A critica à modernidade de Enrique Dussel

 

A critica descolonial em Enrique Dussel: Desmitificação da modernidade européia

Por Cristina Borges - Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) - Doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP; pós-doutoranda em Ciência da Religião na PUC-MG.  

Resumo: O presente artigo trata da crítica à modernidade empreendida pelo filósofo Enrique Dussel. Situa a reflexão dusseliana na perspectiva descolonial em sintonia com o grupo latino-americano Modernidade/Colonialidad. Mesmo não usando o termo colonialidade, que aparece em finais dos anos de 1990, Dussel se afina ao grupo quando propõe a superação da modernidade via transmodernidade. Proposta ética da sua filosofia da libertação que anuncia ser o seu pensar descolonial.

Palavras-Chave: modernidade, colonialidade, descolonial, transmodernidade, eticidade. 

O grupo Modernidad/Colonialidad se desponta, na atualidade, como o mais importante coletivo de pensamento crítico na América. Constituído de pensadores provenientes das mais diversas áreas do conhecimento, caracteriza-se pela proposta descolonial que lança no circulo de debates sobre a pós-modernidade e globalização. Diferencia-se da perspectiva pós-colonial, apesar da proximidade que com essa mantém, ao situar o século XVI como ponto de partida para suas discussões sobre as relações de poder. Medida que implica no reconhecimento da racialização do poder. Esta, seria fundamento e base para a instalação do sistema capitalista e inauguração da modernidade europeia.

O texto em questão trata da crítica tecida a essa versão de modernidade, especificamente a desenvolvida pelo filósofo Enrique Dussel. Um dos mais relevantes pensadores do grupo Modernidad/Colonialidad que juntamente com Santiago Castro-Gómez, Maria Lugones e Nelson Maldonado-Torres alimenta a discussão filosófica neste coletivo sobre os conceitos modernidade e colonialidade. A perspectiva descolonial/subalterna assumida por esses filósofos pode ser considerada uma tradução subversiva da Modernidade, à medida que seguem tendências críticas deste fenômeno.

A crítica à Modernidade ultrapassa limites teóricos se impondo enquanto uma atitude revolucionária, uma vez que toma partido dos vencidos e denuncia a história dos vencedores como uma história de sucessão de desastres. Dessa forma, a crítica é a contramão do eurocentrismo, não no sentido de “nadar” contra a corrente, mas o caminho de volta no resgate e busca do que ficou perdido e necessita ser desvelado pela crítica.

A consciência de si exige dos povos das regiões colonizadas discernimento sobre a contemporaneidade globalizada enquanto momento entremeado de elementos culturais do passado e do presente. Tempo que se faz na diferença e torna evidente a história mundial enquanto história de poder. A crítica à Modernidade é obrigatória neste momento, uma vez que clarifica sobre as diferenças e suas causas, bem como sobre a permanência de relações de poder coloniais, a colonialidade. Cunhado pelo sociólogo peruano, o conceito de colonialidade, de forma simples denuncia a manutenção nos dias atuais de relações raciais de poder. É um conceito quase obrigatório para a compreensão do que é ser marginal, na atualidade, em continentes como América Latina e África, bem como para o entendimento das migrações que envolvem o passado étnico destes continentes.

Em sintonia com o Modernidad/Colonialidad concebemos a Modernidade enquanto autonarrativa europeia construída a partir do Renascimento quando os europeus conceberam-se a si mesmos como o centro do mundo. A Modernidade é uma narrativa originada a partir de uma nova visão do ser humano, uma visão antropocêntrica, racional e impulsionadora do progresso. Sustenta esta autonarração a crença de que condições internas, isto é, essencialmente europeias, teriam permitido à Europa a superação, pela sua racionalidade, de todas as outras culturas (DUSSEL, 2015, p.51).

O Renascimento Italiano, a Reforma Protestante, a Ilustração alemã e a Revolução Francesa seriam os fenômenos históricos de natureza europeia que teriam conduzido a Europa, pelo esforço da razão, à superioridade cultural e, consequentemente, racial. Este autorelato ganhou proporções tais que culturalmente ainda se encontra enraizado no imaginário tanto europeu quanto das culturas subalternizadas pela colonização. Além disso, ofuscou e ainda ofusca a violência colonial criando á medida em que se desenvolveu sua outra face, a colonialidade.

