O acompanhante terapêutico e as sutilezas institucionais
Texto publicado na Revista Atravessar de Acompanhamento Terapêutico no. 3, segundo semestre de 2013.
HAILTON YAGIU²
Resumo
Neste artigo contextualiza-se sucintamente o acompanhamento terapêutico como uma prática surgida no contexto da luta antimanicomial, introduz-se de forma concisa alguns aspectos essenciais do conceito de instituição do ponto de vista sociológico e psicanalítico para uma reflexão sobre as instituições de saúde mental, acrescenta-se o ponto de vista da teoria do atuar comunicativo de Habermas como fundamento para uma pratica que leva em conta as subjetividades para além das abordagens instrumentais, e conclui-se que, devido à sua origem, o acompanhante terapêutico não deveria furtar-se à constante reflexão sobre sua prática institucional.
Palavras chave
Acompanhamento Terapêutico – Psicanálise – Instituições – Análise Institucional
Palavras iniciais
Ao saudoso Arthur Hyppólito de Moura, analista institucional de “mão cheia”, com quem aprendi que as instituições velam armadilhas, e como desvelá-las para escapar.
“Nos proponemos la negación como única modalidad actualmente viable en el interior de un sistema político-econômico que absorbe cualquier afirmación y que la utiliza como nuevo instrumento de su propia consolidación” Basaglia (La institución negada. pp. 142).
O combate para o fim da ditadura, o movimento de redemocratização e as reformas sofridas no estado brasileiro permitiram a elaboração e efetivação das políticas públicas de saúde mental que culminaram na Reforma Psiquiátrica e na Luta Antimanicomial, que por sua vez fizeram aparecer as demandas para novas abordagens no tratamento dos pacientes psicóticos.
A desmontagem do manicômio como organização e, principalmente como instituição efetiva-se, pois, por meio de uma luta política, teórica e prática que visa articular uma rede comunitária de cuidados que englobem diferentes serviços substitutivos ao manicômio e que também se conectem a outros espaços da cidade. Tal rede torna possível não apenas uma modificação nas formas de cuidado e acolhimento a partir das mudanças administrativas e da criação de novos equipamentos, mas principalmente, possibilita a invenção de novas relações e formas de cidadania dentro da comunidade e do espaço urbano.
Assim, é a partir da década de 70 que irão surgir de forma mais explicita no país os acompanhantes terapêuticos, desde então o espaço público passa a ser utilizado como uma ampliação do campo de tratamento possível para os pacientes psiquiátricos. Do nosso ponto de vista o Acompanhamento Terapêutico constitui-se como um dispositivo complementar que tem ligação estreita e colabora para a efetivação da reforma psiquiátrica e da desinstitucionalização dos manicômios. Na década de 80 surge o primeiro Centro de Atenção Psicossocial no país, uma nova forma de tratamento que aparece na busca de serviços substitutivos à institucionalidade psiquiátrica, esta experiência leva os acompanhantes terapêuticos a questionamentos sobre o trabalho nessa nova forma de instituição e as suas conseqüências.
Hoje em dia os acompanhantes terapêuticos atuam em parcerias integrais ou parciais com instituições de vários tipos: clinicas particulares, escolas, centros públicos de atendimento à saúde mental e também às hospitalares em um trabalho interdisciplinar e de rede. Cada uma destas inserções guarda uma complexidade em sua dinâmica que deveria suscitar uma série de reflexões sobre os processos institucionais e inconscientes que aí se desenrolam e que justificam, portanto, nos atermos sobre esta temática.
A intenção aqui não é a de nos aprofundarmos na temática das instituições, mas extrair alguns elementos importantes deste conceito sobredeterminado para a reflexão acerca do trabalho no campo da saúde mental, para tal iniciaremos pelo viés sociológico, passando pelos pontos de vista apresentados pela psicanálise e psicoterapia institucional, somando se a estes a proposta da teoria do atuar comunicativo de Habermas. O objetivo deste texto é colocar em evidencia os elementos que compõe a noção de instituição e a porção da realidade psíquica mobilizada pelos fatores institucionais em cuja urdidura o acompanhante terapêutico pode estar inserido e tramado, para que ciente dos processos ali presentes possamos realizar um trabalho constante de questionamento acerca dos escolhos com os quais inevitavelmente deveremos nos defrontar.
