É possível degustar sons?

O homem que degusta sons

por Kate Samuelson

Ketchup, presunto, elástico e torta de amêndoa são apenas quatro dos vários sabores que James Wannerton degustou durante nossa entrevista. Ele concordou em conceder a palavra porque meu nome, Kate, tem gosto de chocolate e, segundo ele, suas papilas gustativas o distrairiam durante boa parte de nossa conversa.

Wannerton tem um tipo raro de sinestesia conhecida como sinestesia léxico-gustativa, o que significa que sua audição e seu paladar não funcionam separados um do outro. Para Wannerton, cada palavra falada tem um sabor distinto. Embora esses sons não tenham uma ligação clara com seus respectivos gostos, os sabores são sempre os mesmos; a palavra "falar", por exemplo, tem gosto de bacon desde que Wannerton se entende por gente.

"Palavras e sons fazem 'ping, ping, ping' na minha boca o tempo todo, como uma lâmpada piscando sem parar", explicou. "Alguns sabores vão embora rápido, mas outros podem durar por horas e me fazem desejar aquela comida específica; fico meio distraído até satisfazer a vontade."

Wannerton acredita que já nasceu com a sinestesia, uma condição herdada de sua mãe, que vê "os dias da semana como cores". Em geral, a sinestesia não é tão rara; ela ocorre em quase 4% da população e costuma se manifestar como uma ligação entre letras e cores conhecida como sinestesia grafema-cor. Essa condição faz, por exemplo, que os afetados "saibam" com toda certeza que a letra "A" é vermelha. O tipo de sinestesia rara de Wannerton, porém, levou décadas para ser propriamente estudada.

"Quando eu tinha dez anos, meus pais me levaram para o médico da família porque eu me distraía com sabores durante minhas provas - o som de um lápis caindo da carteira tinha gosto de pão integral, e isso tirava minha atenção", ele disse. "O médico disse que aquilo fazia parte do processo de amadurecimento, que eu tinha uma imaginação hiperativa e que eu esqueceria tudo com o tempo. Durante minha adolescência, o consenso era que eu estava tentando chamar atenção. Só descobri que a sinestesia existia aos 20 anos."

Onze anos depois, os cientistas começaram a se interessar pelo quadro de Wannerton. Em 1991, ele foi transferido para o Hospital Maudsley em Londres, instituição especializada em trauma craniano, para fazer alguns testes. Anos depois ele recebeu uma doação que pagou por uma ressonância magnética funcional.

"Lembro que fiquei bem nervoso quando me sugeriram que fizesse uma ressonância", disse-me Wannerton. "Eu tinha um medo irracional, mas muito profundo, de que se eu entrasse naquela máquina eu perderia minha sinestesia para sempre."
Durante a ressonância, Wannerton teve que olhar para uma pequena tela que mostrava uma série de vídeos e fotos de pessoas, lugares, palavras e comidas. "O som do aparelho de ressonância tinha o gosto e a textura de uma batata crua e bem dura. Eu não faço ideia de quanto tempo passei lá, mas pareceu uma eternidade", recorda.

Vários não-sinestesistas, membros do grupo de controle do teste, haviam passado antes pelo mesmo procedimento, durante o qual observaram os mesmos vídeos e imagens. "Os resultados provaram que meu cérebro reagia de forma diferente dos cérebros dos não-sinestesistas", afirma Wannerton. "Estava claro que eu tinha uma ligação extra entre a parte do meu cérebro que interpreta os sons e a parte que interpreta a percepção de sabores. Quando fui exposto aos sons e imagens dentro do aparelho, essa ligação neural brilhou como uma árvore de Natal."

A entrega dos resultados do exame foi um momento crucial para Wannerton: lá estava a prova de que sua sinestesia era real. "Fiquei mais seguro para falar sobre minha vivência como um sinestesista - o que eventualmente me tornou o presidente da Associação de Sinestesia do Reino Unido."
Interessada em conseguir uma perspectiva científica do tema, discuti a condição de Wannerton com o Dr. Nicolas Rothen, pesquisador do Centro Sackler de Ciência da Consciência da Universidade de Sussex, no Reino Unido, que está conduzindo uma pesquisa sobre sinestesia e memória na Universidade de Bern, na Suíça.

De acordo com Rothen, o estudo das diferenças entre os sinestesistas e os não-sinestesistas pode revelar muito sobre o cérebro humano.

