As privações extremas e as consequências no cérebro
Privações extremas na infância encolhem o cérebro para toda a vida
Estudo comprova que algumas zonas do cérebro são menores em pessoas que sofreram privações extremas na infância. Os órfãos da Roménia, que o mundo descobriu com horror em 1990, ajudaram agora a demonstrá-lo.
Por Filomena Naves
Passa a vida a queixar-se? Isso pode fazer-lhe bem à saúde
Na altura, as imagens chocaram o mundo. Em quartos insalubres, por toda a Roménia, dezenas, centenas, de crianças de várias idades amontoavam-se sem espaço nem condições, privadas de tudo. De amor, de uma família e do resto, que vai de uma alimentação saudável ao convívio normal e aos estímulos cognitivos e emocionais que são essenciais ao desenvolvimento equilibrado.
Aqueles meninos e meninas abandonados eram os órfãos de Ceausescu, o ditador romeno que criminalizou o aborto e obrigou as famílias do seu país a ter muitos filhos - e elas, não podendo a certa altura sustentá-los, acabavam por abandoná-los nas insalubres instituições do estado.
Seriam pelo menos 160 mil as crianças de todas as idades institucionalizadas na Roménia, no início dos anos de 1990, e foi a solidariedade internacional e a ação de várias ONG que contribuíram em grande parte para as resgatar à situação indigna em que viviam. Muitas foram adotadas por famílias de outros países, incluindo do Reino Unido. Jovens adultos, estes jovens contribuíram agora para a investigação que demonstrou que as marcas dessas privações em idade precoce ficam, indeléveis, no cérebro.
Para chegar a esta conclusão, o estudo, que foi coordenado por investigadores do King's College de Londres e publicado em janeiro na revista científica Proceedings of the Mational Academy of Sciences (PNAS), avaliou 67 jovens romenos com idades compreendidas entre 23 e os 28 anos, que estiveram institucionalizados no seu país, na infância, e que foram depois adotados por famílias britânicas. E comparou-os depois com um grupo de 22 britânicos sensivelmente das mesmas idades, também adotados, mas sem experiência de privação na infância. O resultado, diz a equipa coordenada por Edmund Sonuga-Barke, é claro: o volume do cérebro dos jovens adultos provenientes da Roménia é em média 8,6% inferior ao do outro grupo.
Os dados mostram, além disso, que quanto maior foi o período de privação a que estiveram sujeitos em crianças, menor era o volume cerebral, e que cada mês a mais de vivência daquela situação estava associado a 0,27% de redução no volume global do cérebro.
Uma análise estatística mostrou ainda que no grupo dos jovens provenientes da Roménia, aquelas alterações no volume cerebral estavam também associadas a um QI mais baixo e a sintomas mais frequentes de hiperatividade e défice de atenção, o que indica segundo os autores que as alterações observadas nas estruturas cerebrais poderão ter um papel mediador entre as experiências precoces de privação e os níveis de performance cognitiva e de saúde mental.
Para poderem determinar com rigor a ligação entre as privações na infância e as alterações observadas, os investigadores avaliaram igualmente outros parâmetros, como a nutrição, o desenvolvimento físico e a predisposição genética para um menor volume cerebral, o que permitiu descartar o seu contributo para os resultados do estudo.
A lei das compensações
"O nosso estudo debruça-se sobre as questões mais fundamentais no desenvolvimento psicológico, ou seja, sobre como as experiências precoces determinam o desenvolvimento individual, e é essencial reconhecer que quase todos estes jovens receberam grande atenção e carinho por parte de famílias acolhedoras que os adotaram depois de terem deixado as instituições onde se encontravam", explicou Edmund Sonuga-Barke, citado num comunicado da sua universidade. No entanto, sublinhou o coordenador do estudo, "apesar de todas as experiências e conquistas positivas posteriores, permanecem neles efeitos profundos daquela experiência primordial de privação".
Nuria Mackes, especialista em imagiologia cerebral e coautora da investigação, frisa por seu turno a importância dos resultados para o conhecimento neurobiológico e os estudos do cérebro e para o avanço que constitui, já que "até agora ainda não tinha sido possível determinar de forma direta a ligação entre as duas realidades: a da privação na infância e os seus efeitos no cérebro".
Na análise das áreas cerebrais que nestes jovens apresenta menor volume, em relação ao grupo dos congeneres ingleses, a equipe verificou que isso acontece na região frontal direita inferior, ao passo que, numa parte desses mesmos jovens, que sãos os menos afetados por hiperatividade e défice de atenção, o lobo temporal direito inferior apresenta maior volume e densidade. Os cientistas pensam que isso poderá funcionar de alguma maneira para a redução daqueles sintomas nestes jovens.
"Encontramos diferenças estruturais entre os dois grupos em áreas do cérebro que estão associadas a funções como a organização, motivação, integração da informação e memória", adianta Mitul Mehta, que coordenou a parte da imagiologia cerebral do estudo.
"É interessante, por outro lado, ver que o lobo temporal direito inferior é maior nos jovens romenos e que isso está relacionado com menos sintomas de défice de atenção e hiperatividade, o que sugere que o cérebro pode adaptar-se para minimizar os efeitos negativos da experiência de privação". Isso pode aliás explicar por que alguns indivíduos "parecem menos afetados do que outras por essa situação", sublinha o investigador, notando que, a seu ver, "esta é a primeira vez que um estudo mostra de forma tão evidente os efeitos compensatórios [a nível cerebral] para uma situação de privação"
Fonte: https://www.dn.pt/vida-e-futuro/privacoes-extremas-na-infancia-encolhe-o-cerebro-para-toda-a-vida-11784175.html?fbclid=IwAR3PRNllJFuclZT086uakm_8npqpFPeh4QtATS9dI3oEAg9hROIQa_xBcio