A instituição
A noção de instituição é antiga, tendo sido, por exemplo, tema de reflexão por parte dos antigos egípcios, filósofos gregos e romanos, pensadores iluministas[3] e, ainda nos dias de hoje segue sendo tema de debate das ciências humanas referindo-se a uma vasta gama de questões, dentre as quais podemos citar; costumes, comportamentos, organizações, práticas, relações e padrões a serem seguidos.
Etimologicamente o termo instituição tem sua origem na raiz indo-européia esta que possui dois significados: 1) estar, permanecer; 2) por, colocar. O latim deriva desta raiz os verbos stare e sistere, de onde surgem os termos statuere, “estabelecer, instituir”, constituere, “formar, organizar”, instituere, “formar, fundar” e os substantivos statutum, “que regula”, constitutio, “que compõe”, e institutio, “o que se estabelece como regra”, portanto o significado original deste termo é “aquilo que é estabelecido, que se funda, ou que permanece devido à ação humana”.
A tendência humana de criar uma rotina para se esquivar da exigência de se pensar todas as vezes que for necessário repetir uma determinada atividade faz com que se criem os hábitos, e o que acontece com isso é uma restrição das alternativas ou possibilidades de resposta diante de uma determinada situação, que torna desnecessária a permanente tomada de decisões devido à automatização das atividades. O hábito poderia ser resumido pela frase: “isto é feito assim”, e quando ele é levado da esfera particular para a social este processo passa a ser denominado de institucionalização.
Ao ter em mãos uma resposta pré-estabelecida e de certa forma determinada, o indivíduo não necessita buscá-la ao defrontar novamente um mesmo problema, pois ela encontra-se acessível, recomendada, endossada e pronta para ser utilizada, e ao optar pela solução institucionalizada, esta encontrar-se-á adequada aos demais integrantes de sua coletividade, poupando-lhe de argumentar e justificar-se acerca de sua decisão.
Neste sentido estas respostas prêt-à-porter aparecem na vida do homem como solução às questões que os indivíduos enfrentam em seu cotidiano, a institucionalização de uma percepção ou de uma ação frente à uma situação significa que ela contém um conjunto de argumentos que confirmam sua adequação e a justificam, para termos uma noção da complexidade destes mecanismos, tomaremos como exemplo a ideia de que o vínculo criado entre médico e paciente leva a cura, esta crença baseia-se na percepção previamente institucionalizada da cura, do médico e da medicina, e dos pacientes que reconhecem no médico uma autoridade, legitimando e interiorizando a mensagem recebida, mecanismo que vai garantir a reprodução cultural e social.
Assim, as instituições são o resultado das práticas socialmente compartilhadas, ou seja, elas não são criadas de forma instantânea, e acabam por controlar e determinar o comportamento dos homens ao estabelecer pautas que orientam as percepções, pensamentos e ações das pessoas. Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu[4] os indivíduos são guiados pelo que ele chama de uma determinada “logica da ação” que lhes confere um sentido prático por meio do qual conseguem planejar e criar ações ajustadas à ordem social, sendo portanto aceitas e valorizadas pelos demais como adequadas, justas e esperadas.
Uma resposta institucionalizada consiste em um mecanismo de fácil memorização, na maior parte dos casos tratando-se de fórmulas ou modelos quase sempre empregáveis automaticamente, cabendo às instituições o papel de uma memória social que armazena este conjunto de procedimentos de fácil difusão, como corolário deste processo obtemos um alto nível de padronização das respostas que vão por sua vez garantir a ordem social. Ao oferecer aos sujeitos respostas e ações sem que lhes sejam explicadas as razões que as exigem, a instituição produz uma opacidade que a torna um dispositivo de reprodução do sistema e de criação e manutenção de sujeição, fazendo com que o sujeito se perca na complexidade das regras que lhe são impostas.
