Com amor podemos transformar o presente e sonhar um futuro
Vivendo de amor
O amor cura. Nossa recuperação está no ato e na arte de amar. Meu trecho favorito do Evangelho segundo São João é o que diz: “Aquele que não ama ainda está morto”.
Por: Bell Hooks – Tradução de Maísa Mendonça
Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.
Não tem sido simples para as pessoas negras desse país entenderem o que é amar. M. Scott Peck define o amor como “a vontade de se expandir para possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra pessoa”, sugerindo que o amor é ao mesmo tempo “uma intenção e uma ação”.
Expressamos amor através da união do sentimento e da ação. Se considerarmos a experiência do povo negro a partir dessa definição, é possível entender porque historicamente muitos se sentiram frustrados como amantes.
O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar.
Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, “feridos até o coração”, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor.
O Impacto da Escravidão no Ato de Amar
Nossas dificuldades coletivas com a arte e o ato de amar começaram a partir do contexto escravocrata. Isso não deveria nos surpreender, já que nossos ancestrais testemunharam seus filhos sendo vendidos; seus amantes, companheiros, amigos apanhando sem razão. Pessoas que viveram em extrema pobreza e foram obrigadas a se separar de suas famílias e comunidades, não poderiam ter saído desse contexto entendendo essa coisa que a gente chama de amor. Elas sabiam, por experiência própria, que na condição de escravas seria difícil experimentar ou manter uma relação de amor.
Imagino que, após o término da escravidão, muitos negros estivessem ansiosos para experimentar relações de intimidade, compromisso e paixão, fora dos limites antes estabelecidos. Mas é também possível que muitos estivessem despreparados para praticar a arte de amar. Essa talvez seja a razão pela qual muitos negros estabeleceram relações familiares espelhadas na brutalidade que conheceram na época da escravidão. Seguindo o mesmo modelo hierárquico, criaram espaços domésticos onde conflitos de poder levavam os homens a espancarem as mulheres e os adultos a baterem nas crianças como que para provar seu controle e dominação. Estavam assim se utilizando dos mesmos métodos brutais que os senhores de engenho usaram contra eles. Sabemos que sua vida não era fácil; que com a abolição da escravatura os negros não ficaram imediatamente livres para amar.
Depoimentos de escravos revelam que sua sobrevivência estava muitas vezes determinada por sua capacidade de reprimir as emoções. Num documento datado em 1845, Frederick Douglas lembra que foi incapaz de se sensibilizar com a morte de sua mãe, por ter sido impedido de manter contato com ela. A escravidão condicionou os negros a conter e reprimir muitos de seus sentimentos. O fato de terem testemunhado o abuso diário de seus companheiros- o trabalho pesado, as punições cruéis, a fome- fez com que se mostrassem solidários entre eles somente em situações de extrema necessidade. E tinham boas razões para imaginar que, caso contrário, seriam punidos. Somente em espaços de resistência cultivados com muito cuidado, podiam expressar emoções reprimidas. Então, aprenderam a seguir seus impulsos somente em situações de grande necessidade e esperar por um momento “seguro” quando seria possível expressa r seus sentimentos.
Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade. Um escravo que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não conseguisse sobreviver.
Emoções Reprimidas: A Chave da Sobrevivência
A prática de se reprimir os sentimentos como estratégia de sobrevivência continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo depois da escravidão. Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras emocionais. E, de uma maneira geral, muitos negros passaram a acreditar que a capacidade de se conter emoções era uma característica positiva. No decorrer dos anos, a habilidade de esconder e mascarar os sentimentos passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte. Mostrar os sentimentos era uma bobagem.
Tradicionalmente, as famílias do Sul do país ensinavam as crianças ainda pequenas que era importante reprimir as emoções. Normalmente as crianças aprendiam a não chorar quando eram espancadas. Expressar os sentimentos poderia significar uma punição ainda maior. Os pais avisavam: “Não quero ver nem uma lágrima”. E se a criança chorava, ameaçavam: “Se não parar, vou te dar mais uma razão para chorar.” Como é possível diferenciar esse comportamento daquele do senhor de engenho que espancava seu escravo sem permitir que ele experimentasse qualquer forma de consolo, ou mesmo que tivesse um espaço para expressar sua dor? E se tantas crianças negras aprenderam desde cedo que expressar as emoções é sinal de fraqueza, como poderiam estar abertas para amar? Muitos negros têm passado essa idéia de geração a geração: se nos deixarmos levar e render pelas emoções, estaremos comprometendo nossa s obrevivência. Eles acreditam que o amor diminui nossa capacidade de desenvolver uma personalidade sólida.
