A nutrição da criança com a síndrome do espectro autista

   

A Nutrição da Criança Autista 

Por César Augusto Bueno dos Santos - Mestre em Patologia Geral pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (1998), Graduado em Nutrição pela Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Ouro Preto (1995).

 

Em 1943, KANNER, descreveu em seu artigo o termo "autismo na primeira infância", após analisar um grupo de 11 crianças que apresentavam severos problemas de sociabilidade, comunicação e comportamento (1). Atualmente, o autismo é descrito como uma forma de desordem neurológica de causa desconhecida, caracterizada pela deterioração e demora na interação social e na aquisição da linguagem, bem como, déficit de habilidades com padrões repetitivos de comportamento e sintomatologia iniciada antes dos 3 anos de idade (2,3).

Foi estimada nos Estados Unidos uma ocorrência de 10 a 20 casos para 10.000 crianças nascidas vivas (4). Nesta desordem neurológica existem anormalidades na estrutura e função cerebral, especialmente com implicações diretas no sistema límbico e cerebelar. Devido a estas áreas serem atingidas, aproximadamente 75% a 80% das crianças com autismo apresentam algum grau de retardo mental e, em muitos casos, esses indivíduos não conseguem ser independentes na vida adulta (2).

Nos indivíduos afetados pela desordem, observam-se alterações nos níveis das substâncias neurotransmissoras do sistema nervoso central, tais como, a dopamina, a norepinefrina e a epinefrina, que são substâncias conhecidas como catecolaminas. Essas alterações podem resultar em sintomas comportamentais e/ou neurológicos, que estão diretamente implicados no controle motor, emocional e reguladores hormonais, característicos do indivíduo autista (5). Assim, a alteração emocional é um dos pontos mais importantes no autismo, e alguns indivíduos podem se apresentar mais agressivos e outros, mais passivos (6).

No entanto, diversos outros pontos de atividade comportamentais podem estar afetados nos indivíduos com autismo, como:

- A comunicação: o autista apresenta ausência de contato olho a olho, aparente surdez, sendo no início da infância um desenvolvimento de linguagem, mas com interrupção abrupta em seguida;

- A sociabilidade: o autista age como se não houvesse ninguém próximo, podendo ocorrer ataque físico e agressão a outras pessoas em provocação, tornando uma pessoa inacessível;

- A exploração ambiental: o autista pode apresentar fixação por um único item ou atividade e prática de ações estranhas, tais como, oscilação das mãos em forma de bandeiras, cheira e lambe brinquedos, não mostra sensibilidade para queimaduras ou contusões e em alguns casos automutilação (7).

Segundo informações do "Centro de Tratamento Pfeiffer (PTC)": AUTISM: RESERCH UPDATE (1995), os autistas apresentam, entre outras alterações, um defeito na função da proteína metalotionina que tem como função básica, a detoxificação de metais pesados, anormalidade esta que aparenta ser genética, tornando, o cérebro do autista extremamente sensitivo para metais tóxicos e outras substâncias ambientais (5). Esta proteína está, também, envolvida diretamente no desenvolvimento e maturação cerebral e do trato gastrintestinal nos primeiros anos de vida do ser humano. Por outro lado, a função diminuída da proteína metalotionina dificulta também, a entrada de alguns minerais nas células (8).

Entre eles estão o cobre e o zinco que são responsáveis pela maturação intestinal, função imune e crescimento celular (5). De fato, algumas das principais evidências observadas no autismo são as anormalidades neurológicas e metabólicas. Diante disso, várias investigações têm sido direcionadas para a função de alguns nutrientes na alimentação do autista, objetivando uma melhora nos sintomas da desordem neurológica, e, tornando o tratamento nutricional um dos primeiros pontos que devem ser observados nas crianças autistas (9).

PANKSEPP (1979) em um experimento observou similaridades dos sintomas dos indivíduos com autismo em relação a animais que consumiam experimentalmente opióides, no caso estudado: a morfina (10). Em 1988, GILLBERG, detectou elevados níveis de algumas substâncias conhecidas na época por pseudo-endorfinas (substância com atividade opióide) no líquido céfalo-raquidiano de alguns autistas (11). E em 1990, SHATTOCK identificou a presença de alguns peptídeos (pequenas cadeias de aminoácidos) anormais na urina de 80% das 1.100 pessoas autistas analisadas (12).

Esses peptídeos são derivados do metabolismo incompleto de certas proteínas. O mesmo autor descreveu que uma parte desses compostos pode ser direcionada ao cérebro, provocando interferências na atividade dos neurotransmissores, devido sua ação neuro-regulatória e possível estimulação pré-sináptica. Os peptídeos anormais detectados foram nomeados de gluteomorfina ou gliadomorfina proveniente do metabolismo do glúten e a caseomorfina proveniente do metabolismo da proteína caseína.

As substâncias inicialmente já identificadas por PANKSEPP (1979) e depois por REICHELT (1981) foram confirmadas por SHATTOCK & LOWDON (1991) que sustentaram a seguinte hipótese: o autismo pode ser uma consequência da ação dos peptídeos de origem exógena, a qual afeta diretamente a neurotransmissão do sistema nervoso central dos indivíduos já afetados pelo distúrbio (10,13,14).