Desta forma as instituições deixam de ser meios – a serviço dos mecanismos sociais – e passam a ser um sistema que reduz os sujeitos a sujeitados, fato este apontado por Cornelius Castoriadis[5], que assinala que, uma vez criada e estabelecida, a instituição acaba ganhando uma autonomia própria que faz com que ela extrapole seus objetivos iniciais e o motivo de sua criação, dando origem à conhecida inversão; o que foi criado para servir aos indivíduos e à coletividade passa a ter os indivíduos e a coletividade a seu serviço, dando, segundo este autor, origem a um dos muitos tipos de alienação. Como podemos perceber, pela sua origem e forma de funcionamento, as instituições tem estreita ligação com a produção e reprodução dos mecanismos de alienação.
A psicanálise e a instituição
No terreno psicanalítico um dos primeiros autores a contribuir para o estudo dos fenômenos institucionais foi Elliot Jacques[6] que, baseado nas teorias de Melanie Klein postulou que as instituições teriam um papel defensivo contra as angústias depressivas e paranoides que afligem os sujeitos, e que dentro delas estes compartilhariam fantasias individuais por meio dos mecanismos de identificação, tanto introjetiva como projetiva.
De acordo com a psicanálise todo vínculo institucional é um reencontro, pois as cenas que acontecem neste âmbito remetem o sujeito às suas primeiras relações no seio da família por ser ela a primeira instituição pela qual ele circula e onde lhe são ensinadas as primeiras regras que serão empregadas em todas as demais, segundo Jean Pierre Vidal[7] a novela familiar é evocada no ambiente institucional, oportunidade em que as relações familiares podem ser ressignificadas, portanto trata-se de um campo onde as atuações (acting outs) estão presentes em suas várias formas, não por acaso pertencer a uma instituição é comumente dito “ser-da-casa”.
É nesta relação de pertencimento que René Kaës[8], autor que têm investigado a concepção de homem como sujeito do inconsciente e a vida institucional valendo-se de um referencial da psicanálise de grupos, situa a origem da representação de que voltamos a ter novamente os pais protetores, e da mobilização da relação de objetos parciais que irão produzir simultaneamente as idealizações e o caráter persecutório, que por sua vez irão interferir nos mecanismos de identificação responsáveis pela manutenção do elo institucional entre os seus integrantes. Este autor ainda postula que existem as identificações com os sintomas compartilhados, as alianças inconscientes e as realizações de desejo que vinculam os sujeitos aos ideais e projetos de uma determinada instituição e não a uma outra qualquer.
Tal qual a família as instituições teriam também um aspecto formador, característica apontada por Eugène Enriquez[9] que diz que todas elas acabam elaborando um processo de formação e socialização que cria um sistema de normas e pensamentos que plasmam as ações dos seus integrantes, e permite que estes possam decidir-se em relação aos objetivos e ideais propostos, processo que adquire um papel importante na admissão ou exclusão de seus membros.
A instituição seria para este autor um sistema que oferece aos seus membros a realização dos desejos de afirmação narcísica, onipotência e identificação, a satisfação da necessidade de amor, fazendo ainda com que eles se identifiquem e se movam por orgulhar-se dos objetivos a serem cumpridos e com sua missão, tendo por isso a função de suporte psíquico ao indivíduo que ali se insere e por este motivo lhe capturando, neste sentido este autor diz que parte do psiquismo do sujeito é institucional e grupal.
Em relação às particularidades um aspecto importante é apontado por René Lourau[10] quando diz que as instituições se definem por oposição às demais, ou seja não se trata de um espaço aberto, pois ela tende a expulsar de seu interior tudo o que não se lhe adapta, abarcando apenas aquilo que se adequa à sua função e aos seus objetivos.