Em Algum Momento Você Nos Amou?
Quando eu era criança, percebia que fora do contexto da religião e do romance, o amor era visto pelos adultos como um luxo. A luta pela sobrevivência era mais importante do que o amor. Somente as pessoas mais velhas – nossas avós e bisavós, nossos avôs e bisavôs, nossos padrinhos e madrinhas -pareciam dedicadas a arte e ao ato de amar. Elas nos aceitavam, cuidavam de nós, nos davam atenção e principalmente, afirmavam nossa necessidade de experimentar prazer e felicidade. Eram carinhosas e o demonstravam fisicamente. Nossos pais e sua geração, que só pensavam em subir na vida, geralmente passavam a impressão de que o amor é uma perda de tempo, um sentimento ou um ato que os impedia de lidar com coisas mais importantes.
Quando eu dava aulas sobre o livro Sula, de Toni Morrison, reparava que minhas alunas se identificavam com um trecho no qual Hannah, uma mulher negra já adulta, pergunta a sua mãe, Eva: “Em algum momento você nos amou?” E Eva responde bruscamente: “Como é que você tem coragem de me fazer essa pergunta? Você não tá aí cheia de saúde? Como não consegue enxergar?” Hannah não se satisfaz com a resposta, pois sabe que a mãe sempre procurou suprir suas necessidades materiais. Ela está interessada num outro nível de cuidado, de carinho e atenção. E diz para Eva: “Alguma vez você brincou com a gente?” Mais uma vez, Eva responde como se a pergunta fosse totalmente ridícula: Brincar? Ninguém brincava em 1895. Só porque agora as coisas são fáceis, você acha que sempre foram assim? Em 1895 não era nada fácil. Era muito duro. Os negros morriam como moscas… Cê acha que eu ia ficar brincando com cr ianças? O que é que iam pensar de mim?
A resposta de Eva mostra que a luta pela sobrevivência não significava somente a forma mais importante de carinho, mas estava acima de tudo. Muitos negros ainda pensam assim. Suprir as necessidades materiais é sinônimo de amar. Mas é claro que mesmo quando se possui privilégios materiais, o amor pode estar ausente.
E num contexto de pobreza, quando a luta pela sobrevivência se faz necessária, é possível encontrar espaços para amar e brincar, para se expressar criatividade, para se receber carinho e atenção. Aquele tipo de carinho que alimenta corações, mentes e também estômagos. No nosso processo de resistência coletiva é tão importante atender as necessidades emocionais quanto materiais.
Não é por acaso que o diálogo sobre o amor no livro Sula se dá entre duas mulheres negras, entre mãe e filha. Sua relação simboliza uma herança que será reproduzida em outras gerações. Na verdade Eva não alimenta o crescimento espiritual de Hannah, e Hannah não alimenta o crescimento espiritual de sua filha, Sula. Mas Eva simboliza um modelo de mulher negra “forte”, de acordo com seu estilo de vida, por sua capacidade de reprimir emoções e garantir sua segurança material. Essa é uma forma prática de se definir nossas necessidades, como naquela canção de Tina Turner: “O que é que o amor tem a ver com isso?”
Se conhecêssemos o Amor
O amor precisa estar presente na vida de todas as mulheres negras, em todas as nossas casas. É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente. Mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente.
Geralmente enfatizam nossa capacidade de “sobreviver” apesar das circunstâncias difíceis, ou como poderemos sobreviver no futuro. Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar condições para viver plenamente. E para viver plenamente as mulheres negras não podem mais negar sua necessidade de conhecer o amor.
