qual seria o manual da criança de um grande centro urbano? Seria um manual de sobrevivência talvez?
Os manuais que fiz têm esse nome mais no sentido de almanaque, não tinha pensado no manual como sobrevivência, embora eles cataloguem os saberes e fazeres e, nesse sentido, ajudem a preservar essas culturas.
O meu trabalho na cidade também seria esse de articular mundos, expandir horizontes, aguçar a observação e o pensamento crítico, porque isso faz falta a todos, independente de classe e lugar onde se vive. Como seria se as crianças me devolvessem a pergunta: o que nos define na cidade? Qual é a nossa comunidade? Fico curiosa para ver o que sairia dessa investigação por aqui…
Fonte: https://criancaenatureza.org.br/noticias/infancias-saberes-e-fazeres/?fbclid=IwAR2wIg7e5wQAUsQVmsNcFM5CNvftGxq3pUIpvh5pbN32Uof6yUbQfo86r4w