A proposta desescolarizadora de Illich

 

Ivan Ilich e a desescolarização

Como discursos pedagógicos atuais retomam ideias de teóricos críticos ao sistema escolar

Reportagem recente da Folha de S.Paulo (Famílias adeptas da ‘desescolarização’ tiram filhos do colégio em São Paulo, 12/02/2017) aponta o ressurgimento, na prática, do polêmico tema da “desescolarização”. O auge das propostas e do debate sobre o assunto foi na década de 1970, quando vários autores discutiram ou produziram obras com forte crítica à educação compulsória e ao sistema escolar. É o caso de John Holt (autor de Instead of Education: Ways to Help People to Think Better, 1976), Everett Reimer (que publica School Is Dead: An Essay on Alternatives in Education, em 1971) e Paul Goodman, autor do pioneiro livro Compulsory Miseducation, de 1964. Porém, talvez o mais conhecido autor dessa tendência tenha sido Ivan Illich que, com seu livro Deschooling Society (1971), tornou-se um grande impulsionador da discussão.

Abre parênteses. O ano de 2017 marca os 15 anos da morte de dois autores que tiveram grande influência na reflexão a respeito da educação: o próprio Illich e o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Eles são por vezes aproximados pela perspectiva de crítica ao sistema escolar que alguns de seus trabalhos possuíram. Fecha parênteses.

Assim como Bourdieu, Illich não foi propriamente um pedagogo (uma das principais críticas à Deschooling Society é a ausência de uma teoria pedagógica que embase a discussão), mas sim um polímata, um humanista radical. Sua obra possui uma forte inflexão cristã, marcada pelo tema da “corrupção” da mensagem divina pela sociedade moderna. A decadência social se manifesta numa contínua perda de poder e autonomia dos indivíduos, perante os aparatos institucionais, como a escola, o sistema de saúde e a própria Igreja. A educação escolarizada perverte a aprendizagem, assim como a institucionalização religiosa corrompe a fé.

Se as ideias de Illich foram abraçadas pelo ambiente da contracultura, ao longo do tempo, seus posicionamentos – contrários ao uso de drogas e à promiscuidade sexual, críticos dos movimentos missionários na América Latina e do regime cubano de Fidel Castro – desconcertaram e descontentaram seus apoiadores iniciais e muitos outros grupos. Isto explica o fato de que suas obras passaram a ressoar cada vez menos. Como nota o sociólogo Peter L. Berger, “Illich foi um gênio que não cabia em nenhuma garrafa”.

A própria “desescolarização” recebeu críticas, sendo chamada de ingênua, utópica e impraticável. Desse modo, as ideias de Illich ficaram, por assim dizer, adormecidas por longos anos. No entanto, numa série de áreas, ele tem sido relido. Assim, atualmente é visto como uma fonte de inspiração, por economistas e sociólogos, que discutem o “decrescimento” e também por educadores e pais que procuram avançar, na teoria ou na prática, a proposta de desescolarização ou ideias semelhantes como “homeschooling”, “uneschooling” ou “flexi-schooling”.

As propostas educativas de Illich teriam encontrado, agora, um tempo histórico mais propício? Segundo a interessante discussão de Jon Igelmo Zaldívar e Xavier Laudo Castillo parece que sim. As últimas décadas são marcadas pelo crescimento dos discursos e práticas pedagógicas com propostas normativas mais flexíveis, configurando o que os autores chamam, seguindo Bauman, de “pedagogia líquida”. Embora os tipos de discursos e práticas agrupados nessa metáfora sejam heterogêneos, seria possível enxergar certa contiguidade histórica entre este movimento mais recente e a discussão “clássica” dos teóricos da desescolarização. Ambas as tendências estariam associadas à mudança do imaginário social moderno para o pós-moderno, em sua dimensão pedagógica.

É interessante notar, como fazem Jon Igelmo Zaldívar e Xavier Laudo Castillo, que alguns dos movimentos pedagógicos do tipo “líquido” surgem a partir da “opinião comum de que o chamado cibermundo reclama uma nova concepção de aprendizagem” (p. 44). É o caso da “educação expandida”, do “conectivismo”, da “aprendizagem ubíqua”, entre outros.

Estes movimentos e teorias aproximam-se de Illich particularmente na ideia de que o estudante deve ter a liberdade de escolher o que estudar e como aprender. A tarefa não é simples, mas procura fazer com que a iniciativa e a responsabilidade de aprendizagem (assumidas na educação tradicional pelas escolas e professores) retornem aos aprendizes ou, pelo menos, que estes tenham maior engajamento nesses aspectos.

Gostaria de escrever mais sobre Illich, mas creio que estaria traindo suas propostas, ao me comportar como um “professor” a respeito de suas ideias. Melhor que isso é terminar esse texto oferecendo alguns recursos para que pessoas interessadas no pensamento educativo do autor montem grupos de debate (essa era uma ideia de Illich que propunha, pioneiramente, que os computadores poderiam ajudar a formar essas “redes de aprendizagem”).

Assim, seguem algumas sugestões de materiais:

• Ivan Illich. Coleção Educadores do MEC – esse volume reúne vários trechos da principal obra educativa de Illich (traduzida em português como Sociedade Sem Escolas). O livro é também valorizado pela introdução de Marcela Gajardo e pelo texto conclusivo de José Eustáquio Romão que discute a influência de Illich na educação brasileira.

• Un certain regard: Ivan Illich – interessante oportunidade de ver e ouvir Illich, neste programa da televisão francesa (felizmente com legenda em português), no qual ele foi entrevistado pelo intelectual e escritor católico francês Jean Marie Domenach (1922-1997), em 1972.

• Illich-Freire: pedagogía de los oprimidos: opresión de la pedagogia – clássico artigo, da década de 1970, de Rosiska Darcy de Oliveira e Pierre Dominice, que apresenta dimensões do pensamento pedagógico de Illich e críticas às proposta do autor.

• La crítica tardía de Iván Illich a La sociedad desescolarizada: “Estaba ladrando al árbol equivocado” – artigo recente, de Rosa Bruno-Jofré e Jon Ingelmo Zaldívar, que faz uma análise de como as ideias educativas de Illich transformaram-se ao longo do tempo.

• New Scare City – blog (em inglês) inteiramente dedicado a Illich, não mais atualizado (o autor faleceu em 2015). Porém, o conteúdo das postagens, incluindo a iconografia, é muito bom. 

Fonte: https://www.institutonetclaroembratel.org.br/educacao/nossas-novidades/opiniao/ivan-ilich-e-a-desescolarizacao/

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