Para conhecermos o amor, primeiro precisamos aprender a responder as nossas necessidades emocionais. Isso pode significar um novo aprendizado, pois fomos condicionadas a achar que essas necessidades não eram importantes. Por exemplo, no seu livro, O Hábito da Sobrevivência: Estratégias de Vida das Mulheres Negras, Kesho Scott relata uma experiência importante que a ensinou a sobreviver: Medindo treze anos, permaneci parada em frente a porta da sala. Minhas roupas estavam molhadas. Meus cabelos pingando. Estava chorando, chocada, precisando do colo da minha mãe. Ela me olhou de cima a baixo, devagar, levantou-se do sofá e caminhou ao meu encontro com o corpo carregado de críticas. Parada, com as mãos na cintura, sua sombra caindo sobre meu rosto, perguntou sem conseguir esconder a raiva: “O que aconteceu?” Hesitei como se surpresa por sua raiva e respondi: “Elas colocaram minha cabeça na privada. Disser am que não posso nadar com elas”. “Elas” eram oito meninas brancas da escola. Tentei abraçá-la, mas ela se afastou bruscamente dizendo: “Que inferno! Pegue seu casaco e vamos embora”.
Naquele momento Keshno estava aprendendo que suas necessidades emocionais não eram importantes. Logo depois ela escreve: “Minha mãe me ensinou uma valiosa lição naquele dia. Aprendi que deveria lutar contra a discriminação racial e sexual”. É claro que essa é uma lição importante para as mulheres negras. Mas Keshno estava também aprendendo uma lição dolorosa, ao sentir que não merecia ser consolada após uma experiência traumática, como se não devesse nem mesmo esperar por isso, como se suas necessidades individuais não fossem tão importantes quanto a luta de resistência coletiva contra o racismo e o sexismo. Imaginem como essa história seria diferente se, ao entrar na sala tão abalada, Keshno tivesse recebido o consolo de sua mãe, e se primeiro sua mãe a ajudasse a se pentear e arrumar, para depois então explicar a necessidade de confrontar (talvez não naquele momento, se Keshno não e stivesse preparada emocionalmente para o confronto) as alunas brancas que a atacaram. Dessa forma Keshno teria aprendido, aos treze anos, que sua saúde emocional era tão importante quanto o movimento contra o racismo e o sexismo – que na verdade essas duas experiências estavam interligadas.
Muitas de nós, mulheres negras, aprendemos a negar nossas necessidades mais íntimas, enquanto desenvolvíamos nossa capacidade de confrontar a vida pública. É por isso que constantemente parecemos ter sucesso no trabalho, mas não na vida privada. Vocês entendem o que estou querendo dizer. Quando vemos uma mulher negra aparentemente segura de si, de seu trabalho, é bem provável que se formos visitá-la sem avisar, com exceção da sala, todo o resto da casa vai estar a maior bagunça, como se tivesse passado um furacão. Creio que esse caos representa uma reflexão de seu interior, da falta de cuidado consigo própria. A partir do momento que acreditarmos, de preferência desde crianças, que nossa saúde emocional é importante, poderemos suprir nossas outras necessidades.
Muitas vezes confundimos o reconhecimento de nossas emoções com o desejo de se manter em controle. Quando ignoramos nossas reais necessidades, a tendência é nos fragilizarmos, nos tornarmos vulneráveis e emocionalmente instáveis. As mulheres negras se esforçam muito para esconder essa situação.
Voltando a falar da mãe de Keshno, é provável que a dor de sua filha tenha trazido recordações de suas próprias feridas, nunca reveladas. Será que assumiu aquela atitude crítica, dura, ou mesmo cruel, para não se expor, chorar, e deixar de ser “uma mulher negra forte”? Mas se tivesse chorado, sua filha saberia que ela se identificava com aquela dor, que seria possível falar sobre o assunto, que não precisaria guardar essa dor.
Essa atitude representa o que muitas de nós presenciamos em circunstâncias semelhantes – ela mantinha o controle. Até mesmo sua postura física significava que mantinha o domínio da situação. Claro que, como mulher negra, essa mãe queria que sua presença fosse mais poderosa do que as meninas brancas. Um modelo de mãe que sabe como apoiar sua filha numa situação de sofrimento é representado no romance Sassafrass, Cypress e Indigo, de Ntozake Shange. Esse livro retrata mulheres negras como personagens fortalecidos pelo amor de sua mãe. Mesmo quando não concorda com certas opções de suas filhas, essa mãe as trata com respeito e oferece consolo. Esse é um trecho de uma carta que ela escreve para Sassafrass, que passa por dificuldades e quer voltar para casa. A carta começa assim: “Claro que você pode voltar pra casa! Aconteça o que acontecer, nunca vou deixar de te amar”. Primeiro ela demonstra seu amor, depois aconselha, e volta a expressar seu amor: Você e Cypress me deixam louca com seu estilo de vida alternativo. Vocês precisam parar de nadar contra a corrente.
