Considerações sobre a formação do acompanhante terapêutico.

Publicado em Psicologia.pt - O Portal dos Psicólogos (http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0525.pdf.)

HAILTON YAGIU²

Resumo

A difusão crescente da pratica do Acompanhamento Terapêutico nas diferentes áreas da saúde do país, aliada à comprovada necessidade desta modalidade clinica no contexto contemporâneo nacional, nos traz à tona a questão da formação do acompanhante terapêutico. Baseando se na experiência da criação de um curso de Acompanhamento Terapêutico no Brasil, mais exatamente na capital do estado de São Paulo, este artigo retoma as origens do Acompanhamento Terapêutico, o projeto que o define e o funda como atividade e o ethos que orienta o acompanhante terapêutico, e sob uma ótica analítica sugere um triplo eixo de formação para o acompanhante terapêutico, discute a questão da identificação presente no tema, constata e afirma diferença entre o ensino e a formação. 

"As palavras são usadas para expressar as idéias, mas quando os homens se apoderam das idéias, os homens esquecem as palavras."

Chuang Tsé 

A formação dos acompanhantes terapêuticos passa a ser uma questão importante na medida em que na atualidade esta prática se torna cada vez mais difundida no país e reconhecida pela sua eficácia em diferentes áreas da saúde, difusão que também pode ser notada no aumento da bibliografia, bem como a ocorrência de vários eventos sobre o tema, além dos cursos de formação que começam a proliferar no mercado nacional. A despeito de sua importância este tema é ainda pouco explorado nos artigos publicados em nosso país. Para iniciar esta reflexão vou resgatar nas origens do Acompanhamento Terapêutico alguns pontos importantes para a questão da formação do acompanhante terapêutico.

Desde as suas origens em terras brasileiras no seio das comunidades terapêuticas que surgiam na década de sessenta, o objetivo do auxiliar psiquiátrico era o de estabelecer um vínculo com o sujeito por meio de uma escuta diferenciada, escutar a loucura, trabalhando com o estabelecimento de relações sociais saudáveis com os mesmos de forma a lhes oferecer um padrão diferenciado de interação com o meio que os cercava, imprimindo sobre o modelo dos estabelecimentos psiquiátricos da época uma nova dinâmica nas relações já estabelecidas.

Esta nova dinâmica, na esteira do movimento antipsiquiátrico, deslocou o problema para um circulo mais amplo, o das relações sociais, causando conseqüentemente uma mudança no status do doente, que passou de paciente informante a sujeito interlocutor, fazendo surgir uma nova forma de relação, a do diálogo que passa a substituir a ilusão de comunicação. Este tipo de relacionamento que surge faz com que os horizontes representacionais da dupla profissional-paciente se abrissem um ao outro de forma a transformar muitas vezes um confronto em um encontro, e passassem a incluir o primeiro numa postura que passa a ser denominada de observação participante, onde o profissional passa a estar implicado. Ao meu ver esta é a proposta que funda esta pratica e a distingue como atividade.

Onde os profissionais viam somente sintomas de um aparelho psíquico produzidos pela patologia os auxiliares psiquiátricos passam a ouvir um sentido, produzido por sua vez por um sujeito, a escuta diferenciada praticada pelos auxiliares psiquiátricos proporcionou aos pacientes portadores de sintomas a oportunidade de se transformarem em sujeitos que sofrem e tornou possível a escuta do conteúdo de suas falas em lugar do reconhecimento dos mesmos no universo abstrato da anormalidade que era descrito pelos compêndios.

O exercício da escuta diferenciada é possibilitado pela atitude de acolhimento que ao valorizar singularidades em jogo, instrumentaliza o profissional de forma que ele possa perceber o outro na qualidade de presença, e é a partir disto se torna possível realizar alguma ação terapêutica, provocar algum deslocamento em relação ao lugar ocupado pelo sujeito, quando isto acontece podemos então falar numa transformação. Neste sentido podemos definir a atividade do acompanhante terapêutico como uma proposta de metamorfose, no qual se atualiza constantemente o poder ser, e cujo objetivo é o de que o sujeito acompanhado vá aos poucos se desalienando, passando de uma posição de passividade a uma crescente autonomia e esta transformação ultrapassa muitas vezes as fronteiras do saber da teoria, tendo como conseqüência a metamorfose do sujeito. Em minha opinião é nesta escuta diferenciada que o acompanhamento encontra seu principio fundamental.

O Acompanhamento Terapêutico é uma atividade que faz falar o sujeito promovendo lhe algum crescimento psíquico, e acompanhar é, sobretudo fazer, e fazer com o outro, onde este fazer muitas vezes cria um novo segmento na história do sujeito que acompanhamos e o faz aceder muitas vezes pela primeira vez a uma historicidade singular e coletiva, singular por que única em sua experiência e coletiva, pois insere se na realidade juntamente com a de seus contemporâneos.

Já sabemos que em seu labor o acompanhante terapêutico participa ativamente na criação de subjetividades, mas e no tocante à sua própria subjetividade? Como se tornar um acompanhante terapêutico? O que seria uma formação neste campo e como poderíamos entender esta proposta, uma vez que a própria idéia de formação carrega uma contradição no próprio termo, pois diz de algo que tem um começo, mas não tem um fim determinado. Ao aprofundarmos estas questões iremos descobrir nelas também um cunho ético; que tipo de acompanhante se está querendo formar? Que visão de homem subjaz ao que está sendo transmitido e como este se faz?

Em se tratando do tema da formação, vamos recorrer ao paradigma analítico, onde já existe uma proposta quanto a sua forma, acredito que a formação do acompanhante terapêutico possa servir-se deste modelo de forma a ser também tri-dimensional, compondo-se de forma simultânea:

1)   do trabalho com a própria subjetividade, onde se experimenta a implicação com a sua construção, e por meio da experiência pessoal se conhece a atuação dos mecanismos psíquicos.