Uma das razões que podem afetar a dinâmica institucional é a entrada de um novo profissional ou de uma nova modalidade profissional, e esta situação pode acontecer com um acompanhante terapêutico na oportunidade de um trabalho dentro de uma instituição. Para Kaës[11] esse tipo de mudança causa uma ameaça à segurança dos demais profissionais, pois a integração de novas práticas acaba gerando sentimentos de angústia por colocá-los de modo direto em contato com o desconhecido e o novo, desorganizando as defesas psíquicas organizadas entre os mesmos, nesta ocasião os antigos pilares passam a não dar mais suporte para o que se experiência, trazendo como consequência o surgimento de ameaça à integridade do eu, tornando se necessária a criação de novos artifícios compensatórios.
Nestas circunstancias os profissionais sofrem uma vivência de desenraizamento, pois sua identidade profissional é colocada em questão pela inclusão de uma outra modalidade de trabalho que faz com que eles tenham que se rearticular, ressignificar seu próprio saber e incluir o novo, ou seja, as representações que serviam como base de identificação para uma atuação profissional acabam sofrendo uma brusca transformação.
Segundo Kaës, os artifícios defensivos desenvolvidos pelos profissionais para atenuar o próprio sofrimento psíquico seriam a tendência excessiva a ideologizar, psicossomatizar ou desenvolver estados passionais. Para este autor o surgimento do sofrimento psíquico institucional é detectável por meio do aparecimento dos; afetos em massa, da repetição das ideias fixas, da paralização da capacidade de pensar, dos ódios incontroláveis, do ataque paradoxal contra as ideias novas e contra os processos de diferenciação, confusão dos níveis e das ordens, somatizações e das atuações violentas, e devem se aos processos dissociadores que afligem seus integrantes e que provocariam um desconcerto dentro da instituição, fato que dever-se-ia à uma crise na qual ela deixaria de cumprir sua função primordial de regulação e contenção das angustias.
Quando estamos diante de um ‘sintoma institucional” que acaba por enrijecer a instituição de saúde mental é importante que saibamos que eles são parte da própria realidade do trabalho ali realizado, e que surgem, por exemplo, devido ao contato permanente dos profissionais com o sofrimento alheio, com a pobreza de simbolização extrema e o estigma. Para enfrentar estas dificuldades Käes propõe a criação de recursos que possibilitem o reestabelecimento de um espaço subjetivo coletivo, uma espécie de espaço transicional comum, onde pudessem acontecer: o surgimento de espaços democráticos onde a palavra possa circular; as reflexões; as análises sobre as práticas e também a percepção de que os espaços são frequentemente locais de colocação em cena das diversas manifestações inconscientes.
Na opinião de Jean Oury[12] em um trabalho em equipe não se trata somente de manter relações individuais com um outro, é necessário levar em conta a subjetividade deste, de si mesmo e a dimensão inconsciente das relações, principalmente as complementariedades, porém não as do tipo “estamos do mesmo barco” que se obscurece no campo das identificações, mas às alianças que se formam, às transferências e contratransferências que se estabelecem.
Na perspectiva da psicanálise sempre existe uma porção desconhecida em nós mesmos que ela denomina de inconsciente e que acaba brotando nos momentos menos esperados, esta peculiaridade da condição humana nos acompanha, como não poderia deixar de ser, também na esfera do trabalho. Admitir que os pacientes e os profissionais da saúde mental são igualmente impulsionados por motivações inconscientes que ignoram e sobre os quais não detém controle, enriquece nossa maneira de compreender a dinâmica das equipes de saúde e dos vínculos que se estabelecem entre os seus integrantes, neste sentido, a psicanálise aponta também para uma alienação no trabalho institucional, mas agora em outro registo, no campo do inconsciente.
