Religar-se à natureza

 

Richard Louv e a reconexão com a natureza

Por Sandro Von Matter  

Na época em que minha geração crescia, era algo comum ver crianças brincando na rua, pulando muros, jogando bola, pescando guarús e roubando mangas do vizinho. Aliás, foi exatamente graças a esta liberdade e uma certa proximidade da casa dos meus pais com uma área de mata – que eu, carinhosamente, chamava de “a minha floresta” -, que dei meus primeiros passos rumo ao mundo da observação de aves.

Hoje, é bem mais comum ver crianças cumprindo uma agenda conturbada de atividades pré-programadas, passando horas conectadas as redes sociais e dias inteiros indo de salas de aula para quartos em apartamentos cercados de concreto e “conforto”.

Mas sempre me perguntei quais seriam as consequências de uma mudança tão drástica no comportamento de uma espécie. Afinal a espécie humana poderia sobreviver sem contato algum com a natureza? E os jovens? Como este tipo de mudança comportamental poderia afetar as crianças?

Foi com todas estas perguntas na cabeça que, no auge de 2001, comecei a ler o livro Childhood’s Future, publicado inicialmente em 1993 por um autor ainda pouco conhecido, alguém que curiosamente também cresceu próximo a uma bela área verde e que, também, a chamou de sua floresta particular.

O que eu jamais poderia imaginar é que este autor – que mudaria para sempre a percepção do mundo sobre a infância -, não apenas viria a inspirar vários de meus projetos, como se tornaria um colega com o qual eu teria longas conversas sobre a importância do contato com a natureza.

Louv, ou Rich como ele prefere ser chamado pelos amigos, começou sua carreira como escritor ainda jovem: aos 12 anos de idade já publicava artigos nos jornais locais e nos impressos de sua escola. Richard Louv se formou em jornalismo pela Universidade de Kansas, em 1971, e iniciou sua carreira como colaborador na Revista de Comportamento Humano de San Diego, na Califórnia, ocupando em seguida uma vaga como colunista por 23 anos no jornal San Diego Union-Tribune. Participou da fundação da iniciativa Connect for Kids, um dos maiores portais na internet sobre infância, foi coordenador da Fundação Ford e escreveu para jornais como o New York Times e o Washington Post.

Louv, hoje, é autor de inúmeros livros sobre desenvolvimento infantil e uma das maiores autoridades no tema criança e natureza no mundo. Um dos seus mais aclamados livros – Last Child in the Woods: Saving Our Children from Nature Deficit Disorder – aborda uma das doenças silenciosas da sociedade moderna, aquilo que ele chama de Transtorno por Déficit de Natureza.

Entre as atividades altamente recomendadas por Louv, inclui-se a observação de aves que, além de trabalhar a saúde física e mental dos participantes, é um ótimo e divertido passatempo para pais e filhos. Devido a significativa influência de Richard Louv sob o meu trabalho é que o Instituto Passarinhar, sob minha coordenação, é pioneiro em desenvolver e coordenar programas voltados a impulsionar a observação de aves para o público infantil.

Em parceria com o Instituto Alana sob a genial presidência Ana Lucia Villela – dentro do projeto Criança e Natureza coordenado por Laís Fleury, lançado recentemente em parceria com outras instituições dedicadas ao tema como, o Instituto Romã de Rita Mendonça e o Instituto Árvores Vivas de Juliana Gatti -, seu livro acaba de ser publicado no Brasil com o título A Última Criança na Natureza. Estive no lançamento de sua obra, no Auditório Ibirapuera, e aproveitamos para tomar um café juntos, conversar sobre projetos, iniciativas e – claro que não poderia perder a oportunidade!- realizar uma entrevista exclusiva para você leitor do Conexão Planeta. Abaixo, os principais pontos de nosso bate papo. 

Falando de reconectar as crianças à natureza, na sua opinião, qual é o maior desafio para profissionais, ativistas e educadores que atuam hoje no Brasil? Quais as diferenças entre as práticas adotadas aqui e nos Estados Unidos e quais os principais obstáculos que precisamos superar? 