Enrique Dussel (2015,2007), fundamentado na história, desmitifica a ideia de Modernidade enquanto expressão do espírito europeu. Para o filósofo, o projeto europeu era fazer da América e África extensões da Europa e transformar seus habitantes em “mesmos”, isto é, o eu europeu deveria ser o objetivo dos colonizados.

O lugar da América na história mundial, ou melhor, o seu não-lugar de sujeito, inquietou espíritos como o do filósofo Enrique Dussel, que se empenha não apenas em negar este não-lugar, mas em identificá-lo na história mundial. Seus estudos de ética, filosofia política e de cultura latino-americana foram essenciais para que se compreendesse a parte ocupada pela América Latina na história Mundial e, consequentemente, levou a uma visão crítica da Modernidade, desmitificando-a e abrindo espaço para olhá-la além da “excepcionalidade europeia”.

O ponto de partida da reflexão dusseliana é a América Latina, cerne para a compreensão de uma realidade que se encontrava oculta: o sofrimento do outro subjugado, explorado, silenciado e subalternizado em seus saberes. Para Dussel (1992), o fato histórico que funda a Modernidade foi o descobrimento da Ameríndia, evento essencial na constituição do ego moderno. A partir de Dussel, é compreensível a ideia de que a formação de um eu europeu passava pela transformação do ameríndio em mesmo, em algo que deveria ser forjado pelo próprio europeu à sua semelhança.

A constituição do ego moderno se deu a partir do descobrimento da Ameríndia, fato histórico fundante da Modernidade (1992, p.29). A construção deste ego não pode ser encarada como uma construção superficialmente subjetiva, pois, em sua subjetividade, o ego moderno passa a ser o centro e o fim da história, justificando o fato de todos aqueles que não o possuem também não possuírem história. Sem história, sendo o mesmo, moldado à semelhança do europeu, o Outro é completamente destituído de alteridade. A experiência europeia-moderna do descobrimento do Outro se processou na sua negação, no seu ocultamento e silenciamento e, as consequências foram drásticas para o Outro.

Sua negação traduziu a afirmação moderna de ser incapaz de contribuir na aprendizagem do Ser europeu. Isso viabilizou o estabelecimento de ideologias eurocêntricas que manifestavam a realidade e a história enquanto movimentos do espírito europeu em direção a uma perfeição não muito distante. As outras culturas - consideradas inaptas para tal movimento -, deveriam ter a Europa enquanto paradigma existencial. Para tanto, deveriam ser dirigidas e dominadas. Destituídas de história e de racionalidade, caberia às culturas além da Europa Ocidental “entrar” na história pela mão dessa região.

Reduzido a outro, sendo mesmo, mas diferente, o Outro é matéria do eu moderno. Vejamos o que nos diz Dussel (1992, p.46):

O ego moderno apareceu em sua confrontação com o não-ego; os habitantes das novas terras descobertas não aparecem como Outros, e sim como o Mesmo a ser conquistado, colonizado, modernizado, civilizado, como “matéria” do ego moderno. E é assim como os europeus (ou ingleses em particular) se transformaram (...) nos “missionários da civilização em todo o mundo”, em especial com “os povos bárbaros”.

Essa seria, na perspectiva da Modernidade europeia, a parte que cabe à América Latina na história mundial e na Modernidade: o lugar do mesmo, que está sempre em busca da perfeição europeia, mas completamente responsável pela sua barbárie, e assim culpado pela conquista e pelo uso da violência contra si mesmo. A saída da barbárie somente com o uso da força e imposição do sofrimento.

Dussel empreende sua crítica ao demonstrar que a Modernidade é invenção europeia. Invenção que se tornou um mito que precisa ser desconstruído para a libertação de suas vítimas. A modernidade enquanto mito é vista como fenômeno europeu que oculta a América Latina enquanto alteridade na história mundial. A filosofia, para Dussel (1995, p.18) seria o instrumento desta desconstrução/libertação. A experiência inicial da Filosofia da Libertação consiste em descobrir o “fato” opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem “senhores” de outros sujeitos, no plano mundial (desde o início da expansão européia em 1492); fato constitutivo que deu origem à “Modernidade”), Centro-Periferia; no plano nacional (elites-massas, burguesia nacional-classe operária e povo); no plano pedagógico (cultura imperial, elitista, versus cultura periférica, popular, etc); no plano religioso (o fetichismo em todos os níveis), etc.

