Do pós colonial ao decolonial
Por Larissa Rosevics Como dizem os zapatistas, [é preciso] “luchar por un mundo donde otros mundos sean posibles”. Ramón Grosfoguel O projeto pós-colonial é aquele que, ao identificar a relação antagônica entre colonizador e colonizando, busca denunciar as diferentes formas de dominação e opressão dos povos. Como uma escola de pensamento, o pós-colonialismo não tem uma matriz teórica única, sendo associado aos trabalhos de teóricos como Franz Fanon, Albert Memmi, Aimé Césaire, Edward Said, Stuart Hall e ao Grupo de Estudos Subalternos, criado na década de 1970 pelo indiano Ranajit Guha. Dentre as influências que inspiraram os estudos pós-coloniais, Sérgio Costa (2006) destaca três: a formação do discurso social, a partir dos pós-estruturalistas Michael Foucault e Jacques Derrida; a descentralização das narrativas e dos sujeitos contemporâneos, do pós-modernismo de Jean-François Lyotard; e os estudos culturais britânicos desenvolvidos na Birmingham University’s Center for Contemporary Studies. A maior parte das pesquisas pós-coloniais seguiu a trajetória dos estudos literários e culturais, através da crítica a modernidade eurocentrada, da análise da construção discursiva e representacional do ocidente e do oriente, e das suas consequências para a construção das identidades pós-independência. A preocupação dos estudos pós-coloniais esteve centrada nas décadas de 1970 e 1980 em entender como o mundo colonizado é construído discursivamente a partir do olhar do colonizador, e como o colonizado se constrói tendo por base o discurso do colonizador. A noção de orientalismo discutida por Edward Said exemplifica o tipo de estudo proposto pelos pós-coloniais, como aponta Sergio Costa (2006, p.86): “[...] O orientalismo caracteriza, assim, um modo estabelecido e institucionalizado de produção de representações sobre uma determinada região do mundo, o qual se alimenta, se confirma e se atualiza por meio das próprias imagens e conhecimentos que (re) cria. O oriente do orientalismo, ainda que remeta, vagamente, a um lugar geográfico, expressa mais propriamente uma fronteira cultural e definidora de sentido entre um nós e um eles, no interior de uma relação que produz e reproduz o outro como inferior, ao mesmo tempo que permite definir o nós, o si mesmo, em oposição a este outro, ora representado como caricatura, ora como estereótipo, e sempre como uma síntese aglutinadora de tudo aquilo que o nós não é e nem quer ser.” Na década de 1990, um grupo de intelectuais latino-americanos que vivia nos Estados Unidos, inspirados pelos processos de redemocratização dos países da região e pelo debate pós-colonial que chegara às universidades estadunidenses nas décadas anteriores, decidiram fundar o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos, que teve como primeiro documento oficial o “Manifesto Inaugural do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos”, de 1993[i]. Segundo Ramon Grosfoguel (2008), a desagregação do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos se deve a dois motivos. O primeiro ao fato de que os pesquisadores, apesar de serem latino-americanos, viviam nos Estados Unidos e reproduziam em suas pesquisas a epistemologia dos estudos regionais estadunidenses. Em segundo lugar, assim como os subalternos asiáticos, as principais referências teóricas eram de autores europeus, tais como Foucault, Derrida e Gramsci, além do indiano Ranajit Guha. O uso de epistemologias advindas majoritariamente de autores europeus passou a ser vista como uma traição ao objetivo principal dos estudos subalternos de rompimento com a tradição eurocêntrica de pensamento. É neste sentido que surge a crítica decolonial[ii] , trazendo a necessidade de decolonizar a epistemologia latino-americana e os seus cânones, na maior parte de origem ocidental. Como aponta Grosfoguel, é preciso decolonizar não apenas os estudos subalternos como também os pós-coloniais. Enquanto os pós-coloniais se aproximavam das correntes pós-modernas e pós-estruturalistas, os decoloniais voltaram-se para um projeto semelhante aos dos teóricos críticos de esquerda. Isso significa que, assim como os teóricos críticos de esquerda, os decoloniais buscam a emancipação de todos os tipos de dominação e opressão, em um diálogo