Descolonizando as desigualdades
É necessário romper com a condição de invisibilidade das questões de gênero e sexualidade entre os povos originários Por Neimar Kiga, indígena do povo Boe e membro do coletivo Tibira — Indígenas LGBTQI+ Poderia resumir a minha trajetória de vida pela ousadia em mostrar a conquista de um espaço que eu nunca imaginaria que pudesse ocupar. Meu lugar, lugar de fala, de onde só ouvia e agora posso falar. Dei vez a minha voz e ela ecoará cada vez mais como o som de uma gralha azul. Em uma sociedade construída por diversas diferenças, a desigualdade social é ainda um grande problema a ser enfrentado. Quando se carrega os marcadores sociais por ser indígena, aldeado, pobre, homossexual e fora dos padrões normativos construídos pela sociedade com ideologia ocidental e cristã, a indiferença pela diferença é visível. Do vermelho do urucum, tiro a força ancestral de quem um dia existiu e resistiu para que eu pudesse hoje estar expressando por meio de palavras meus sentimentos e brevemente a minha vida. Sentimentos que por muito tempo foram de tristeza, incerteza e dor. Hoje, com 23 anos, Designer, graduado pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e mestrando no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (PPGAS) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o sentimento em relação a minha identidade é outro. É de felicidade, certeza, realização e empoderamento. Porém, para que esse lugar fosse ocupado e para que esses sentimentos fossem mudados, foi um caminho de muitas entradas, onde tive que me situar e ver qual estrada seguir. Todas com suas particularidades, momentos de tristeza, solidão e angústia ou alegria, companhias e realizações. Para que eu pudesse ocupar cada vez mais esses espaços com o meu corpo e agora ter esse poder, uma palavra que define muito bem todo esse processo é “força”. Mas eu gostaria de aproveitar justamente meu lugar de fala, minha experiência, para contar um pouco sobre a questão da sexualidade no povo Boe, o qual pertenço. Atualmente, indígenas homossexuais das aldeias Boe são vistos, na maioria das vezes, como referências negativas. O preconceito é um grande problema enfrentado por todos, sobretudo a não aceitação da família ou pessoas da comunidade, pelo fato de terem uma ideologia totalmente religiosa cristã. Muitas vezes, é grande a falta de respeito conosco, nos trazendo várias consequências. A desvalorização também é muito grande. Muitos nos tratam como se não fôssemos pertencentes à espécie humana. Digo isso, por ser indígena, homossexual e ter relação direta com a aldeia. Em sua pesquisa sobre a homossexualidade indígena no Brasil, a partir de uma perspectiva comparada com os Estados Unidos, o cientista social Estevão Rafael Fernandes escreveu sobre o chamado two-spirit: “Esse movimento vem buscando recuperar o papel xamânico que indivíduos com dois espíritos (de homem e de mulher, daí o nome do movimento: two-spirit) tradicionalmente ocupavam em suas culturas. Segundo ativistas e intelectuais two-spirit, eles seriam xamãs, líderes e embaixadores em potencial, pois, tendo os dois espíritos, operariam como intermediadores entre diferentes universos: espiritual e terreno, indígena e não indígena, masculino e feminino, etc.” Na cultura do povo Boe, isso não era tão diferente. No passado, era aceitável que as pessoas transitassem em diversos espaços e práticas (performances) de gênero. Há relatos de conhecedores da cultura tradicional, a existência entre os Boe de pessoas transgêneros, que transitavam entre os espaços masculinos (como poder ver o aije: espíritos, junto aos homens, cujo mulheres não vêem) e femininos (possibilidade de cantar o canto que somente as mulheres cantavam). Essas pessoas eram aceitas pela comunidade, não havendo naquele período a discriminação, que só foi surgir após o processo colonizador. Infelizmente, isso mudou e hoje somos enxergades de forma pejorativa. A aldeia Meruri, município de General Carneiro no Mato Grosso, onde nasci e fui criado, é um local com eventual acesso de não indígenas. Essas pessoas chegam e têm o interesse de se caracterizar com os elementos do povo Boe. Uma das formas de ornamentação, mais rápida, fácil e representativa, é o grafismo. E, na maioria das vezes, os jovens homossexuais são convidados a ajudar nessa prática, por serem vistos como “artistas”. Esses jovens sabem da importância em contribuir com a cultura e o fazem de forma positiva para que ela, a cultura, tenha continuidade. Contribuem como “levantes” da cultura. A graduação em Design me possibilita observar a habilidades desses jovens na produção e confecção dos grafismos. Gênero e Sexualidade na cultura tradicional indígena As definições de Gênero e Sexualidade dissidentes (não normativa) em contexto originário/tradicional são construídas a partir de experiências próprias. Isto é, pela junção do modo de ser e viver “indígenas” (visto que cada etnia possui suas especificidades) articuladas às relações dos afetos e desejos, como também, nas performances de gênero. Cada povo possui formas próprias de vivenciar e interpretar o que chamamos na lógica não indígena de homossexualidade, bissexualidade, travestilidade e/ou transgeneridade, além de nomenclaturas próprias. Como exemplo, no povo Boe há diversas expressões utilizadas para designar sexualidade e gênero: Pobogo, Atubo, Biaraka, Imedu/aredu e Aredu/imedu são algumas delas, mesmo que sejam utilizadas de forma pejorativa e ofensiva na maioria das vezes. Pobogo significa veado campeiro. Há relatos de que já existiam entre os Boe o que chamamos atualmente de homossexuais. Quando avistaram o veado campeiro pela primeira vez e não souberam sua sexualidade, os nomearam de Pobogo. Atubo é o veado galheiro, que tem o porte maior que o veado campeiro e é usado para pessoas homossexuais que tem uma estatura maior. Imedu é homem e Aredu é mulher. Imedu/aredu seria Homem/mulher e Aredu/imedu é Mulher/homem, que se referem às pessoas que não seguem o binarismo de gênero. É preciso descolonizar os sentidos e as experiências de gênero e sexualidade, desprender-se dos padrões ocidentais e avançar na afirmação das nossas identidades. É preciso desconstruir a visão estereotipada/caricata sobre o ser “indígena”, como vemos nos filmes, novelas, literaturas e em como aprendemos em nossas formações. O gênero e a sexualidade dissidente sempre existiram entre várias comunidades tradicionais, e precisamos romper com a condição de invisibilidade, conhecer, entender e, acima de tudo, respeitar. Fonte: https://medium.com/todxs/precisamos-descolonizar-o-sentido-de-ser-lgbti-no-brasil-d8532a935dc3Precisamos descolonizar o sentido de ser LGBTI+ no Brasil