Inquietações e dúvidas levaram o filósofo a investigar a história. Interessante que do fato histórico Dussel segue em direção à crítica filosófica e proposição de uma ética libertadora. Para tanto, a história precisa ser vislumbrada não apenas do ponto de vista dos dominadores, ou mesmo do ponto de vista dos dominados, mas dos fatos sociais e históricos em si.

Um entendimento histórico descomprometido de interesses de dominação do Outro descortina fatos que nos levam às conclusões desmitificadoras, como a constatação da Europa moderna ser uma invenção ideológica, bem como ser também uma invenção sua a exclusividade em relação ao mundo grego. O que nos leva a outra constatação: a da não existência de uma história mundial antes de 1492. É o que nos afirma o pensador Enrique Dussel (2015, p.25) no artigo Europa, Modernidade e eurocentrismo (1991) e na obra Ética da Libertação (2007). Ele procura desmitificar a identificação entre Europa e Grécia no sentido de que a primeira teria resgatado teoricamente a cultura da segunda. Em função disso, criou-se o mito de ser a Europa, do ponto de vista da ética e da filosofia, um prolongamento da Grécia. O filósofo então propõe repensar o conceito de Europa.

Afirmando que “a mitológica Europa é filha de fenícios, logo, de um semita”, Enrique Dussel (2015) demonstra que a relação entre Europa e Grécia não existiu da forma como o autorrelato europeu coloca. Se recorrermos à história dos semitas, propõe o filósofo, veremos que após a saída do litoral norte do mar vermelho este povo fixou-se na palestina. Neste período, “esta Europa futura se situaba al norte de la Macedônia, y al norte de la Magna Grecia em Itália” (Dussel, 2015, p.41). Localizada fora da Grécia, a Europa estaria ocupada por povos bárbaros, tal como os gregos clássicos classificavam aqueles que não eram gregos. A Grécia originária, portanto, estaria, nesta perspectiva, fora do horizonte da futura Europa moderna, o que desmitifica o histórico esquema unilinear Grécia-Roma-Europa. Esquema que traduz que a Europa teria, do ponto de vista epistemológico, trazido à superfície a cultura greco-romana e assim alcançado, na arte, na estética e no pensamento, condições extraordinárias para inauguração da Modernidade e condução de uma história Mundial.

Uma destas excepcionalidades seria a Renascença. Como sabido, o Renascimento significou o retorno do humanismo grego adormecido no medievo. Mas, para Dussel (2015, p.42), o esquema Grécia-Roma-Europa é uma invenção ideológica de fins de século XVIII que legitima o autorrelato europeu. Pensando na Modernidade enquanto autonarrativa europeia, decerto o esquema em questão foi essencial na construção desta.

Outro argumento deste pensador diz respeito ao que realmente seria o mundo ocidental. O Império Romano - incluindo norte da África – onde o latim reinava absoluto enquanto língua, não englobava a Grécia, a Ásia e os reinos helenistas. Este seria o mundo oriental dominado pela língua grega o que torna impossível, nesta fase, um conceito de Europa enquanto cultura excepcional. Completa este argumento o fato de, a partir do século VII, o Império Romano Oriental cristão enfrentar o mundo árabe-muçulmano crescente (Dussel, 2015, p.43). Neste período, vislumbra-se uma Europa latina medieval frente a ameaça do mundo árabe-turco. Este elege Aristóteles como filósofo enquanto o cristão o vê com restrições. Antes do século XII, coloca Dussel (2015, p.44), o estagirita.

Es considerado más un filósofo en manos de los árabes que de los cristianos. Abelardo, Alberto Magno y Tomás de Aquino, contra la tradición y arriesgándose a condenaciones, usan al Estagirita. Em efecto, Aristóteles será estudiado y usado como el gran metafísico y lógico en Bagdad, mucho antes que sea traducido en la España musulmana al latín, y de To l e d o llegue a París a finales del siglo XII.

A partir do século XII, a Europa distingue-se realmente da África quando esta, ao norte, torna-se muçulmana diferenciando-se também do mundo oriental. A partir do XII, é possível perceber a formação de uma cultura mais “homogênea” em função do Feudalismo. Mesmo assim, de acordo com Dussel, podemos falar de uma Europa latina sitiada pelo mundo muçulmano (p.45) e, em relação a este a Europa Latina seria uma periferia.

