A terapia peripatética

 

TERAPIA PERIPATÉTICA: É POSSÍVEL UMA CLÍNICA FORA DO CONSULTÓRIO?

Por Demétrius França 

(Περιπατητικός) Peripatético: dado a caminhar, especialmente enquanto ensinando ou discutindo.  Um Léxico Grego-Inglês (A Greek-English Lexicon), 1883 

Em 2003, não tivemos nenhuma Odisséia no Espaço(1). Enquanto estudantes de psicologia em Brasília, ao invés de termos nos deparado com as possibilidades da existência humana diante da tecnologia, recebemos a notícia do fechamento da Clínica Planalto. Esquecida por muitos e sob investigação até seu fechamento, o lugar foi sinônimo da barbárie em Brasília, contabilizando pelo menos 61 desaparecidos, além de diversas denúncias de violações dos direitos humanos ao longo de 7 anos de investigação.

Essa versão reduzida do Holocausto Brasileiro(2), em pleno século XXI, manteve, durante anos, 127 pessoas em privação de alimento, medicamento psiquiátrico e tratamento psicológico. Os colegas da saúde mental conhecem a cronificação decorrente da ausência dos tratamentos psicológicos, ocupacionais e psiquiátricos, além, é claro, das implicações negativas do isolamento social da comunidade: as pessoas desaprendem não apenas o convívio social, mas também o desempenho de atividades corriqueiras, como o cuidado consigo mesmo ou com a própria moradia e as pequenas compras. Essas pessoas têm o direito a um tratamento digno que contemple suas especificidades. Contudo pacientes em situação crônica podem não se adaptar à psicoterapia convencional dentro do consultório.

A terapia peripatética(3), também conhecida como acompanhamento terapêutico, surgiu através de um esforço para atender pessoas em condições crônicas em suas especificidades; uma terapia que se distingue pela natureza ambulante e sem um setting clínico fixo, que pode ocorrer fora dos consultórios e das instituições. Essa clínica potente produz resultados em dois níveis: no campo da reabilitação e da socialização da rotina cotidiana, de um lado, e, do outro, na facilitação da reflexão sobre si mesmo e seu lugar no mundo, próxima da terapia convencional, mas com uma dinâmica distinta, vinculada ao setting clínico ambulante.

Para aqueles que desconhecem as possibilidades dessa clínica, seguem dois exemplos distintos. 

Um senhor de 50 anos sai de um hospital psiquiátrico depois de viver mais de 30 anos em instituições fechadas. Um terapeuta peripatético o apoia no processo de aprendizagem em como utilizar o sistema de transporte público para deslocar-se ao Hospital-Dia ou a sua residência, entre outras coisas rotineiras. Durante esse processo de reinclusão, ele não consegue suportar a rotina de trabalho, em condições bastante flexíveis, porque sua produção delirante passa a gerar uma angústia quanto ao salário recém-adquirido. Entretanto, seu relato sobre o prazer de escolher o próprio sabonete ilustra a importância simbólica que as “pequenas” escolhas podem representar em nossas vidas, e que muitas vezes percebemos somente diante da ausência.

Uma mulher de aproximadamente 30 anos inicia a terapia peripatética dentro da internação, como forma de iniciar a relação terapêutica. O trabalho terapêutico se desenvolve inicialmente para apoiar a organização da rotina quanto à obtenção da medicação no sistema público, ao uso desse remédio e à preparação para retornar ao trabalho. Porém, à medida que as sessões avançam, ela introduz outras questões típicas da terapia convencional, como o desejo de namorar, atritos familiares e as dificuldades sofridas quando ativa profissionalmente. Um dia, ela comenta que recusou a sugestão de sua família para trocar sua então psicoterapeuta. Ela argumentou com seus familiares que “se eles achavam que a terapia não estava funcionando”, ela estava “perto de completar 3 anos sem internação, após uma sequência de internações anuais”.

Mesmo que estas pequenas vitórias nos casos descritos possam parecer insuficientes para os familiares e para as pessoas mais próximas, desejosos de uma reinclusão ou reabilitação completa – o que quer que isso signifique para cada um -, ambos os casos apresentaram vitórias importantes para os pacientes. Vitórias essas que confirmam as possibilidades que podemos alcançar fora de nossos consultórios, através da terapia peripatética.

Em 2018, após 15 anos do fechamento da Clínica Planalto, seguimos sem exorcizar os dilemas da saúde mental que agora ressuscitam através das comunidades terapêuticas e das violações aos direitos humanos(4). Cabe a nós buscarmos estratégias para oferecermos um cuidado terapêutico humanizado, que contemple as necessidades de nossos pacientes, sempre respeitando a dignidade humana.

Talvez os maiores aprendizados da minha trajetória como psicólogo derive das minhas experiências enquanto terapeuta peripatético. A flexibilidade necessária para trabalhar sem um setting clínico fixo proporcionou uma crítica ao trabalho clínico convencional, muitas vezes rígido devido às regras que internalizamos sem uma análise crítica ao longo das nossas graduações. Um exemplo dessa rigidez é a suposta neutralidade do psicólogo, que, levada ao pé da letra, pode gerar um profissional desimplicado das dificuldades vividas pelo paciente.

Consciente que começo a me alongar sobre o assunto, minhas reflexões sobre essa clínica podem ser melhor acessadas em Terapia Peripatética de Grupo: Considerações, primeiro livro no Brasil exclusivamente dedicado ao tema e lançado pela editora Appris. 

Notas: 

(1) Filme de 1968 feito pelo diretor Stanley Kubrick, em parceria com Arthur C. Clark, renomado escritor de ficção científica que publicou um livro homônimo. 

(2) Livro da jornalista e escritora Daniela Arbex sobre o maior manicômio que existiu no Brasil. A instituição contabilizou milhares de mortes e violações dos direitos humanos. 

(3) O termo acompanhante terapêutico é de uso corrente e majoritário no Brasil e na Argentina, os maiores praticantes dessa clínica. Entretanto, o termo sofre críticas porque é genérico e gera confusão entre profissionais da saúde que desconhecem este trabalho, uma vez que não é autoexplicativo. Outra crítica se refere à tradução para língua inglesa, pois acompanhamento em inglês (accompaniment) não reproduz o mesmo significado que em português ou espanhol.  

Fonte: https://coluna.desha.com.br/terapia-peripatetica-e-possivel-uma-clinica-fora-do-consultorio-demetrius-franca/?fbclid=IwAR0PqaS5I4Dl7Q6HVYkoEW50lFUHfPoMydZMsZHgR2H0FcUQfyPIlGOZrcc

BIGTheme.net • Free Website Templates - Downlaod Full Themes