Retratos da vida

  

A vida de Salvatore nunca mais foi a mesma depois de seu casamento. Antes sempre sorridente, bem humorada e companheira, bastou uma aliança no dedo para que a mulher se transformasse. Sem aparente motivo passou a estar sempre insatisfeita. Tudo era motivo para uma reclamação, tinha explosões de ira e mostrava-se excessivamente preocupada com a limpeza. Com o passar do tempo, estas e outras atitudes acabaram por inviabilizar qualquer proximidade física, emocional ou sexual. De seu lado, ele evitava ficar irritado ou esbravejar, esforçando-se para preservar o bom-humor. Incapaz de uma resposta mais rude, pacientemente contornava os conflitos. Em muitas ocasiões ouvia tudo calado, pensava que, de outro modo só pioraria a situação. Assim passavam se os dias.

Naquele final de tarde, uma vez mais Salvatore e sua mulher se desentenderam.  Aborrecido porque aquilo parecia não ter mais fim, ele irrompeu com passos fortes pela cozinha, contornou a mesa desarrumada, seguiu pelo estreito corredor e, chegando ao pequeno hall que antecede a sala, parou em frente ao antigo espelho. Fitou-o com desejo de chegar às profundezas do abismo que se instalara entre eles. Seu olhar atravessou a camada refletiva prateada. Foi lançado em direção das lembranças de longas e cansativas desavenças, sentiu-se completamente solitário num deserto. Quis fazer um retrato daquele instante.

Após uma longa noite de sono intranquilo, na manhã seguinte depois do café da manhã, ele esperou que ela saísse para trabalhar, levantou-se da poltrona, jogou o jornal sobre a mesa de centro e dirigiu-se a passos pesados e vagarosos ao exuberante jardim na entrada da casa. Colheu de modo descuidado um grande ramalhete de flores de várias cores e algumas folhagens.

Atravessou sem pressa o corredor lateral em direção à área de serviço, chegando lá largou tudo sobre a cadeira onde se sentava nas noites quentes de verão. Olhou para os lados, encontrou um balde de tinta que restara da pintura da sala. Depois de lavá-lo para retirar a poeira misturada com um resto de tinta, acrescentou um palmo de água. Jogou ali tudo o que colhera. Pegou o balde, a cadeira e se dirigiu à edícula ao lado.

Abriu a porta e entrou. Viu que o piso ainda não havia sido varrido depois da reforma, e que a cesta de vime de sua mãe havia sido esquecida junto a parede frontal. Preferiu não pensar em nada. Deixou tudo como estava. Pegou a cadeira e colocou sobre ela o balde, ajeitou-o para ficar exatamente no centro do assento. Deu dois passos para trás e olhou. Ficou satisfeito.

Apesar de aposentado, a preocupação estética jamais abandonara o fotógrafo. Deu meia volta e saiu. Não voltaria lá nos dez dias subsequentes, não se preocupou porque era um local que a mulher dificilmente costumava frequentar. O clima seguiu igualmente seco e quente do lado de fora e árido no interior da casa.

No meio da manhã ensolarada do décimo primeiro dia retornou. Abriu a porta, um largo feixe de luz atravessou-lhe a frente iluminando o cômodo. Seus olhos buscaram a cadeira. Gostou muito do que viu. Respirou fundo, um sorriso coloriu-lhe os lábios, sentiu-se representado pela composição. Exatamente como ele queria brindar. Calmamente pegou o celular, afastou-se do feixe de luz, girou seu corpo de forma a ficar de frente para a quina da parede, centralizou seu arranjo e fotografou. Deixou deliberadamente a porta entreaberta e se retirou.

Como era dia de seu aniversário, Madeleine deveria chegar em casa por volta do meio-dia. Como fazia sempre, abriria o portão, passaria pelo corredor lateral, deixaria a sandália na área de serviço e calçaria o par de chinelos antes entrar na casa pela cozinha. A porta da edícula ligeiramente aberta certamente atrairia sua curiosidade, pensou.

Convicto disso, com passadas leves atravessou o corredor mais rápido do que de costume e foi em direção à rua. Passou pelo portão e virou à esquerda com destino à casa de sua mãe. Já no meio do quarteirão lembrou-se das aulas de música e que ela lhe apresentara Haendel. As recordações lhe envolveram numa paz que não experimentava há muito tempo. Sua memória evocou Aleluia. Imerso no refrão seguiu caminhando, reconciliado consigo mesmo e com sua natureza morta. Sacou o celular do bolso, contemplou a imagem. No instante que pensou em nomeá-la, três palavras lhe atravessaram como um raio, morte em vida.

Deus se conta!

jan.24

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