Um dado importante que nos traz Dussel (p.44) é sobre as Cruzadas, primeira tentativa da Europa de impor-se no Mediterrâneo. O fracasso mantém sua cultura como periférica e isolada pelo mundo turco muçulmano. Portanto, segundo o raciocínio deste pensador, antes da chegada à Ameríndia não é possível falar de uma Europa nos moldes da Europa Moderna, isto é, como espaço cultural excepcionalmente superior a outros. Até o século XVIII, a Europa latina era uma cultura periférica não sendo centro da história mundial e nem do continente euro-afro-asiático. O próprio helenismo, apesar de presente no mundo muçulmano enquanto difusor da cultura grega, não havia alcançado a “universalidade” tão apregoada pela Modernidade.

Diante do exposto é natural perguntar sobre como se teria dado o nascimento da ideologia eurocêntrica. Vejamos a resposta de Dussel (2015, p.45): no Renascimento italiano, após a queda de Constantinopla, inicia-se uma fusão:

o mundo ocidental latino une-se ao grego Oriental e enfrenta o mundo turco, o que, esquecendo-se da origem helenístico-bizantina do mundo muçulmano, permite a seguinte equação: Ocidental=Helenístico+Romano+Cristão; nasce assim a ideologia Banto do romantismo alemão.

Enfim, de acordo com as argumentações apresentadas pelo filósofo a ideia de que historicamente regiões como a Ásia fossem pré-história da Europa, e que sequencialmente ascendeu ao mundo grego, para em seguida elevar-se ao mundo pagão e cristão e após ao cristão medieval, para que seu ápice fosse o universo europeu moderno, é uma construção ideológica que necessita ser desmitificada. A Grécia, durante séculos esteve distante da Europa não sendo sua ideologia - o helenismo - prerrogativa europeia. Segundo este raciocínio, a Europa promoveu um rapto da Grécia ao ignorar a presença do helenismo em mundo muçulmano.

Retornando ao conceito europeu de modernidade relembremos: esta seria um processo europeu de natureza excepcional. Características internas da Europa teriam permitido a este continente a superação, pela sua racionalidade, de todas as outras culturas. O Renascimento Italiano, a Reforma Protestante, a Ilustração alemã e a Revolução Francesa seriam os fenômenos históricos responsáveis por colocar a Europa, pelo esforço da razão, na Modernidade.

A perspectiva descolonial, além da pós-colonial não corrobora tal versão porquanto a mesma não contempla a América Latina, espaço imprescindível para o estabelecimento da Modernidade. Eurocêntrico, este conceito de modernidade assenta a Europa enquanto lugar da racionalidade, com a obrigação de orientar/arrastar todas as outras culturas para o que compreende como racionalidade. A história moderna demonstra que tal “orientação” se fez e se faz pelo silenciamento dos saberes produzidos pelas culturas arrastadas.

Pensando na parte que cabe ao continente latino-americano, Dussel (2015, p.46) propõe outra visão: a Modernidade enquanto fenômeno mundial, sendo seu determinante o fato da Europa se tornar o “centro” da história mundial a partir do seu encontro com os ameríndios em 1492. Anterior a este fato inexistia história mundial, os encontros culturais, interfaces, trocas culturais e econômicas a partir de 1492 deram início à existência real de uma história mundial Dussel (2015, p.46). Apenas com a expansão portuguesa no século XV tais encontros atingem o extremo oriente no XVI e com o descobrimento da América Hispânica o planeta se torna lugar de apenas uma história.

Para Dussel (2015, p.47-48), a centralidade da Europa Latina na História Mundial é o determinante fundamental da Modernidade. “Os demais determinantes vão ocorrendo em torno (a subjetividade constituinte, a propriedade privada, a liberdade contratual, etc.)”. Essa centralidade toma forma com a descoberta e domínio das minas de pratas na América Latina que permitem o acúmulo de riqueza suficiente para que os países europeus, como a Espanha, possam alcançar soberania em seu território. Após, o mediterrâneo é suplantado pelo Atlântico e, não nos é difícil inferir que as especiarias do oriente passam a chegar à Europa em maior fluxo e com facilidade. Como centro da história mundial, a Europa constitui pela primeira vez sua periferia: a América Latina que passa a constituir a outra face da Modernidade (colonialidade), uma vez que não desfruta de suas benesses, pelo contrário, é dominada, explorada e subalternizada.