Como você sabe esta é a minha primeira vez no Brasil e não conheço com profundidade todos os aspectos da realidade do país, mas baseado em uma primeira impressão e na minha longa experiência nos Estados Unidos, eu poderia afirmar que, mesmo sendo o Brasil um país extremamente rico em biodiversidade, biomas e paisagens naturais, algumas das barreiras encontradas por profissionais que buscam formas e ferramentas para reconectar as pessoas à natureza por aqui, são ainda maiores do que as atualmente encontradas nos EUA.

Entre os principais obstáculos para aqueles que atuam com a reconexão à natureza estão, por exemplo, a falta de costume de realizar atividades ao ar livre com as crianças. É preciso ampliar o entendimento das pessoas e das famílias a respeito desta necessidade e da cultura da vida ao ar livre.

Inclusive nas cidades, possivelmente a rápida urbanização que ocorreu no país, com o surgimento de grandes metrópoles, densas, estratificadas e complexas como São Paulo e Rio de Janeiro, atuou diretamente na fragmentação do vínculo entre pessoas e a natureza, distanciando em especial as crianças do meio ambiente.

Além disso, diferente do que hoje ocorre em parques e reservas dos Estados Unidos, o acesso de visitantes as áreas naturais protegidas do Brasil é excepcionalmente mais restrito ou simplesmente não existe. Muitas vezes, quando existe, falta infraestrutura minimamente adequada para receber famílias e grupos escolares, o que pode dificultar ainda mais ações e programas voltados a levar crianças para áreas verdes.

Por último, mas não menos importante – e isso não acontece apenas no Brasil, mas em todos os países -, o maior obstáculo encontrado quando falamos em levar jovens para entrar em contato com a natureza é o medo: medo de que áreas naturais são perigosas, de que a natureza pode trazer riscos a saúde das pessoas, que pode causar doenças. Na minha percepção, este medo da natureza, é ainda maior aqui no Brasil do que nos Estados Unidos.

Então, é preciso superar obstáculos como estes para que as crianças – e mesmo os adultos -, possam usufruir dos milhares de benefícios que o contato com a natureza pode proporcionar. 

Como seria possível atrair e qualificar mais profissionais para atuar na área ambiental, ou mais especificamente focados na temática de aproximar as pessoas à natureza? Como trazer jovens para que se dediquem mais ao setor? Durante minha viagem pelo Brasil, tomei conhecimento de uma história que pode ser utilizada como um bom exemplo daquilo que não devemos fazer. 

Algum tempo atrás, um famoso político brasileiro, ocupando um dos cargos mais importantes da gestão pública do governo federal, inaugurou algumas obras em cidades na costa do país. Em seu discurso de inauguração, ele enfatizou o significativo avanço que a realização de obras voltadas à indústria de petróleo e gás trariam à população local, citando especificamente o exemplo de um pescador que, graças à ampliação das atividades da indústria na região, agora poderia abandonar sua antiga vida para se tornar um funcionário desta empresa.

Na opinião deste político, o pescador mudar de profissão seria algo maravilhoso, um avanço. Mas seria mesmo? Ou um avanço seria criar formas sustentáveis para que pessoas de comunidades, que vivem de produtos extraídos diretamente da natureza, possam optar por manter seus modos de vida tradicionais em equilíbrio com o meio ambiente e devidamente remunerados e valorizados pelo serviço único que prestam à sociedade?

É interessante observar como algumas pessoas, mesmo em posições de liderança, ainda hoje desqualificam empregos  que preservam a convivência sadia com a natureza, quando os comparam com outros tipos de emprego que, em muitos casos, estão na contramão da conservação ambiental. 

Uma das questões que eu levanto sobre um problema comum que enfrentamos hoje, no mundo todo, é que nós, como sociedade, precisamos urgentemente expandir a definição e o leque de empregos relacionados ao meio ambiente, os chamados empregos verdes. 

Nos Estados Unidos, por exemplo, quando se fala sobre empregos verdes, se passa imediatamente a impressão de que você está falando exclusivamente sobre energia solar ou eficiência energética. Isto é algo totalmente equivocado! Se expandirmos de forma adequada esta definição, incluiremos pescadores tradicionais, extrativistas, guias especializados em conectar as pessoas à natureza, professores do jardim da infância que abordam o meio ambiente, os animais e a natureza, arquitetos biofílicos que desenvolvem projetos para tornar as cidades mais verdes, profissionais que se dedicam a ensinar formas inovadoras de incluir espécies nativas em seus jardins e varandas, as centenas de profissões relacionadas ao ecoturismo… Então, precisamos urgentemente começar a entender e gerar oportunidades para o surgimento de novas profissões, novas maneiras de ganhar a vida protegendo e restaurando o meio ambiente.