Como nos mostra Moura[13], é na Psicoterapia Institucional francesa, mais exatamente na concepção de instituição desenvolvida por Ginette Michaud que encontraremos uma proposta de combate à alienação dentro da mesma. Num trabalho publicado em 1977[14] mas elaborado em 1957, portanto anterior aos trabalhos dos psicanalistas supra citados, esta autora realiza uma revisão crítica do conceito de instituição em uso na época e chega à conclusão de que ela deveria ser, uma estrutura elaborada coletivamente e que mantivesse sua existência assegurando as trocas sociais de qualquer natureza, ou seja, um terceiro responsável pela mediação das mesmas.
Influenciada pelos trabalhos dos etnólogos Malinowski e Lévi-Strauss e da psicanálise de Freud, Michaud percebe nas trocas inter-humanas um dos principais fundamentos para o processo de desalienação e humanização, e é nesta direção que ela desenvolve a sua própria noção de instituição que posteriormente irá servir de base conceitual aos mais diversos mecanismos definidos como instituição no campo da psicoterapia institucional pela sua função de desalienação e mediação entre as pessoas, os grupos e a sociedade.
Para esta autora trata-se de se criar e manter mecanismos e lugares concretos que se constituam em espaços do dizer, onde aconteça a emergência do desejo, se propicie o surgimento das transferências múltiplas, a assunção de responsabilidades, os enquadres possam ser mais flexíveis e seja possível simbolizarmos o não dito, a partir de então seria possível se obstaculizar ao máximo a instauração do estado de inércia, da auto reprodução e da violência ao sujeito, todos frutos de mecanismos latentes a que tendem a sucumbir as instituições, mas que por outro lado faz com que elas se estabeleçam.
Ampliando o campo
Dentro dos limites de sua formação individual o profissional da área da saúde muitas vezes não consegue dar conta da complexidade que envolve seu paciente, surgindo daí a necessidade de uma abordagem interdisciplinar com o intuito de englobar os diferentes aspectos e as diversas práticas de cuidado. Porém esta abordagem não pode ser abreviada a um simples encontro das práticas ou saberes ou à sobreposição das ações, pois trata-se de uma interação e integração onde os profissionais dialogam sobre as estratégias de maneira a chegar a um acordo tendo como base a comunicação e o desejo de oferecer um atendimento adequado aos pacientes sob seus cuidados.
Do nosso ponto de vista, conceber a interdisciplinaridade como um operador nas práticas em saúde significa pensar além da simples somatória de profissionais, práticas ou saberes com a finalidade de realizar um trabalho, ao seguirmos esta linha de pensamento vamos ao encontro do que Jürgen Habermas[15] denominou de atuar[16] comunicativo, onde a aprovação de uma ação passa por um diálogo crítico e as estratégias passam a ser orientadas por meio de atos de entendimento e negociação, não mais por meio de um planejamento técnico que visa somente atingir metas. Para o nosso propósito não será possível examinarmos com maior profundidade o conceito proposto por Habermas, apenas pretendemos apontar a relevância desta proposta para uma abordagem intersubjetiva dos fatos, fenômenos e ações sociais em um trabalho institucional.
O que este filósofo nos apresenta em sua teoria do atuar comunicativo é uma proposição que tem como objetivo esclarecer as atuais patologias sociais, partindo da suposição de que os espaços comunicativos estão submetidos a uma lógica instrumental formalmente organizada, esta teoria pretende fornecer uma visão do cenário social da vida onde haja uma interação entre os contextos práticos das experiências humanas e o das formações objetivas do sistema social.
O crescente desenvolvimento tecnológico que ocupa todas as esferas do capitalismo industrial e que segue uma lógica instrumental, portanto implementando a racionalização, acaba causando a tendência à reificação em todos os níveis da sociedade. Segundo Habermas a razão comunicativa é a única forma que possibilitaria a restauração da unidade dos âmbitos, como os da teoria e pratica, do público e privado, separados pela lógica instrumental reducionista que organiza a sociedade atual, por ser um modelo de atuação que leva em conta as relações intersubjetivas baseando-se em um processo onde os participantes podem referir-se ao mesmo tempo a algo que existe no mundo objetivo, social e subjetivo, ainda que somente um dos três aspectos ganhe destaque em sua forma de expressão.