Você sabe o que quero dizer… Lembre-se disso. Volte para casa e vamos resolver essa situação. Você terá muitas opções e ninguém vai te chatear ou te enganar. Nada como um dia depois do outro. Você acorda. Você come, vai trabalhar, volta pra casa, come outra vez, descansa, e vai dormir. Nossa situação melhorou. Continuo me perguntando onde foi que errei. Mas no fundo sinto que não estou errada. Estou certa. O mundo está de cabeça pra baixo e está tentando enlouquecer as minhas filhas. Agora chega. Eu te amo muito. Você está se tornando uma mulher adulta e sei o que isso significa. Volte para casa. Sei que vai descobrir algo mais sobre você. Com amor, Mamãe.
Amando Aquilo Que Vemos
A arte e a prática de amar começam com nossa capacidade de nos conhecer e afirmar. É por isso que tantos livros de auto-ajuda dizem que devemos mirar-nos num espelho e conversar com nossas próprias imagens. Tenho percebido que às vezes não amo a imagem ali refletida. Eu a inspeciono. Desde que acordo e me vejo no espelho, começo a me analisar, não com a intenção de me afirmar, mas de me criticar. Isso era comum lá em casa. Quando eu e minhas cinco irmãs descíamos as escadas em direção àquele território ocupado por meu pai, minha mãe e meus irmãos, entrávamos no mundo da “crítica”. Tudo era observado e tudo estava errado conosco. Raramente uma de nós era elogiada.
Quando substituo a crítica negativa pelo reconhecimento positivo, sinto-me mais forte para começar o dia. A afirmação é o primeiro passo para cultivarmos nosso amor interior. Uso a expressão “amor interior” e não “amor próprio” porque a palavra “próprio” é geralmente usada para definir nossa posição em relação aos outros. Numa sociedade racista e machista, a mulher negra não aprende a reconhecer que sua vida interior é importante.
A mulher negra descolonizada precisa definir suas experiências de forma que outros entendam a importância de sua vida interior. Se passarmos a explorar nossa vida interior, encontraremos um mundo de emoções e sentimentos. E se nos permitirmos sentir, afirmaremos nosso direito de amar interiormente. A partir do momento em que conheço meus sentimentos, posso também conhecer e definir aquelas necessidades que só serão preenchidas em comunhão ou contato com outras pessoas.
Onde está o amor, quando uma mulher negra se olha e diz: “Vejo uma pessoa feia, escura demais, gorda demais, medrosa demais – que não merece ser amada, porque nem eu gosto do que vejo” Ou talvez: “Vejo uma pessoa tão ferida, que é pura dor, e não quero nem olhar pra ela porque não sei o que fazer com essa dor”. Aí o amor está ausente. Para que esteja presente é preciso que essa mulher decida se olhar internamente, sem culpa e sem censura.
E ao definir o que vê, talvez perceba que seu interior merece ou precisa de amor. Nunca ouvi uma mulher negra dizer num grupo de apoio que não precisa de amor. Ela pode até querer esconder essa necessidade, mas não é preciso muito tempo de análise para que reconheça isso. Se perguntarmos diretamente a uma mulher negra se ela precisa de amor, a resposta provavelmente será positiva. Para nos amarmos interiormente, precisamos antes de tudo prestar atenção, reconhecer e aceitar essa necessidade. Se acreditarmos que não seremos punidas por reconhecermos quem somos ou o que sentimos, poderemos entender melhor nossas dificuldades.
Normalmente entrevisto a mim mesma e acho que outras mulheres devem fazer o mesmo. Às vezes é difícil entrar em contato com meus sentimentos, mas ao me fazer uma pergunta, geralmente encontro a resposta.