No que se refere à ideia de uma racionalidade europeia superior, inserida no conceito europeu de Modernidade, a argumentação dusseliana nos induz a pensar nessa racionalidade como superação de uma imaturidade anterior. Não se pode negar que a dimensão racional exerceu papel forte na superação de uma realidade prática quase em nichos, provinciana . Realidade anterior a 1492. Mas, mesmo com o alargamento das relações internacionais e, consequentemente, da história a razão mostrou-se intercambiante. As inter-relações entre culturas, as interpenetrações culturais, certamente trouxeram benefícios para a humanidade.

Mas isso não subtrai a face oculta da Modernidade: sua irracionalidade ao justificar desinteligências como a escravidão, a subjugação, o extermínio e o silenciamento das culturas dominadas. Aspectos que precisam ser superados. No dizer de Dussel (p.50), para a superação da “Modernidade”, será necessário negar el negacion del mito de la Modernidad. Para elll, la outra-cara negada e victimada de la “Modernidad” debe primeramente descubrirse como “inocente”: es la “víctima inocente” del sacrifício ritual, que al descubrirse inocente juzga a la “Modernidad” como culpale de la violencia sacrificadora, conquistadora originária, constitutiva, esencial. Al negar de la inocencia de la “Modernidad” y al afirmar la Alteridad de “el Otro”, negado antes como víctima culpable, permite “des-cubrir” por primera vez la “outra-cara” oculta e esencial a la “Modernidad”: el mundo periférico colonial, el índio sacrificado, el negro esclavizado, el mujer oprimida, el nino y la cultura popular alienadas, etcétera(las “víctimas” de la “Modernidad”) como víctimas de un acto irracional(como contradiccion del ideal racional de la mesma “Modernidad”).

O Outro negado em sua alteridade constituiu a Modernidade subsumida de um horizonte mundial. Uma Modernidade duvidosa que, de um lado promove a emancipação, e do outro a barbárie. É necessário um novo paradigma de modernidade. Dussel (p.50) o denomina Transmodernidade, pois associa Modernidade e Alteridade. Isto é, considera o lado oculto ao lhe conceder rosto e voz. Conscientizar e esclarecer sobre a transmodernidade é proposta da Filosofia da Libertação.

A Filosofia da Libertação de Dussel sugere sua Ética da libertação, e esta passa pelo entendimento da história a partir de uma perspectiva anti-eurocêntrica. O que seria tal perspectiva? Um viés histórico que dimensiona a violência e o sofrimento com vistas à transmodernidade. Proposta que é acolhida pelo grupo Modernidad/Colonialidad.

Procurando demonstrar em desconcertante abordagem histórica o processo de divisão mundial entre centro e margem - constituintes do Sistema Mundo - responsável pelas milhões de vítimas que sofrem com os percalços deste sistema, Dussel em sua obra Ética da Libertação na idade da globalização e exclusão (2007), parte da realidade global/excludente própria do sistema-mundo para a seguinte conclusão: “a morte das maiorias exige uma ética da vida e seus sofrimentos nos levam a pensar e justificar sua necessária libertação das cadeias que a prendem”(...). A desigualdade, portanto, tem efeitos desastrosos para a maioria, principalmente regiões da América Latina, África e Ásia.

O filósofo propõe uma ética que afirme a vida humana “ante o assassinato e o suicídio coletivo para os quais a humanidade se encaminha se não mudar o rumo do seu agir racional” (2007, p.11). Sua pretensão é demonstrar as proporções globais deste Sistema Mundo não sendo possível, na sua visão, a libertação de milhões de vítimas deste sistema se o horizonte ético da humanidade permanecer da forma como se encontra. Dussel se refere à tradicional visão racional da ética, especificamente a ética formal. Reflexões éticas tradicionais não incluem o marginal e, de quebra, não consideram seus diferentes conteúdos de eticidade. Isso impede a emergência de visões e reflexões da diferença que expulsem discriminações, intolerâncias e preconceitos.

Seria necessário, portanto, uma Ética da Libertação que, mais do que uma ética do Outro, fosse uma ética da vítima e do pobre, partícipes deste Sistema Mundo. Em dimensões culturais, podemos dizer da necessidade de uma ética que contemple tradições culturais marginais procurando compreendê-las. Isso demandaria uma visão da Modernidade como um fenômeno a ser compreendido a partir de outra interpretação da história, uma que não exclui as maiorias, vítimas do sistema-mundo.