2)     do estudo da teoria, com abertura para as diferentes ciências humanas como; Antropologia, Sociologia, Mitologia, Geografia Humana, Urbanismo e outras.  

3)    da prática supervisionada, onde o acompanhante se percebe em sua própria pratica e conhece as constantes do funcionamento clinico e tem a oportunidade de escutar um terceiro que o percebe na pratica e lhe mostra os percalços onde pode ser capturado.

Como efeito deste processo de formação espera se que o aprendiz fortaleça sua abertura para: a escuta da alteridade e a disponibilidade interna de acolher a diferença; compreender o que se passa na relação vincular e o que dela é mobilizado em si mesmo por meio das questões que se referem ao próprio narcisismo e elaborá-la. Portanto a formação, neste caso, visa à preparação para a prática clinica, para um esforço de compreensão teórica e para a atenção no contato com as próprias questões, oriundas ou não de sua prática.

Para a psicanálise, a toda formação subjaz o mecanismo psíquico da identificação, por este motivo o saber adquirido em livros, cursos, e universidades não tem qualidade de formação, sendo este o ponto que diferencia o ensino da formação, já que a primeira não envolve a identificação. A formação formulada e reconhecida pela psicanálise e aqui adaptada ao Acompanhamento Terapêutico, é resultado de um processo de aquisição de um saber do estudo da teoria e da prática, e da criação, por meio da identificação, de um espaço psíquico onde o sujeito represente a si mesmo e as relações que ele mantém com os seus contemporâneos, e que possibilite e autorize que o mesmo trabalhe em situações sem precedentes e faz com que ali ele se reconheça e seja também reconhecido.

Toda formação, porém, tem seus percalços, como por exemplo, o de se tornar um processo alienante, acrítico, apenas de absorção do material aprendido. Aqui é necessário que resgatemos os primórdios do Acompanhamento Terapêutico, pratica que surgiu no seio de um movimento de questionamento a um saber existente, e cuidar para que a formação, repetindo o movimento onde surge esta prática, possibilite o permanente surgimento da duvida e da crítica, e onde possa haver um trabalho constante de analise dos fatores que podem desencadear a alienação do sujeito que a recebe, com isto desvencilhar-se dos mecanismos cegos de identificação.

Como parte de um amplo movimento de humanização, está atualmente em voga o tema do desenraizamento cultural que é também uma das preocupações das ciências humanas. Há mais de meio século, Simone Weil nos alertou que o ensino moderno, ao privilegiar a instrução técnica, pragmática e fragmentada pela especialização, seria um dos fatores que geraria o desenraizamento, e nos mostrou que o modelo de transmissão de conhecimento na civilização industrial contemporânea reforça a hegemonia do meio técnico-cientifico-informacional, e contribui para a perda de autonomia das pessoas para gerarem e adquirirem conhecimentos necessários às suas vidas.

Na vertente do desenraizamento indicado por Weil e em consonância com o trabalho de desalienação que realiza o acompanhante terapêutico, o ensino do Acompanhamento Terapêutico, também deve ser um plano de desalienação, não mais do sujeito que acompanhamos, mas do saber acerca deste sujeito. Por um outro lado o ensino da prática deve ter como um de seus objetivos conscientizar o aprendiz de que o saber que o orienta é em um dos seus aspectos de intervenção um “não saber”, no sentido de que o acompanhante terapêutico aproxima se do sujeito a quem acompanha sem uma concepção pré-definida ou um projeto definido a priori. Não há um desejo de saber, nem a aplicação de um saber, aspectos que podem fazer o acompanhante terapêutico lançar se na utilização defensiva da teoria, como um escudo, de forma a conter as próprias angústias, num movimento de desimplicação de seu fazer.

No Acompanhamento Terapêutico a teoria, o saber, somente servem como guia ao acompanhante terapêutico, porquanto oferecem uma direção a seguir e certos cuidados a serem tomados. Trata se mais de saber ouvir, ser capaz de dar expressão e lugar à fala do sujeito. Saber fazer, mas também fazer saber.

Reitero que a formação deve possibilitar a abertura para o questionamento permanente dos efeitos que ela causa, libertando o aprendiz das trincheiras de uma filiação dogmática e inquestionável, e como na formação estão implícitas as questões da transmissão e da filiação, ressalto a importância do resgate do projeto inicial do auxiliar psiquiátrico que funda a prática do Acompanhamento Terapêutico, e tomá-lo como princípio que subjaz ao espírito da formação nesta prática.

Meu intuito neste artigo foi o de reunir algumas reflexões surgidas durante a criação de um curso de Acompanhamento Terapêutico para o Proesq-Unifesp no ano de 2008 e alertar para certos cuidados a serem tomados. Indubitavelmente o assunto merece mais tempo de reflexão, que este texto sirva para colocar em marcha um debate e o surgimento de outras reflexões neste tema difícil e amplo que trata também de um processo de subjetivação, agora não mais do acompanhado.

Para encerrar, faço minha a questão goethiana; como nos apropriar do que herdamos para torná-lo nosso?

NOTAS:

[1] Apresentado no II Congresso Internacional de Acompanhamento Terapêutico em Bahia Blanca (Arg) em 2007 e publicado em http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0525.pdf.

[2] Psicólogo Clínico, Psicanalista e Acompanhante Terapêutico; Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Regional de Psicologia - 6ª região (São Paulo – Brasil).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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13.  R. O. Reis Neto, Acompanhamento terapêutico: emergência e trajetória histórica de uma prática em saúde mental no Rio de Janeiro, Dissertação (mestrado em Psicologia), PUC-RJ, 1995.

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