Hoje, existem milhares de jovens em universidades do mundo todo que simplesmente adorariam atuar no mercado de trabalho em empregos voltados para a conexão das pessoas com a natureza. Mas acontece que estes jovens sequer sabem que estes empregos existem e, na verdade, é ainda pior, pois o sistema educacional não impulsiona os jovens a buscarem áreas de trabalho que ainda não existem, mas que poderiam ser criadas. Os jovens não são motivados a serem inovadores e criarem novas profissões relacionadas ao meio ambiente. 

Uma ideia comumente mal interpretada pelo grande público é a de que profissionais da área ambiental, ativistas ou mesmo pessoas que decidem levar uma vida um pouco mais alinhada com a natureza são contra a tecnologia. Qual é sua posição sobre esse uso, seja por adultos ou por crianças? 

Gostaria de ressaltar – e este é, sim, um ponto que sempre faço questão de frisar em todas as minhas palestras e conversas em minhas viagens ao redor do mundo – que eu não sou contra a tecnologia, muito pelo contrário, adoro o meu iPhone! Mas, se optarmos por priorizar qualidade de vida, seja para nós, para nossas crianças ou mesmo para colegas em nosso ambiente de trabalho, é imprescindível administrar nosso tempo gasto em atividades diárias.

Uma das frases que citei em meu livro Principio da Natureza e que costumo repetir incessantemente é “quanto mais tempo do nosso dia passarmos na companhia de tecnologia, mais tempo precisaremos passar na companhia da natureza”. Esta é uma equação essencial para a saúde e o bem estar do ser humano.

Já estão publicados centenas de estudos científicos cujos resultados demonstram claramente a importância do contato com a natureza para o desenvolvimento cognitivo dos jovens, para o desenvolvimento neurológico, para a manutenção da saúde física e mental das pessoas e para o bem estar das famílias.

E esta não deve ser uma questão prioritária apenas para nós como indivíduos, mas também para o estado e para tomadores de decisão e gestores públicos. É essencial que, para cada R$1 gasto pelo sistema educacional, nas escolas de um país, em projetos voltados ao acesso à tecnologia, como acesso à internet por exemplo, seja gasto ao menos outro R$1 em projetos focados em reconectar as crianças à natureza.

Se investirmos, em ações, projetos e programas para aproximar as crianças, e nós adultos também, à natureza, tanto quanto investimos em tornar acessível tecnologias como a internet, estaremos oferecendo à nova geração – e à sociedade – benefícios incontáveis.

Os seres humanos, como espécie, precisam de um balanço entre o tempo que passam em um ambiente estressante, conectados à internet e assistindo à televisão e o tempo dedicado à atividades ao ar livre, em contato direto com a natureza. E, novamente, este é simplesmente um pré-requisito necessário ao bem estar de todos nós como espécie. 

Sabemos que pais e educadores interessados em aproximar as pessoas da natureza enfrentam uma série de desafios em todo o mundo. Mas sabemos, também, que a superação de obstáculos envolve o surgimento de novas oportunidades. Quais seriam essas oportunidades para quem quer se dedicar a conectar pessoas e natureza? 

Acredito sinceramente que os brasileiros têm, neste momento. uma enorme oportunidade de superar qualquer obstáculo e ser inovadores nas mais diversas áreas voltadas a criar novas formas, caminhos e profissões focados na reconexão da sociedade à natureza. E mais ainda pela cultura de superação e rápida adaptação às dificuldades característica do Brasil. Acredito que as mudanças por aqui podem ocorrer de uma maneira muito mais rápida do que nos Estados Unidos.

No Brasil, a conexão à natureza pode rapidamente se tornar um tema altamente inovador, uma nova onda cultural, uma novidade que poderá atrair dezenas de pessoas.

Vou exemplificar contando uma breve história: algumas semanas atrás eu estava em Vancouver no Canadá, quando um jovem professor de biologia venho até mim e começou a contar um pouco sobre suas inciativas na escola onde ministra suas aulas. Este jovem faz praticamente de tudo para levar seus estudantes para fora da sala de aula, tanto que passou a dar muitas delas ao ar livre, algo completamente inovador na sua escola.