Algumas vezes a gente se olha e vê tanta confusão, tanta dor, que não sabemos o que fazer. Então precisamos procurar ajuda. Às vezes ligo para meus amigos e digo: “Não consigo entender o que sinto e não sei o que fazer, você pode me ajudar?” Muitas mulheres negras não têm coragem de pedir ajuda, pois isso significaria um sinal de fraqueza. Precisamos nos livrar desse condicionamento. Ter capacidade de pedir ajuda significa que temos poder.
Cada vez que buscamos ajuda nosso poder aumenta, ao invés de diminuir. Experimente. Geralmente buscamos ajuda em momentos de crise. Mas podemos evitar a crise se reconhecermos nossa dificuldade em lidar com uma determinada situação. Para as mulheres negras acostumadas a manter o controle das situações, pedir ajuda pode significar a prática do amor, da confiança, reconhecendo que não precisamos resolver tudo sozinhas. A prática de se amar interiormente nos revela o que o nosso espírito necessita, além de nos ajudar a entender melhor as necessidades das outras pessoas.
As mulheres negras que escolhem ( e aqui enfatizo a palavra “escolhem”) praticar a arte e o ato de amar, devem dedicar tempo e energia expressando seu amor para outras pessoas negras, conhecidas ou não. Numa sociedade racista, capitalista e patriarcal, os negros não recebem muito amor. E é importante para nós que estamos passando por um processo de descolonização, perceber como outras pessoas negras respondem ao sentir nosso carinho e amor. Outro dia minha amiga T. me contou que faz questão de visitar e conversar com o senhor de idade que trabalha numa loja perto de sua casa. E recentemente ele expressou sua gratidão pelo carinho que recebe dela. Anos atrás, quando ela passava por um processo de autodestruição, não tinha “vontade” de mostrar seu carinho. Hoje ela passa para ele o mesmo carinho que espera receber de outras pessoas.
Quando eu era criança algumas mulheres negras me amaram de forma “incondicional”. Assim aprendi que o amor não precisa ser conquistado. Elas me ensinaram que eu merecia ser amada; seu carinho nutriu meu crescimento espiritual.
Muitos negros, e especialmente as mulheres negras, se acostumaram a não ser amados e a se proteger da dor que isso causa, agindo como se somente as pessoas brancas ou outros ingênuos esperassem receber amor. Uma vez disse para algumas mulheres negras que gostaria de viver em um mundo onde existisse amor, onde pudesse amar e ser amada. Depois disso elas passaram a rir de mim sempre que nos encontrávamos. Para que esse mundo possa existir é preciso acabar com o racismo e todas as formas de dominação. Se escolho dedicar minha vida à luta contra a opressão, estou ajudando a transformar o mundo no lugar onde gostaria de viver.
O Amor Cura
O “Poema da Mulher” de Nikki Giovanni foi importante para que eu percebesse o processo de autodestruição das mulheres negras. Publicado no livro, A Mulher Negra, editado por Toni Cade Bambara, esse poema termina assim: “olhe para aquela que teve toda sua vida marcada pela infelicidade porque é a única verdade que conheço”. Nesse poema, Giovanni não apenas sugere que as mulheres negras foram socializadas para cuidar dos outros e ignorar suas necessidades, como também mostra como a autodestruição nos faz abandonar aqueles que nos querem. A mulher negra diz: “Como você se atreve a me querer – isso não faz sentido – porque se eu sou uma merda, você deve ser pior ainda”.
Esse poema foi escrito em 1968. Algumas décadas depois, as mulheres negras continuam lutando para reconhecer sua dor e encontrar formas de curá-la. Aprender a amar é uma forma de encontrar a cura.
A idéia de que o amor significa a nossa expansão no sentido de nutrir nosso crescimento espiritual ou o de outra pessoa, me ajuda a crescer por afirmar que o amor é uma ação. Essa definição é importante para os negros porque não enfatiza o aspecto material do nosso bem-estar. Ao mesmo tempo que conhecemos nossas necessidades materiais, também precisamos atender às nossas necessidades emocionais. Gosto muito daquele trecho da bíblia, nos “Provérbios”, que diz: “Um jantar de ervas, onde existe amor, é melhor que uma bandeja de prata cheia de ódio”.
Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.
Fonte: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/