KNIVSBERG et al.,(1995) ao analisarem a urina de autistas, também, observaram níveis anormais dos mesmos peptídeos, provenientes de defeitos no metabolismo do glúten e caseína nestes pacientes (15). Evidências têm mostrado que estes peptídeos, provenientes da quebra de alguns compostos proteicos, apresentam ação similar aos opióides, e, quando intactos podem atravessar a parede do intestino, atingir a corrente sangüínea e chegar ao cérebro em maior quantidade nos indivíduos autistas (16). Nos últimos 30 anos, alguns autores têm relatado entre outros problemas uma série de disfunções gastrintestinais nos autistas (16,17).

HORVATH & PERMAN (2002) descreveram alterações patológicas na permeabilidade intestinal, aumento da resposta secretória à injeção intravenosa de secretina e diminuição da atividade enzimática digestiva, o que demonstra uma conexão relativa entre as ações do cérebro e do intestino (3). Entretanto, também existem relatos de doença celíaca e intolerância à lactose associada à síndrome do autista, embora um grupo considerável de indivíduos que apresentam essas desordens neurológicas em concomitância com outras, sejam passíveis de problemas na digestão das proteínas do glúten e da caseína, o que acrescentaria maiores problemas aos indivíduos afetados e maiores complicações na patogênese do autismo (18).

Diversos outros efeitos são observados quando os peptídeos opióides se elevam na corrente sanguínea, entre eles estão, a alteração do nível de acidez estomacal, alteração da motilidade intestinal e redução do número de células nervosas do sistema nervoso central e consequente alteração na neurotransmissão (19,20). O excesso de atividade dos peptídeos opióides no sistema nervoso central também pode resultar em um grande número de interferências neurais por elevadas alterações funcionais de atividade nervosa, o que afeta diretamente a percepção, a emoção, o humor e o comportamento do autista, entre outros sintomas (21).

Diante das variações neurológicas de cognição e comportamento, as alterações metabólicas e os efeitos nutricionais dos peptídeos opióides nos autistas são significativos, segundo o grupo de REICHELT et al.,(1990) ao publicarem dados em relação a nutrição, demonstraram a efetividade dos programas de nutrição, apesar de alguns trabalhos ainda não serem considerados conclusivos e não estarem tão claros em relação a atividade nutricional para o autista (13). No entanto, outros autores também têm considerado que o tratamento nutricional do autista é fundamental, através de embasamentos experimentais ou individuais, obtendo relatos de respostas efetivas.

Os estudos de RIMLAND & BAKET (1996) mostraram dados positivos de melhora no tratamento nutricional quando unicamente utilizando a terapia baseada em medicamentos (22). Diante das ações terapêuticas nutricionais existentes, o tratamento do autista é complexo e deve ser feito com base em uma série de abordagens clínico-nutricionais, com o objetivo também de detectar possíveis deficiências nutricionais decorrentes ou não da doença. Associado a isso deve ser feito, também, o levantamento semiológico completo da vida do paciente. Enfoques e evidências médicas que possam ser somadas as alterações neurológicas e/ou clínicas (tais como: uso de medicamentos que possam interferir no metabolismo de algum componente da dieta, distúrbios físicos e/ou psíquicos, entre outros), tornam-se importantes no tratamento geral do autista.

A proposta apresentada visa esclarecer, aos Nutricionistas o conhecimento básico do distúrbio autismo e a abordagem Nutricional fundamental e alternativa no tratamento atual, baseados em dados da literatura, bem como em nossa experiência no tratamento desses pacientes atendidos na APAE. Proposta Nutricional De posse de todas informações semiológicas necessárias ao entendimento do distúrbio, é indicado utilizar as seguintes estratégias nutricionais propostas: - Orientações e informações sobre a desordem do autismo e suas implicações na nutrição, inicialmente devem ser direcionadas para os pais e profissionais não-médicos da instituição que, por ventura atenda estes pacientes; - Observar a viabilização do tratamento nutricional na residência dos autistas, sempre respeitando as condições sócio-econômicas de cada família; - O tratamento Nutricional, somente deve ser iniciado, após o conhecimento da complexidade da doença, que, se faz com a retirada controlada dos principais nutrientes que resultam na formação dos opióides, que é um dos principais causadores dos problemas neurológicos de cognição e comportamento do autista.

Assim, sugere-se o seguinte protocolo adaptado e ordenado:

A. Retirada da caseína e de todos os produtos derivados dessa proteína dos alimentos destinados aos autistas, com observação constante do Nutricionista por um período de 3 semanas (tempo experimental de possíveis reações adversas do procedimento);

B. Após o período experimental em relação à restrição da caseína e derivados, inicia-se a retirada do glúten e derivados da alimentação do autista, seguindo o mesmo critério de observação utilizado para caseína, mas agora por um período experimental de 5 meses; As observações constantes do nutricionista se fazem necessárias com o objetivo de prevenir possíveis quadros de deficiências de vitaminas e minerais que possam ser iniciadas com a retirada dos componentes alimentares conforme descritos e, principalmente, a possibilidade do aparecimento da síndrome de abstinência, ocasionada pelo bloqueio e interferência da ação opióide dos peptídeos no sistema nervoso central, a qual pode não apresentar grande consequência nutricional para o paciente.