interdisciplinar entre a economia, a política e a cultura. É neste contexto que Aníbal Quijano apresenta seu conceito de colonialidade de poder, entendida como a maneira como a dominação das potencias centrais em relação às periféricas está estruturada, através de uma diferença étnica/racial/de gênero/de classe, que hierarquiza o dominador em relação ao dominado, com o objetivo de controlar o trabalho, os recursos e os produtos em prol do capital e do mercado mundial. É uma dominação política e econômica que se justifica através do conceito de raça, acompanhado de uma dominação epistêmica/filosófica/científica/linguística ocidental. Dentre as principais diferenças entre os pós-coloniais asiáticos e os decoloniais latino-americanos, está o tipo de experiência colonialista que cada uma das regiões conheceu e as suas consequências para as reflexões teóricas posteriores. O colonialismo na Ásia e na África esteve ligado aos anglo-saxões e franceses majoritariamente e se distingue no tempo e no espaço, da ação dos portugueses e espanhóis na América Latina. No caso indiano, por exemplo, houve a preservação de certos princípios filosóficos e epistemológicos das sociedades anteriores à ocupação, o que permite um resgate das raízes pré-coloniais. Na América os espanhóis e os portugueses destruíram quase que completamente a memória do período anterior à ocupação através da desintegração dos padrões de poder e das civilizações existentes na região, do extermínio de comunidades inteiras e de seus portadores de cultura e poder, tais como os intelectuais, os artistas, os cientistas e os líderes. Como aponta Anibal Quijano (2005), os sobreviventes do massacre promovido pelos ibéricos foram submetidos a uma repressão material e subjetiva durante séculos, até que desaparecesse qualquer relação imaginária com o passado pré-colonial. A esta condição, somam-se as experiências distintas dos milhares de imigrantes europeus e traficados africanos que passaram a fazer parte destas sociedades. Os argumentos pós-coloniais e mesmos os decoloniais já estavam presentes em intelectuais latino-americanos do século XIX, como aponta Luciana Ballestrin. O que diferencia o pensamento anterior e o atual são o contexto em que foram elaborados e as possibilidades desses contextos. Para Grosfoguel, o conceito de colonialidade do poder conseguiu exprimir os avanços conquistados pelos estudos culturais realizados pelos pós-coloniais e as análises econômicas do Sistema Mundo. Para ele, a colonialidade do poder traz por terra um dos falsos dilemas do liberalismo do século XIX, a dicotomia entre cultura e economia. A superação completa do modelo epistemológico eurocentrado não se processará de maneira imediata, especialmente na América Latino onde ele tão profundamente está arraigado. Por isso Grosfoguel aponta para o caminho do pensamento crítico de fronteira, capaz de trazer respostas epistemológicas do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade para a superação das relações de opressão, exploração e pobreza, perpetuadas nas relações de poder internacionais. REFERÊNCIAS BALLESTRIN, Luciana . América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política (Impresso), v. 2, p. 89-117, 2013 COSTA, Sergio. Pós-colonialismo e différance. In: __________. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: UFMG, 2006. GROSFOGUEL, Ramon. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, Coimbra, 2008, p. 115-147. QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Estudos Avançados, v.19, n.55, São Paulo, set./dez. 2005. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). La conolialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. (pp.193-238) NOTAS [i] O texto foi publicado na revista Boundary 2, e reeditado no livro Teoria sin disciplina: latinoamericanismo, poscolonialismo y globalización en debate, organizado por Eduardo Mendieta e Santiago Castro-Gómes. [ii] O uso do termo “decolonial” ao invés de “descolonial” é uma indicação de Walter Mignolo para diferenciar os propósitos do Grupo Modernidade/Colonialidade e da luta por descolonização do pós-Guerra Fria, bem como dos estudos pós-coloniais asiáticos. Fonte: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2014/11/do-pos-colonial-decolonialidade.htmlDo pós-colonial à decolonialidade