Muitos estudos da sinestesia também tem como objetivo estudar os problemas de memória. "Existem indícios de que os sinestesistas, pelo menos aqueles com sinestesia de cor, possuem uma memória superior", disse Rothen. "Ao estudar aqueles que tem sinestesia, podemos descobrir o que provoca essa superioridade e usar os resultados para tirar conclusões da população geral."

No entanto, Rothen não acredita que a ressonância magnética seja a forma mais adequada de diagnosticar a sinestesia. "Cada cérebro humano é único, da mesma forma que cada impressão digital é única", explicou. "Como Wannerton foi a única pessoa com sinestesia testada, é difícil inferir uma conclusão definitiva a partir do resultado desse teste."
Apesar das pesquisas sobre sinestesia terem se popularizado desde os anos 90, Rothen confessa que alguns aspectos da condição médica continuam misteriosos. "A sinestesia tem muitos benefícios, mas nós não sabemos muito sobre as desvantagens da condição", disse.

Em 2010, Rothen e o Professor-Doutor Beat Meier da Universidade de Bern conduziram um estudo que envolvia testar a prevalência da sinestesia grafema-cor entre estudantes de artes; o objetivo era descobrir se havia alguma ligação entre a sinestesia e a criatividade. Para o experimento, Rothen e Meier recrutaram 99 estudantes da faculdade de arte de Zurique, na Suíça, e 96 pessoas "normais", aplicando em seguida parâmetros comportamentais e fenomenológicos aos testes.

A dupla descobriu que sete dos estudantes de artes tinham algum tipo de sinestesia grafema-cor, comparado a apenas dois membros do grupo-controle. O estudo concluiu que existe, de fato, uma correlação entre sinestesia e criatividade. Wannerton também acredita nisso. "Muitos artistas - como David Hockney, Lady Gaga e Billy Joel - afirmam ter alguma forma de sinestesia. Certamente me sinto mais criativo por causa dela", ele me disse.

Wannerton disse que a sinestesia lhe dá "poderes especiais" - como se guiar pelo metrô de Londres seguindo os sabores das estações. De acordo com Wannerton, a parada de Oxford Circus tem gosto de bolo. "Se eu quiser ir para o norte, a estação depois do bolo deve ter gosto de presunto, então se o gosto for diferente, sei que errei o caminho." As diferentes linhas do metrô também têm gostos específicos - a Linha Bakerloo tem gosto de rocambole, a Linha Victoria de cera de vela, e a Linha District de um "cozido de carneiro gorduroso e nojento".
Mas claro que a benção da sinestesia tem suas desvantagens. Wannerton não pode aproveitar algumas atividades cotidianas, como ir ao cinema ou assistir TV, "porque elas são barulhentas demais". Alimentação também é um desafio; como Wannerton disassocia o gosto dos alimentos, ele raramente tem fome. "Não ligo para o gosto da comida - o que me interessa é a textura", disse. "Gosto de comidas crocantes, como salgadinhos, e alimentos mornos. O sabor não importa."

Wannerton também afirma que fica "insuportavelmente incomodado" quando uma palavra desperta um sabor que ele não consegue identificar. Wannerton passou anos encucado com o sabor da palavra "esperar". "Eu não conseguia descobrir o que era esse gosto forte e amargo", disse. Seu cérebro só fez a conexão quando finalmente comeu uma torrada com Marmite (um extrato de levedura que os britânicos curtem passar no pão). "Lembrei que quando eu estava no jardim-de-infância, havia uma barraquinha onde podíamos comprar torradas com Marmite - e é esse o gosto que 'esperar' tem para mim."

A sinestesia afetou até mesmo as relações pessoais de Wannerton. Ele já mudou de emprego por não gostar do sabor do nome de um colega e admite que seria difícil namorar alguém que tivesse um nome que não fosse gostoso "já que seria pouco tolerante com ela". Ele falou sobre o difícil caso da mulher de um amigo próximo cujo nome "tem gosto de vômito": "ela é uma boa pessoa e eu gosto dela, mas eu não consigo disfarçar."

Ele acrescentou que sempre gostou mais da mãe do que do pai por causa do gosto da progenitora. "O sabor dela é melhor - ele tem gosto de ervilha em conserva, e ela tem gosto de sorvete. Às vezes o nome dela chega a dar aquele friozinho no cérebro."

Apesar dos pesares, Wannerton revela que não gostaria de viver sem sua sinestesia. "Pode até ser bizarro pensar que o nome Jackie tem gosto de alcaçuz; Blackpool, de jujuba; e a palavra vodka, de grãos minúsculos de terra; mas a minha sinestesia é tão natural que sem ela eu perderia minha identidade".

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/07/1653490-o-homem-que-degusta-sons.shtml

 

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