Mas se houver, alguma consequência, estas surgirão como alterações psicológicas e psicomotoras significativas, e nesse caso, deverão ser discutidos juntamente com a equipe de tratamento do paciente. A ação opióide dos peptídeos no sistema nervoso central deve ser um dos fatores mais importantes discutidos no tratamento da criança com autismo, bem como, os efeitos da síndrome de abstinência nestes indivíduos, relacionada à restrição de glúten e caseína, requerem uma atenção intensiva, não só do Nutricionista, mas também, de outros profissionais que estão vinculados ao tratamento do autista.

Diante de todas as implicações do distúrbio autista associado à Nutrição, o tratamento deve ser sempre aplicado de forma interativa e multidisciplinar, bem como integração dos membros da família do paciente, objetivando, não a cura da doença, mas uma melhora efetiva nas características e sintomas da desordem. Agradecimento pela autorização (TCL) de uso da proposta de tratamento às crianças autistas atendidas na APAE (Divinópolis-MG). 

Referências:

1) KANNER, L. Autistic disturbance of affective contact. Nervous child, v.2, p.217-250, 1943.

(2) SIEGEL, B. In: The world of the autistic child: understanding and treating autistic spectrum disorder (Oxiford University Press, New York) p. 9-11, p.316-317 e 328, 1996.

3) HORVATH, K. & PERMAN, J.A. Autism and gastrointestinal symptoms. Curr. Gastroenterol. Rep., v.4, p.251-258, 2002.

4) FILIPEK, P.A. et al. The screening and diagnosis of autistic spectrum disorders. J. Autism Dev. Disord., v.29, p.437-482, 1999.

5) AUTISM SPECTRUM DISORDERS: PERVASIVE DEVELOPMENTAL DISORDERS (2007). Depto of Health and Human service - National Institute of Health (NIMH) 41p.

6) KANE, P. (2000). Reversing autism with nutrition. Millville, New Jersey, USA. Copyright. In: www.bodybio.com/a-article1.html. Acesso em 22/05/2006.

7) NIMH, National Institute of Mental, Office of Communications, v. 5 p53-61. 2003.

8) TOMMEY, J. The autism file. Current Gastroenterology Reports. v.9 p 251-258, 2002.

9) MEEH-MADRONA, 2000. In: www.hearling-arts.org/children/. Acesso em 15/08/2006.

10) PANKESEPP, J. A neurochemical theory of autism. Trends in neuroscience, v.2, p.174-177, 1979.

11) GILLBERG, C. The role of endogenous opióides in autism and possible relationship to clinical feature in wing. 1° ed. Aspects of autism: biological research. Gaskell: London, p. 31-37, 1988.

12) SHATOCK, P. et al. Role of neuropeptides in autism and their relationship with classical neurotransmitters. Brain Dysfunction, v.3, p.328-345, 1990.

13) REICHELT, K.L. et al. Gluten, milk proteins and autism: dietary intervention effects on behavior an peptide secretion. J. Appl. Nutr., v.432, p.1-111, 1990.

14) SHATTOCK, P & LOWDON, G. Proteins, peptides and autism. Parts 2: Implications for the education and care of people with autism. Brain Disfunction, v.3, p.323-334, 1991.

15) KNIVSBERG, A.M. et al. Dietary intervention in autistic syndromes. Brain Disfunction, v.3, p.315-327, 1990.0

16) D'EUFEMIA, P. et al. Abnormal intestinal permeability in children with autism. Acta Paediatrica, v.85, p.1076-1079, 1996.

17) GOODWIN et al. Gastrointestinal abnormalities in children with autistic disorder, v.135, p.322-347, 1999.

18) SHATTOCK, P & SAVERY, D. Urinary profile of people with autism: possible implications and relevance to other research. Conference proceeding "Psychological perspectives from research & pratice", University of Durhan april. p.309-325, 1996.

19) IMPRONTA, C. et al. Peripheral opioid receptors mediate gastrointestinal secretory and motor effects of dermorphin n-terminal tetrapeptide (ntt) in the dog. Neuropeptides, v.10, p.167-176, 1987.

20) SHATTOCK, P & SAVERY, D. Autism as metabolic disorder. Sunderland: Autism Research Unit.

21) OZNOFF, S. et al. Executive functions abilities in autism and tourette syndrome: an information processing approach. Journal of Child Psychology and psychiatry andallied disciplines, v.35, p.1015-1032, 1994.

22) RIMLAND, B. & BAKER, S.M. Alternative approaches to the development of effective treatment for autism. Journal of Autism and Development Disorders, v.26, p.237-241, 1996.  

Fonte: https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/nutricao/a-nutricao-da-crianca-autista/19162

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