Por que brincar é importante?

 

 

Mais do que respostas aleatórias e justificativas mal embasadas, argumentos para justificar a brincadeira na educação devem se apoiar em estudos da neurociência e da biologia evolutiva.

Por: Vera Rita da Costa

Que brincar é importante não é uma novidade. As crianças brincam e mesmo outros filhotes de animais o fazem, principalmente se forem mamíferos, como nós. Mas é interessante, sobretudo para professores, refletir sobre o que é o brincar e o porquê de ele existir, buscando conhecer o que há de novo sobre esse tema e relacionar esses conhecimentos com as nossas práticas pedagógicas.

Há também outro interesse em saber mais sobre o brincar: juntar argumentos mais atuais e objetivos às vagas justificativas empregadas por nós, educadores, para defender a brincadeira na escola e garantir o direito e o espaço-tempo para que crianças vivam a infância.

Explicando melhor a questão: pergunte a qualquer colega professor de educação infantil ou das séries iniciais do ensino fundamental se brincar é importante e ele, com certeza, responderá que sim. Questione, no entanto, o porquê disso e a resposta, muito provavelmente, será vaga e, em certos casos, bem pouco fundamentada do ponto de vista científico.

As alegações mais frequentes que justificam o brincar são, por exemplo, o fato de ser “divertido” e “prazeroso” ou, ainda, de que serve para “gastar energia”. Insistindo por mais argumentos, talvez você obtenha aquele que alega ser a brincadeira “importante para o desenvolvimento”. A princípio, nada contra essas ideias, mas, analisadas friamente, elas revelam características importantes do brincar, não suficientes como explicações (as três primeiras) e que apenas se aproximam de maneira genérica e vaga de fazê-lo (a última).

Uma possível razão para isso é que nossos cursos de formação de professores dão pouquíssima importância os aspectos biológicos do desenvolvimento humano. Praticamente nada se discute neles, por exemplo, sobre o que há de mais atual em termos de pesquisa e hipóteses postuladas na biologia evolutiva ou nas neurociências para explicar o brincar.

No entanto, são justamente os dados e as ideias originários dessas áreas do conhecimento, pouco exploradas por educadores, que poderiam fortalecer a ideia de que, de fato, brincar é fundamental, além de apontar modos de torná-lo ainda mais eficaz. Mais bem embasados, certamente poderíamos combater com mais eficiência, por exemplo, a falsa ideia que ainda persiste entre muitos pais de que “escola boa é aquela que é puxada”, ou seja, a que desde cedo “prepara as crianças para o vestibular”, assoberbando-as de conhecimentos conceituais.  

O que há de novo no front

No livro A dinâmica da criação, já comentado aqui em texto anterior (leia 'Nem mágica, nem dom. Pedra a lapidar'), o psiquiatra inglês Anthony Storr lista várias teorias explicativas para o brincar, surgidas ao longo da história das ciências do comportamento e biológicas. O autor critica as ideias do neurologista austríaco Sigmund Freud, que relaciona o brincar à vaga ideia de realização do desejo e da fantasia e lhe atribui a mera função de fuga ou evasão da realidade, e apresenta outros argumentos, que lhe conferem razões biológicas, funcionais e evolutivas, e que procuram identificar na brincadeira o seu valor intrínseco para a sobrevivência

Do ponto de vista da biologia evolutiva, uma atividade como a brincadeira, presente em diferentes grupos animais e persistente, deve ser considerada adaptativa quando vital para a espécie. De alguma forma ela deve ampliar as possibilidades de sobrevivência e reprodução e servir à adaptação da espécie ao ambiente em que vive, tornando-se, por isso mesmo, persistente e até amplificada ao longo do processo evolutivo.

Considerando-se essa perspectiva, “evadir-se da realidade”, como defendia Freud, “divertir-se” ou “gastar energia supérflua” não seriam explicações boas o suficiente aos olhos da biologia evolutiva para justificar o brincar. Se o fossem, seriam contrasensos evolutivos, por não apresentar vantagens adaptativas significativas aos humanos e, ao contrário disso, até colocar em risco a sua sobrevivência.

De maneira diferente, outras possíveis explicações para o brincar, como explorar o ambiente e adquirir informação, exercitar habilidades motoras, manter o sistema nervoso de prontidão, simular padrões de comportamento agressivo e sexual, ritualizar impulsos e interagir socialmente, parecem ser, sob o ponto de vista evolutivo, mais convincentes.