Habermas divide o conceito de trabalho em duas partes, o atuar instrumental e o atuar comunicativo, ampliando a noção de racionalidade ao acrescentar o conceito de comunicação à razão instrumental, e ambas quando vinculadas à reflexão sobre o trabalho na saúde mental, possibilitam levar em consideração a intricada dinâmica das condutas multiprofissionais, por considerar não só as dimensões instrumentais mas também a intersubjetividade presente na dimensão dos sujeitos envolvidos. Para este autor o atuar instrumental corresponde à atuação racional dirigida a um determinado fim e o atuar comunicativo ao diálogo entre as pessoas, ambas irredutíveis entre si e possuindo uma relação mútua.
O atuar instrumental, ou trabalho, tem como objetivo alcançar determinado resultado e abarca duas dimensões: o atuar instrumental guiado por regras técnicas e o atuar estratégico guiado por valores e princípios que exercem influência sobre as decisões a serem tomadas. Já o atuar comunicativo, ou interação, seria mediado por princípios determinados em consonância com grupo e que permitem o estabelecimento de uma relação entre os sujeitos com vistas ao entendimento, a coordenação e realização de uma atividade, sendo fundada portanto na intersubjetividade, livre de qualquer tipo de imposição interna ou externa.
A interação é resultado da comunicação entre sujeitos que se colocam em uma posição de simetria, diferente do atuar instrumental que é passível de crítica e de problematização e pode ter sua validade técnica ou teoricamente justificada, o atuar comunicativo é uma relação dinâmica que pode ser aceita, transformada ou colocada em questão por meio da argumentação, do acordo e da negociação. Com isso se acrescenta à relação profissional-paciente um aspecto de natureza intersubjetiva que exige uma gradual descentralização da perspectiva egocêntrica e reificada do mundo por incluir o tema da subjetividade dos profissionais no cerne da equipe.
Uma contribuição para o tema das relações entre profissional e paciente é fornecida por Eduardo Merhy[17] ao afirmar que todo profissional da área da saúde, ao sustentar as ações que visam a zelar por ela, seria um manejador do cuidado, devendo portanto estar preparado a atuar no campo que ele chama de “tecnologias leves” e, que produziriam acolhimento, estabelecimento de vínculos, autonomia e assunção de responsabilidades, incrementando desta forma os recursos terapêuticos.
O que a teoria do atuar comunicativo nos brinda, ao considerar a participação dos sujeitos envolvidos e implicados com a saúde, é a possibilidade de superarmos um modelo de trabalho cuja abordagem privilegia o aspecto puramente instrumental, pois ela nos possibilita reconciliar o plano sistêmico com o da experiência humana contemplando desta forma o papel fundamental do sujeito como agente que determina suas próprias condições de trabalho e identidade profissional, é por meio desta prática comunicativa que eles poderão questionar e refletir sobre o trabalho realizado e construir um projeto em conjunto adequado às necessidades dos pacientes, além da possibilidade de revisar e renovar o projeto técnico institucional, abrangendo desta forma a dimensão ética no trato entre os profissionais, requisito fundamental quando se pensa em interdisciplinaridade.
O acompanhante terapêutico na instituição
“(. . .) traçar a cada dia seu campo de ação, redefinir suas ferramentas, seus conceitos, lutar contra sua própria nocividade a fim de preservar este domínio sempre ameaçado: o da ética.” J. Oury in "Création et Schizophrénie".
Ao inserir-se no interior de uma instituição, o acompanhante terapêutico é perpassado por inúmeros enunciados que acabam por lhe constituir, estes provém da psicologia, da enfermagem, da medicina, de outros saberes ali existentes e também dos usuários e funcionários do sistema, e fazem com que ele seja objeto de discursos e comentários que além de lhe permearem e modificarem, revelam os diferentes personagens imaginários que lhe são imputados, ou seja, os diversos discursos subjetivos também lhe subjetivam, e acabam por determinar comportamentos, pensamentos e afetos[18].
