Delicada superfície

Distúrbios psíquicos mobilizam hormônios, interferem no equilíbrio imunológico e desencadeiam perturbações na pele, como acne, dermatite e psoríase. 

Massimo Barberi

Ariane tem 19 anos e prepara-se para a primeira viagem ao exterior: vai passar um mês em Londres, prestando serviços a uma família em troca de hospedagem. Quando volta, sua mãe quase não a reconhece no aeroporto: o rosto da filha está completamente coberto pela acne. Na tentativa de explicar a transformação na pele de Ariane, a mãe sugere tratar-se de uma reação à mudança no cardápio e acredita que o retorno à dieta habitual e o uso de cremes irão eliminar as espinhas. Mas isso não acontece. Pústulas e pápulas permanecem. A culpa não é dos hábitos alimentares ingleses: em Londres, Ariane viveu uma intensa história de amor. Ao terminar o relacionamento, somatizou a ansiedade e o stress.

“Um clássico exemplo de acne psicossomática”, explica o dermatologista Roberto Bassi, professor de psicossomática da Universidade de Ferrara, na Itália. Ele estuda os efeitos da somatização no maior órgão do corpo, a pele, e afirma que a acne é uma resposta defensiva à ansiedade: “O contato com outras pessoas costuma ser fonte de stress em adolescentes; as espinhas são álibis para reduzir ocasiões de socialização”. O processo tem início no cérebro, onde um mecanismo hormonal lança o sinal que atravessa hipotálamo e hipófise, chega às glândulas sebáceas e à pele, desencadeia a inflamação e predispõe a infecções.

DIÁLOGO QUÍMICO

A estreita ligação entre psiquismo e pele não é novidade. Esse “diálogo” foi comprovado por numerosos estudos realizados desde a segunda metade do século XX. Pesquisas recentes identificaram o processo bioquímico que ocorre nessa comunicação. Com base nas descobertas, especialistas buscam compreender a “linguagem” estabelecida entre pele e mente, para poder intervir no movimento de somatização. O interesse nesses fenômenos se justifica: há estimativas de que 30% dos distúrbios dermatológicos derivam de processos psicossomáticos. Nessa projeção estão incluídos alopecia local – perda de cabelos localizada –, psoríase, vitiligo e pruridos. 

Até hoje o foco das pesquisas tem sido o psiquismo, com seus distúrbios em grande parte desconhecidos. Essa tendência é confirmada pela expressão “psicossomático” (do grego psico, relativo a mente, e soma, que significa corpo). O dermatologista Torello Lotti, professor da Universidade de Florença, na Itália, acredita, no entanto, em novos paradigmas: “Em vez de psicossomático, hoje se dá preferência ao termo somatopsíquico, exatamente para centralizar o soma”. Interpretações atualizadas desses fenômenos comparam o comportamento do corpo ao de um “cérebro difuso”.

Neurotransmissores envolvidos nos processos cerebrais estariam presentes em outras partes do organismo. Para Lotti, é assim que as mensagens do cérebro são percebidas fisicamente, sobretudo quando provocam algum distúrbio. A teoria do cérebro difuso pode ser demonstrada por uma pequena molécula protéica, chamada alfa-MSH (do inglês melanocyte stimulating hormone), hormônio que, além de importante neurotransmissor, está presente, como se descobriu, na pele e ao seu redor. 

MECANISMO HORMONAL 

Segundo Lotti, o alfa-MSH é um antiinflamatório mais potente que muitos medicamentos. Até poucos anos acreditava-se que fosse produzido somente na hipófise, mas estudos comprovaram que é sintetizado também pelas células da pele. Essa produção cutânea parece ser coordenada pelo sistema nervoso central, o que configura uma espécie de mecanismo de controle das inflamações. A cura de doenças relacionadas a essa manifestação, portanto, depende do cérebro, capaz de determinar a produção da substância diretamente na pele. 

Mas por que exatamente na pele e não em outro órgão qualquer? A origem dessa interação é ancestral: o folheto embrionário do qual se origina a pele é o ectoderma, o mesmo que forma o tecido cerebral. O professor Torello Lotti observou que os melanócitos, células responsáveis pela coloração da pele, são muito similares aos neurônios, dotados de dendritos com receptores do sistema nervoso central.