É preciso pensar filosoficamente a dialética modernização-exclusão e o sistema-mundo com vistas à libertação das vítimas das cadeias deste sistema. À luz da Modernidade europeia, capitalismo e globalização insurgem enquanto realidades insuperáveis paramentadas pelo uso de uma tecnologia auto-superante que torna em meses equipamentos e valores anacrônicos. O que demanda consumismo e sua perseguição enquanto meta existencial. As dificuldades econômicas e existenciais na atualidade são próprias deste Sistema Mundo, bem como lhes são a tensão entre regiões do planeta que querem estar à sua frente.

A compreensão de uma ética que contemple as vítimas e os marginalizados exige, no dizer de Dussel, situar tal problemática “num horizonte planetário, para tirá-la da tradicional interpretação meramente helenocentrica ou eurocêntrica” (2007, p.19). Passo essencial para a transmodernidade e, prerrogativa “para abrir a discussão mais além da ética filosófica euro-norte-americana atual” (2007, p.19).

Explica o filósofo que o conteúdo de eticidade cultural não deve ser confundido com a ética filosófica originada na Grécia. Textos míticos gregos, como o de Homero ou o de Hesíodo são considerados exemplos filosóficos, em função dos seus conteúdos de eticidade. No entanto, outros textos míticos que carregam tal conteúdo não possuem a mesma consideração, é o caso do Livro dos mortos egípcios, dos Upanixades e outros. Estes, são propostas culturais de eticidade que precisam se analisadas, bem como textos de todas as culturas da humanidade. Acredita Dussel, todos são relevantes para interpretar os conteúdos da eticidade atual, o que consequentemente são pertinentes para o desenvolvimento formal da ética. E o que dizer das sociedades onde a oralidade é registro de memórias? E os textos orais? Na esteira de Dussel , acolhemos a proposta do filósofo intercultural Raùl Fornet-Betancourt quando reitera a necessidade de desvelar as culturas que foram subalternizadas pela colonização em busca de conteúdos de eticidade com vistas á superação da barbárie atual.

A crítica à modernidade de Enrique Dussel é comprovação da capacidade do subalterno em falar do seu lugar e de fazer desse lócus de enunciação. Ao articular história e filosofia Dussel tensiona a relação dessas com a ética demonstrando que a ética não pode ser tomada apenas do ponto-de-vista ocidental. Isso é claro quando inclui em sua reflexão o sistema-mundo. As relações internacionais, desde o XVI, não são apenas trocas comerciais. Sobretudo, são trocas culturais que retira a Ética de sua roupagem universal e universalista.

Pensar a diversidade cultural e ética em uma dimensão global com a participação de diversas culturas é um desafio que nos impõe a reflexão dusseliana. Crítica teórica que justifica a inclusão de Enrique Dussel no grupo latino-americano Modernidad/Colonialidad, um dos mais importantes coletivos do pensamento crítico na América. Aliada aos conceitos colonialidade (Aníbal Quijano) e diferença colonial (Walter Mignolo) a crítica à modernidade em Enrique Dussel nos permite ir além da história e filosofias dos vencedores. 

Referências Bibliográficas

DUSSEL, Enrique. 1492. O encobrimento do outro. A origem do mito a modernidade. São Paulo: Vozes, 1992.

______________. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2007.

______________. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. Trad. de George I. Maissiat. São Paulo: Paulus, 1995.

_____________ . Europa, modernidade e eurocentrismo. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/gsdl/collect/clacso/index/assoc/D1200. > Acesso em: 16 nov.2015.

FORNET-BETANCOURT, Raul. Religião e interculturalidade. Curitiba: Editora Sinodal, 2014.

GROSFÓGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economía política e os estudos pós-coloniais: trasmodernidade, pensamento de frontera e colonialidade global. In: Revista crítica de Ciências Sociais, n.80, 2008 p.115-147. 

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

_______________. El lado más oscuro del renacimiento. Universitas humanística n,67 enero-junio de 2009 pp:165-203: Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=79118958009> Acesso em: 18 nov. 2015.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidade-racionalidad. In: BONÍLIA, Heraclio (Compilador). Los conquistados. 1492 y la población indígena de las Américas. Bogotá: Tercer Mundo Editores, 1992.

______________. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber, Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: GLACSO, 2005.

RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização. Processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo; Companhia das Letras, 2007.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

WALLERSTEIN, Immanuel. O Sistema mundial moderno. Porto: Afrontamentos, 1990.  

Fonte: http://www.periodicos.unimontes.br/poiesis/article/download/882/565

BIGTheme.net • Free Website Templates - Downlaod Full Themes