Os mitos em relação ao cérebro
Neuromitologia: cérebro, neurologia, mitos e pseudociência
Desconfiemos das fabulosas descobertas e curas espantosas promovidas pela mídia, mas que não têm suporte da comunidade científica. Se parece demasiado bom para ser verdade é porque provavelmente não é.
O Cérebro, as Neurociências e a Neurologia estão na moda.
Não passa uma semana sem que sejamos confrontados com notícias espetaculares e reveladoras sobre o cérebro e o seu funcionamento. O interesse da opinião pública é tal que um comentador na área da ciência chegou a referir que se Andy Warhol estivesse vivo o motivo das suas próximas serigrafias seria o cérebro, deixando para trás a pobre Marilyn Monroe.
“Este é o aspecto do cérebro quando estás apaixonado”, “Descoberto o centro cerebral da religião”, “Estudo comprova que os mais distraídos são os mais inteligentes”, são exemplos de cabeçalhos encontrados na comunicação social ou nas redes sociais, frequentemente acompanhados de imagens vibrantes e coloridas do cérebro humano. Ou então “investigadores da Universidade X descobrem teste para o diagnóstico precoce de Alzheimer”, ou “novo estudo representa promessa na cura do Parkinson”.
De onde vem todo este interesse pelo cérebro e pelas neurociências?
Para além do apelo natural da descoberta dos segredos por detrás do centro que comanda todas as nossas acções e emoções, e que tem motivado cientistas ao longo de séculos, a popularidade recente junto das massas tem a ver, entre outros motivos, com o aparecimento de métodos de imagem que analisam o funcionamento do cerebral, estudando as áreas que estão a consumir mais oxigénio quando o cérebro está a realizar uma determinada função.
É o caso da chamada Ressonância Magnética Funcional (RMf), que permite a obtenção de imagens de diferentes cores do cérebro, consoante determinada zona está mais ou menos ativa.
Por exemplo se o indivíduo mexer a mão direita é possível através deste método ver uma área cerebral a “iluminar-se”, a ficar vermelha por estar mais ativa, neste caso uma zona do lado esquerdo do cérebro.
Estes métodos de estudo com imagens, coloridos, apelativos, são obviamente mais interessantes para o público generalista.
Mas há cuidados a ter com esta nova “janela da mente”, obrigando a tratamento estatístico rigoroso dos dados obtidos, e se tal não acontecer podem ser obtidos os resultados que os investigadores antecipadamente querem, o chamado viés de confirmação, ao atropelo do método científico, o que pode ser inconsciente ou nem tanto.
É possível, com “Photoshop” estatístico, arranjar atividade cerebral onde ela não existe, como aconteceu num estudo famoso, provocatório, em que os autores, com a utilização da RMf, “demonstraram” atividade, obviamente falsa, no cérebro dum salmão morto, só pelo recurso a tratamento estatístico levado ao extremo.
As notícias que localizam as emoções em diversos pontos do cérebro, devem ser encaradas de forma saudavelmente cética. Nestes casos o que está em jogo são geralmente múltiplas áreas associadas e não uma única área “mágica”.
O grande número de notícias relacionadas com o Cérebro e as Neurociências, tem também a ver com a necessidade de promoção dos Centros de Investigação, de forma a conseguirem visibilidade e financiamento para os seus projectos. Isto faz com que estudos preliminares, “in vitro”, ou em animais, sejam promovidos de forma prematura, em situações de doenças neurológicas com grande visibilidade junto da opinião pública, como a Demencia de Alzheimer ou a doença de Parkinson, por exemplo. Por isso há que defenda que no título da publicação ou artigo científico deve ser referido que o estudo é feito em animais ou que ainda está na fase do tubo de ensaio.
Outros mitos associados a esta área são relativamente inócuos, embora desprovidos de senso comum.
Um dos mais populares, com a ajuda de séries televisivas e filmes, é a de que usamos apenas 10% da nossa capacidade cerebral.