Isso porque, em maior ou menor grau, elas se relacionam, direta ou indiretamente, com a necessidade que o ser humano tem de se desenvolver motora, emocional, social e cognitivamente, em interação constante com seus semelhantes e o ambiente em que se encontra. Em outras palavras, o brincar, nessa perspectiva, teria a função vital e adaptativa de fomentar o pleno desenvolvimento da criança em seus múltiplos e variados aspectos, sobretudo do ponto de vista social e cognitivo, e o faria estimulando a aprendizagem por meio das experiências que propicia.

A visão neurocientífica

Em uma espécie como a nossa, em que o desenvolvimento, sobretudo o do cérebro, demora a acontecer, o brincar ampliaria as oportunidades de convívio com os pares e de exploração do meio, fornecendo estímulos para que o cérebro humano possa se desenvolver mais plenamente. A forma como isso acontece é o que genericamente chamamos em educação de aprendizagem.

Ou seja, em uma perspectiva que procura aliar o conhecimento em biologia evolutiva ao das neurociências, o brincar não se limitaria apenas a exercitar habilidades motoras, emocionais, sociais ou cognitivas, como é costume alegar em educação. Teria uma função ainda mais nobre: seria parte do próprio desenvolvimento humano.

Por meio do brincar – e em estreita interação com o ambiente e seus semelhantes – a rede neural se ampliaria, novos caminhos neurais se formariam e distintas áreas do cérebro se tornariam interconectadas. A parte visível de todo esse processo seria o ganho em habilidades (motoras, emocionais, sociais e cognitivas) e os novos comportamentos observados ao longo da infância.

Há muitos dados e evidências que já corroboram essas ideias e eles vêm se intensificando, conforme aumentam as pesquisas em neurociências. Uma evidência elementar, no entanto, encontra-se no próprio tamanho do cérebro e no estado de desenvolvimento de suas diferentes áreas no nascimento. Ao nascer, nosso cérebro tem cerca de um quarto da massa de quando se tornará adulto e nem todas as suas áreas encontram-se plenamente desenvolvidas. Áreas fundamentais do córtex superior (neocórtex), relacionadas diretamente às habilidades cognitivas ou funções mentais superiores, tais como a atenção, a memória interpretativa, a linguagem e a abstração, entre outras, ainda estão pouco desenvolvidas.

Um exemplo da ‘imaturidade’ do cérebro humano ao nascer encontra-se nos lobos temporais, relacionados à memória interpretativa: essas importantes áreas do cérebro estão praticamente ausentes ao nascer, mas se desenvolvem intensamente ao longo dos três primeiros anos de vida. E, para alguns neurocientistas interessados em entender como são armazenadas e processadas nossas memórias, isso pode explicar a ‘amnésia infantil’, ou seja, o fato de nossas memórias na primeira infância, até cerca de três anos, serem inconscientes. Segundo eles, nesse primeiro tempo de vida, nossas memórias seriam diferentes daquelas da vida adulta, não baseadas em linguagem simbólica, e estariam armazenadas em áreas subcorticais do cérebro ou em seus centros inferiores, relacionados mais diretamente ao processamento de emoções (o sistema límbico).

Conforme o cérebro se desenvolve e a rede neural se amplia, no entanto, interligações são formadas entre os centros inferiores (o sistema límbico) e os centros superiores (o neocórtex), permitindo o armazenamento e o processamento de informações também por essas áreas do cérebro. As memórias poderiam, então, ser também armazenadas e processadas aí e se tornariam, portanto, interpretativas e conscientes.

Segundo a visão neurocientífica, brincar teria um papel fundamental nesse e em outros importantes processos cerebrais. Basicamente, ao propiciar muitas e variadas experiências novas, o brincar provocaria a formação e consolidação de importantes circuitos neurais, tornando interligadas áreas do cérebro relacionadas a distintas competências ou conjuntos de habilidades.

Entre os circuitos neurais formados ou fortalecidos pelo brincar, estariam, por exemplo, aqueles que interligam o sistema límbico ao neocórtex, o que disponibilizaria aos humanos um intercâmbio ainda mais eficiente entre o que costumamos chamar de maneira simplificada de emoção e razão. Seria graças ao brincar, portanto, que a nossa tomada de decisões, antes restrita à ação do sistema límbico ou sob comando das emoções, poderia passar a contar com o apoio do neocórtex e valer-se também de habilidades racionais.

Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/alo-professor/intervalo/2013/10/por-que-brincar-e-importante

Para saber mais:

GOLEMAN, D. O cérebro e a inteligência emocional: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

OLIVEIRA, V.B. O brincar e a criança do nascimento aos seis anos. Rio de Janeiro: Vozes, 2010 (10ª edição).

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