Muitos de seus estudantes nunca haviam sequer pisado fora de uma calçada, nunca haviam entrado em contato direto com a natureza. Para sua grata surpresa, ao começar a levar os alunos para fora da sala de aula, ele percebeu uma mudança profunda nos jovens, como se, lentamente, cada um de seus alunos começasse a ganhar vida. Estes jovens, que nasceram e cresceram em um universo repleto de tecnologia por todos os lados, nunca haviam estado em contato com a natureza, jamais haviam se deslumbrado com paisagens exuberantes ou sentido o cheiro do mato.

É possível imaginar a diferença que profissionais que decidam atuar nesta área possam fazer na vida de crianças e jovens em todo o Brasil? Milhares de oportunidades de trabalho, iniciativas e empresas inovadoras voltadas a atuar em áreas semelhantes podem surgir e revolucionar a forma como as crianças interagem hoje com o meio ambiente. 

Richard, você acredita que toda uma geração de jovens que hoje passa seus dias conectados às redes sociais, assistindo filmes e jogando videogames possa realmente ter algum interesse pela vida ao ar livre e pelo contato com a natureza? 

Quando eu era apenas um garoto, vivendo no interior de Missouri, em uma pequena cidade chamada Raytown, costumava caminhar quase todos os dias com minha avó, segurando a sua mão. Minha avó nasceu no século 19, mantinha seus olhos no céu e de tempos em tempos repetia “olhe Rich, lá vai um arrowplane” (antiga pronúncia local para airplane), em português avião e, incessantemente, a cada novo avião que passava, ela parava por um segundo e repetia, “olhe Rich mais um arrowplane”.

Qual era o motivo que levava minha avó a fazer isso? O motivo era que, para ela, aviões ainda eram novidade, era algo impensável e revolucionário. Para mim, bem… para mim, mesmo com apenas 4 anos de idade, os aviões já haviam se tornado comuns, afinal já faziam parte do meu dia a dia.

Para minha geração, computadores ainda são uma novidade, videogames foram revolucionários, mas para toda uma geração de jovens que cresceu imerso em tecnologia, cercados de computadores, aplicativos e smartphones adventos tecnológicos já não são novidade alguma.

Então, qual seria o tema, a descoberta, a grande novidade que poderia impressionar e fazer com que toda esta nova geração se apaixone? O que é que poderia deixar todos estes jovens maravilhados, assim como os aviões para a geração da minha avó e os videogames para a minha? 

A resposta é a natureza! Esta nova geração ainda não teve a oportunidade de conhecer a natureza profundamente, muitos nunca fizeram uma viagem, caminharam por uma trilha ou acamparam, são jovens que nunca entraram em contato com o mundo natural e que permanecem desconectados de um mundo maravilhoso. 

Qual seria o impacto ao aproximar esta geração de algo tão maravilhoso quanto a vista de uma paisagem do topo de uma montanha, uma caminhada por uma trilha em meio a uma floresta tropical, visualizar espécies de animais únicas e contemplar comportamentos como a dança do tangará (Chiroxiphia caudata) ou, ainda, conhecer algumas das árvores mais antigas do mundo? 

Uma transformação de dentro pra fora, algo tão único como abrir uma janela para um mundo tão maravilhoso quanto desconhecido, é exatamente isso que pessoas que atuam com a reconexão entre crianças e jovens e a natureza, testemunham ao expor pela primeira vez esta nova geração a espécies de animais e plantas, paisagens naturais e elementos da natureza.

Para esta geração, o revolucionário, não é mais o voo de um avião ou jogos de videogame. Para eles. o tema inovador que poderá despertar uma paixão similar, ou ainda maior, é o contato direto com a natureza.

Por este motivo, eu acredito que, para este jovens, o mais importante é o surgimento de pessoas devotadas a aproximar as crianças e suas famílias do meio ambiente, dedicadas a levar e a orientar os jovens para explorar e conhecer áreas naturais, em especial pessoas como você que, dedicaram a vida para a conservação ambiental e que podem guiar os jovens através deste novo e maravilhoso caminho de reconectar-se a natureza.  

Fonte: http://conexaoplaneta.com.br/blog/richard-louv-e-reconexao-com-a-natureza/

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