Colocado de forma simples: é falsa a ideia de que só utilizamos um décimo do nosso potencial cerebral, não faria sentido que um órgão que gasta mais de um quinto do total da energia do organismo, tivesse apenas uma pequena parte a trabalhar. Há hoje evidência de que o cérebro está sempre a funcionar na sua totalidade, mesmo durante o sono, embora as áreas mais ativas mudem consoante a tarefa.
Uma outra ideia errada na área das neurociências é a de que a nossa personalidade e forma de pensar dependeria mais de um lado do cérebro. Assim os indivíduos com o lado direito dominante seriam mais criativos, imaginativos, intuitivos e artísticos. Os que tivessem como lado dominante o esquerdo seriam mais organizados, lógicos, analíticos e proficientes a matemática. Este é um conceito errado segundo os atuais conhecimentos neurológicos, embora já tenha permitido a venda de milhões de livros de pseudopsicologia. Todas as tarefas complexas que o nosso cérebro realiza exigem participação dos dois lados do cérebro, existindo extensas ligações entre ambos os lados. Podemos falar do exemplo da linguagem, embora o lado esquerdo seja fundamental para a compreensão e expressão da linguagem, o lado direito é determinante para compreender o contexto e tom das palavras. E na matemática, enquanto o lado esquerdo é importante para a resolução de equações, o lado direito dedica-se a comparações e estimativas.
O interesse que a Neurologia e Neurociências motivam tem também a ver com a nossa procura do Santo Graal cerebral, a pílula ou suplemento mágico que nos aumente a memória e a concentração, que nos torne mais inteligentes, que nos livre do declínio cerebral associado à idade, ou nos torne as máquinas intelectuais que a atual sociedade ultracompetitiva exige.
Há uma indústria de milhões à volta deste problema, com produtos com designações sugestivas , muitas vezes com nomes associados ao elefante e à sua proverbial memória, comercializados em farmácias, em lojas de produtos naturais e online.
Substâncias como o Omega 3, o Gingko Biloba, o Ginseng, o Chá Verde, as bagas Goji e uma miríade de Vitaminas, entre muitos outros, são usados na produção de suplementos milagrosos.
Qual o sumo que se extrai desta multidão de embalagens, suplementos, anúncios? Zero ou muito perto disso. O efeito destes suplementos a nível das nossas capacidades cognitivas ou da memória é praticamente inexistente, e não digo completamente inexistente porque produtos como as Vitaminas ou o Omega 3 poderão ter interesse em grávidas e em pessoas com déficites nutricionais, por exemplo a suplementação com vitaminas do complexo B pode ser necessária em indivíduos com regime alimentar Vegan.
Outra face da mesma moeda é a moda atual, sem qualquer evidência científica, de que é importante, para a nossa saúde, incluindo o funcionamento cerebral, evitar determinados alimentos como o glúten ou o leite animal. Esta corrente só pode ser entendida como uma forma de marketing para produtos que não contenham aqueles “venenos”, e que hoje em dia se encontram por todo o lado. O glúten e o leite foram utilizados tranquilamente pela raça humana durante milénios, mas são agora denunciados como a fonte de todos os males do homo sapiens ou quase.
A realidade é que, tirando situações muito raras, como é o caso da Doença celíaca no caso do Glúten, ou das pessoas com ume deficiência grave de Lactase (enzima responsável pela digestão da Lactose constituinte do leite) no caso do leite, é perfeitamente seguro e útil o consumo de glúten e de leite na nossa alimentação.
Uma alimentação variada e equilibrada é necessária e suficiente para a nutrição do nosso corpo, incluindo o cérebro.
Fonte: https://observador.pt/opiniao/neuromitologia-cerebro-neurologia-mitos-e-pseudociencia/?fbclid=IwAR3o4qG2HwSqvglU95rwTQZrqT5hh9EvUSl6bf0ZtgtMjKKzUkJftHnHHSc