São inúmeros os eventos, patológicos ou não, que têm origem na mente e se manifestam na superfície da pele. Pessoas acometidas, por exemplo, pela alexitimia (incapacidade de nomear as próprias emoções) sofrem das mais variadas patologias cutâneas (ver “Os segredos das emoções”, Mente&Cérebro no 143, dezembro de 2004). Aquilo que não se consegue elaborar no sistema nervoso central parece exprimir-se sobre a cútis. Para Lotti, a pele seria o palco preferido da mente – uma “escolha” feita, provavelmente, no período neonatal. Muitos psicólogos acreditam que a pele tem papel importante na primeira fase da vida, no desenvolvimento da identidade e na constituição do self. O contato físico do bebê com a mãe seria o principal estímulo à percepção de uma fronteira entre ele e os outros. Nessa fase a criança começa a estruturar a própria imagem. Pessoas que, desde o nascimento, apresentam deficiências táteis parecem estar mais sujeitas a distúrbios de personalidade. 

A interação entre psiquismo e pele, portanto, é dupla: existem patologias psiquiátricas, como esquizofrenia ou depressão, que se manifestam na forma de manchas, irritações, erupções, pruridos e escamações. Na direção oposta, o aparecimento de doenças da pele costuma interferir nos estados de humor, provoca sintomas depressivos e compromete a auto-estima. 

A classificação de doenças produzidas pela comunicação entre pele e mente prevê três grupos de patologias: o primeiro reúne distúrbios psicofisiológicos nos quais as manifestações cutâneas são preexistentes e se agravam em perío-dos de desequilíbrio emocional. O segundo grupo compreende doenças psiquiátricas com decorrências predominantes sobre a pele. É o caso da tricotilomania (hábito de arrancar cabelos) ou de dermatites provocadas por arranhões no próprio corpo. Com esses pacientes o primeiro passo é a terapia psiquiátrica, ao mesmo tempo que o dermatologista intervém para remediar os danos auto-infligidos e prevenir eventuais complicações.

ALÍVIO DA ANSIEDADE 

O terceiro grupo é composto por distúrbios psiquiátricos secundários, nos quais o desconforto emocional é provocado pela presença de doenças da pele, especialmente as mais desfigurantes, como o vitiligo. Mesmo distúrbios considerados mais leves pela dermatologia, como acne ou alopecia local, podem ser prejudiciais à imagem e interferir no equilíbrio psíquico do paciente. 

Em muitos casos o desenvolvimento de afecções cutâneas parece ser um recurso para alívio da ansiedade. Pessoas afetadas por acne crônica tendem à insegurança e são pouco tolerantes a frustrações. Quando as pústulas na face desaparecem com o uso de medicamentos, é comum encontrarem dificuldades para se adaptar à nova condição. Entre pacientes de alopecia, além da ansiedade, são freqüentes traços obsessivos e de dependência. Já a psoríase parece relacionada à predisposição genética e à dificuldade de expressão verbal das emoções. Pesquisas identificaram comportamento defensivo, caracterizado por repressão dos próprios sentimentos, falta de atração sexual e raiva intensa em vítimas desse distúrbio. Como a doença implica espessamento da pele, é possível recorrer à psicanálise para traçar uma analogia: a pessoa afetada constrói uma espécie de couraça com a qual se protege do mundo.

Entre pacientes com vitiligo a dimensão psíquica parece não apenas desencadear, mas condicionar o curso da doença. As lesões na pele – em geral no rosto e nas mãos – surgem com mais freqüência em situações de stress e conflito emocional. O aspecto das manchas costuma afetar a auto-imagem e pode comprometer as relações sociais, acentuando, em alguns casos, o risco de depressão. Em relação à urticária, pesquisas demonstram que a cura fica comprometida quando não se consegue identificar o agente desencadeador da alergia que antecede o prurido. São casos prováveis de alergia emocional: na patogênese da doença, fatores psíquicos parecem aumentar a liberação de moléculas do sistema imunológico, entre elas a histamina, capaz de ocasionar os sintomas. Estudos com pacientes de dermatite atópica confirmam a relação somatopsíquica. Segundo Lotti, distúrbios de humor, ansiedade e alterações emocionais podem afetar componentes dos sistemas imunológico e endócrino, relacionados à doença. A variação dos estados de humor e o valor atribuído pelo paciente ao prejuízo social têm papel decisivo no processo de cura. 