Para Castoriadis[19] a práxis é um fazer que reflete sobre si mesmo, sobre suas motivações, sobre os elementos em jogo, por isso acaba sendo um processo de desenvolvimento de autonomia por meio do próprio exercício da autonomia, e para este autor tem o sentido de superação dos mecanismos de alienação. Sob o ponto de vista da práxis, não é dos sujeitos que nascem as práticas, o que representaria apenas a superposição de um conhecimento anteriormente dado à uma determinada situação, mas ao contrário, as práticas fazem surgir os sujeitos[20] na medida em que aquelas são produto de uma reflexão destes sobre o quefazer.
Por meio da práxis, da reflexão crítica de suas formas de pensar, agir e sobre as hipóteses que o animam, o acompanhante terapêutico pode justapor as impressões que têm de si mesmo às que recebe para abrir novas possibilidades de compreensão acerca de seu fazer enquanto sujeito e permitir o surgimento de uma identidade profissional como fruto de uma práxis que sempre lhe atualiza, não caindo na armadilha que a instituição nos disponibiliza ao oferecer uma identidade pré estabelecida ou naturalmente dada. Neste sentido o dia a dia passa a ser compreendido como um elemento que autentica e constitui sua prática e o local de trabalho deixa de ser um lugar onde simplesmente se chega, se atende e se vai embora ao final do atendimento e adquire o status de um local onde se entrecruzam um conjunto de forças produtoras e constitutivas de modos de ser e fazer[21].
Habituado ao trabalho interdisciplinar e com a criação redes, tecendo a trama que liga as várias instancias institucionais e sociais, o acompanhante terapêutico também pode ofertar essa expertise em seu trabalho no interior de uma instituição ao propor, criar e sustentar espaços de fala e escuta para que o trabalho não tenda a se resumir apenas ao aspecto instrumental, para isso é necessário que ele esteja atento às nuances da vida institucional e conheça as ferramentas teóricas que lhe permitem fazer uma leitura crítica dos fenômenos que lá acontecem.
Tendo ciência do poder das instituições de produzir alienação, das reflexões acerca dos mecanismos institucionais inconscientes de Käes; da concepção de enfrentamento da alienação da psicoterapia institucional e, da teoria do atuar comunicativo de Habermas que propõe a abertura de um campo que considera o aspecto ético nas relações profissionais, dispomos de alguns elementos para estimular a criação e/ou manutenção de um espaço que propicie: a análise e a reflexão sobre o fazer; a flexibilização dos enquadres e rumos; a supressão das polarizações estéreis entre os saberes e, uma perspectiva relacional que possibilite que as partes envolvidas e muitas vezes contraditórias possam negociar e chegar a uma solução por meio do entendimento.
Em nosso ponto de vista, na qualidade de herdeiro do movimento de desinstitucionalização manicomial o acompanhante terapêutico não pode furtar-se ao compromisso de sustentar em sua prática institucional o permanente questionamento acerca dos mecanismos que subjazem às dinâmicas ali existentes e que por si mesmo tendem a nos levar à alienação por poupar-nos dos processos de reflexão. É por meio da identificação destas dinâmicas que se instauram e se estabelecem que podemos manter em outro nível o emblema da desinstitucionalização, agora em termos de desalienação, nos esquivando do risco de seguir trabalhando alienadamente com a ilusão de estarmos produzindo saúde, ao simplesmente reproduzirmos ou repetirmos como autômatos, sem qualquer autonomia para a reflexão, as práticas mantidas no interior de uma instituição.
Os interrogantes: que lugar ocupo na dinâmica institucional? Como e o que estou produzindo? São sempre bons guias para começarmos a colocar a prática em questão.
Notas
[1] Meus agradecimentos à Luciana Chauí-Berlinck pela leitura deste trabalho na mesa “AT y Salud Publica” no VIII Congresso Internacional de Acompañamiento Terapéutico, realizado na Cidade do México dos dias 14 a 16 de novembro de 2013.
[2] Psicólogo Clínico, psicanalista e acompanhante terapêutico.
[3] Para uma resenha histórica do conceito de instituição remetemos o leitor ao trabalho de T. Luckmann, Teoria de la acción social, Barcelona, Paidós, 1996, p. 117 e ss.
[4] R. ORTIZ, R. (org.) Pierre Bourdieu, São Paulo, Editora Ática, Coletânea Grandes Cientistas Sociais. 1984.
[5] W.L. CASANOVA e S.R. CORKIDI, La institución desde la mirada psicoanalítica: aproximaciones, Tramas subjetividad y procesos sociales, México, 2004.
[6] E. JACQUES, Os sistemas sociais como defesa contra as ansiedades persecutória e depressiva, in M. KLEIN, Novas tendências em psicanálise, Rio de Janeiro, Zahar, 1989.
[7] J. P. VIDAL, O familiarismo na abordagem “analítica” da instituição. A instituição ou o romance familiar dos analistas in R. KAËS et al. A instituição e as instituições, São Paulo, Casa do Psicólogo, 1991. P. 153-171.
[8] R. KAËS, Realidade psíquica e sofrimento nas instituições in R. KAËS et al, A instituição e as instituições, São Paulo, Casa do Psicólogo, 1991. p. 1-36.
[9] E. ENRIQUEZ, O trabalho da morte nas instituições, in R. KAËS et al, A instituição e as instituições, São Paulo, Casa do Psicólogo, 1991. p. 53-79.
[10] W.L. CASANOVA e S.R. CORKIDI, La institución desde la mirada psicoanalítica: aproximaciones, Tramas subjetividad y procesos sociales, México, 2004.
[11] R. KAËS, Realidade psíquica e sofrimento nas instituições in R. KAËS et al, A instituição e as instituições, São Paulo, Casa do Psicólogo, 1991. p. 1-36.
[12] OURY, J. Itineraires de formation, Revue pratique de psychologie et de la vie sociale et d´hygiène mentale. 1991.
[13] MOURA, A. H., Psicoterapia institucional e o clube dos saberes, São Paulo, Hucitec, 2006. p. 37-40.
[14] G. MICHAUD. La Borde. . . un pari necessaire – de la notion d’institution à la psychotérapie institutionnelle. Paris, Gauthier-Villars, 1977.
[15] J. HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro; 1989.
[16] Optamos por utilizar “atuar” ao invés de “ação”, em consideração ao termo handeln utilizado originalmente por Habermas, devido à diferenciação existente na língua alemã entre handlung “ação”, e handeln “atuar”.
[17] E.E. MERHY, Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde, in E.E. MERHY, & R. ONOCKO (org.) Agir em saúde, um desafio para o público, São Paulo, Hucitec, 1997. p. 71– 112.
[18] E. C. PELLICCIOLI, N. GUARESCHI, A. G. BERNARDES, O trabalhador da saúde mental na rede pública: o acompanhante terapêutico na rede pública, disponível em http://www.rizoma.ufsc.br/pdfs/550-of7b-st2.pdf. Acesso em 14 de outubro de 2013.
[19] R. A. CÓRDOVA, Imaginário Social e Educação: criação e autonomia, Revista Em Aberto, Brasília, ano 14, n. 61, jan./mar. 1994, p. 24-44.
[20] E. C. PELLICCIOLI, N. GUARESCHI, A. G. BERNARDES, O trabalhador da saúde mental na rede pública: o acompanhante terapêutico na rede pública, disponível em http://www.rizoma.ufsc.br/pdfs/550-of7b-st2.pdf. Acesso em 14 de outubro de 2013.
[21] M. ATHAIDE, Psicologia e trabalho: que relações? In M. JACÓ-VILELA, Psicologia social: reflexões contemporâneas, Rio de Janeiro, UERJ, 1999. p. 195-219.
Referências bibliográficas:
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