Nem todas as situações que produzem tensão e desequilíbrio emocional repercutem do mesmo modo sobre a pele. Estudo publicado no The Journal of Investigative Dermatology demonstrou que o stress psicológico é mais eficaz que o stress físico para baixar as defesas imunológicas cutâneas. Pesquisadores da Universidade de Cornell, Estados Unidos, submeteram voluntários a diferentes tipos de stress simulados em laboratório: uma falsa entrevista de emprego, privação do sono por 42 horas e três sessões diárias de esteira ergométrica. Para verificar os efeitos sobre a homeostasia cutânea, mediram, em seguida, as concentrações de hormônios e citocinas no sangue e os níveis de células do sistema imunológico na circulação e áreas periféricas. Concluiu-se que a entrevista de trabalho e a privação de sono enfraqueceram as chamadas “funções de barreira”. A alteração tornou a pele mais suscetível a reações alérgicas e inflamações, mecanismos indutores e agravantes de patologias como psoríase e dermatite atópica. Os efeitos, porém, não foram registrados em mulheres submetidas ao stress de fadiga provocado pela caminhada na esteira.

O SURGIMENTO DA PSICOSSOMÁTICA 

O termo “psicossomático” foi criado em 1818 por Johann Christian Heinroth, professor de psiquiatria da Universidade de Lipsia, Alemanha. Ele defendia a necessidade de uma disciplina que se opusesse à visão de saúde predominante na época, segundo a qual todas as doenças têm origem em processos orgânicos. Ao longo do século XIX a psicossomática se desenvolveu como ramo transversal da psicologia para se integrar, posteriormente, ao núcleo em torno do qual surgiu a psicanálise.

PODER DA HIPNOSE 

Experiências com hipnose parecem confirmar a interferência da mente nas doenças da pele. Um dos primeiros estudos sobre o assunto, publicado em 1994 no Journal of the American Medical Association, demonstrou que a resposta ao prick test (aplicação subcutânea de pequena quantidade de alergênico) se atenuava em voluntários submetidos a terapia. Mais recentemente, pesquisa publicada nos Archives of Dermatology analisou patologias que poderiam ser tratadas com hipnose. Os resultados foram surpreendentes: acne, alopecia local, dermatite atópica, seborréia, glossodínia, herpes, hiperidrose, urticária, psoríase, acne rosácea e vitiligo são doenças nas quais a terapia surtiu efeito. O estudo demonstrou alterações favoráveis até em casos de eritema solar. Os efeitos seriam amenizados em pessoas expostas ao sol em estado de hipnose.

DELÍRIO DA PARASITOSE 

Sensação de que insetos, aranhas ou vermes caminham na superfície da pele: esse é o sintoma da síndrome de Ekbom, descoberta pelo neurologista sueco Karl Axel Ekbom. Trata-se de uma forma particular de psicose, também chamada de “delírio de parasitose”. Causa no portador a alucinação de estar infestado por parasitas: um exemplo clássico, embora não muito freqüente, de manifestação cutânea de distúrbio mental. A primeira atitude do doente é procurar um dermatologista. Há registros de pacientes que chegaram a apresentar pequenos fragmentos de pele, crostas e peças de roupa, com as quais pretendiam provar a “infestação”. Ao dermatologista, nesses casos, cabe apenas encaminhar o paciente ao tratamento psiquiátrico. A síndrome de Ekbom pode também ser provocada pelo uso de substâncias estupefacientes e anti-hipertensivos. A manifestação foi denominada cocaine bug, tamanha a freqüência com que ocorre em usuários de cocaína e anfetaminas. Nesses casos, os sintomas da psicose surgem associados a tremor e febre.

PARA CONHECER MAIS 

O eu-pele. Didier Anzieu. Casa do Psicólogo, 2000. 

Psicossomática: uma visão simbólica do vitiligo. Maria Campio Müller. Vetor, 2005. 

Skin reaction to histamine of health subjects after hypnotically induced emotions. R. Zachariae et al., em Allergy, vol. 56, no 8, págs. 734-740, 2001. 

Emotions and skin. I. M. Roberton, em British Journal of Dermatology, vol. 92, no 4, págs 407-412, 1975.

 

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/delicada_superficie.html

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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