Quando o escrever alivia a alma

Escrita para curar

Em alguns casos, escrever de forma orientada sobre experiências traumáticas pode ajudar pessoas a refletir sobre si e a superar a dor da perda

Por Massimo Barberi

Há seis anos Marta perdera o marido em um acidente de carro. Embora tivesse, aparentemente, superado o trauma, custava-lhe manter as relações com os amigos e ainda mais conhecer novas pessoas. Dormia e comia muito pouco e um véu de tristeza permanente a atormentava. Por sugestão de pessoas próximas decidiu procurar ajuda terapêutica. Na primeira consulta, falou por meia hora. Depois se calou. E continuou calada nos três encontros seguintes.

Não é que não quisesse continuar (ou iniciar) a psicoterapia – simplesmente não conseguia falar. Ainda assim tentava: chegava na hora marcada e se empenhava para romper a própria mudez. Cerca de um mês após o início dos encontros o psicólogo interrompeu seu silêncio com palavras que surpreenderam Marta: “É suficiente por enquanto. Na próxima semana, traga um caderno e uma caneta”. Marta levou o material pedido e -– para sua surpresa – conseguiu expressar nos encontros seguintes muito mais do que imaginava. Por meio da escrita vieram as lágrimas, o reconhecimento da frustração e da raiva pela perda precoce, as associações que a remeteram a cenas de morte vividas na infância, as reflexões, de novo as palavras -– e um novo alento.

Embora não seja muito comum, em certos casos, alguns psicólogos recorrem, em vez da fala, à escrita. Registrar no papel experiências negativas, como um luto, pode ser uma técnica terapêutica eficaz em determinadas circunstâncias. Alguns estudos mostram efeitos da narrativa escrita sobre a saúde em geral, física e psíquica, mesmo de pessoas sãs. Os resultados são animadores, a tal ponto que a velha idéia do “caro diário” foi revalorizada.

“Na clínica, o objetivo é ajudar o paciente a compreender melhor as questões que o inquietam, aproximar-se dos sintomas e da dor psíquica de forma protegida, traduzindo emoções em palavras”, diz o professor de psicossomática Luigi Solano, da Universidade La Sapienza, em Roma, autor de Scrivere per pensare (Escrever para pensar, não lançado no Brasil). Ele acredita que a escrita terapêutica ajuda a pessoa a descrever detalhes de experiências negativas, explicitar sentimentos, colocar os fatos em ordem cronológica e estabelecer nexos. Para ele, escrever e falar não se contrapõem, mas, diferentemente do que se dá na comunicação verbal, na qual há espaço para associações inesperadas, que muitas vezes levam a questões inconscientes intrincadas -– e fundamentais para o tratamento –, na escrita o foco é mais definido.

EXPERIÊNCIAS TRAUMÁTICAS

Estudo publicado no Journal of Paliative Medicine apóia a idéia de que descrever os próprios sentimentos e emoções em uma narração coerente dos fatos pode ser útil em situações específicas, como superar o luto da morte do cônjuge – a exemplo de Marta. Para medir a eficácia da técnica, os pesquisadores avaliaram os pacientes deprimidos depois de estes passarem por uma perda significativa e pediram a eles que registrassem regularmente seus sentimentos.

O primeiro estudo sobre a técnica da escrita foi realizado no início da década de 90, por James Pennebaker, diretor do Departamento de Psicologia da Universidade do Texas em Austin, com alguns de seus alunos. Pennebaker pediu que, durante quatro dias, cada estudante escrevesse todos os dias, por 15 minutos, pensamentos suscitados por experiências traumáticas, sem se preocupar com a qualidade dos textos e sem se identificar. Uma vez iniciada a escrita, os voluntários deveriam prossegui-la, sem se deter e sem dar atenção à ortografia, à gramática ou à estrutura do período. Os resultados foram surpreendentes: os estudantes, em geral de classe média alta, descreveram uma penosa lista de histórias trágicas. Estupros, violência na família, tentativas de suicídio e problemas com drogas foram os temas mais comuns. “Metade deles descreveu experiências que qualquer psicólogo consideraria traumáticas”, constatou Pennebaker.

A partir dessa primeira experiência, os alunos de Pennebaker foram acompanhados durante todo o ano escolar. Descobriu-se que a freqüência de suas visitas ao centro médico universitário diminuiu, pois os problemas somáticos reduziram em quantidade e intensidade. Essa foi a primeira demonstração de que a “técnica da escrita” pode ter efeito positivo na saúde em geral, inclusive a física.

Após o êxito de Pennebaker, as expectativas em torno dessa técnica aumentaram, assim como o número de estudos dedicados ao tema. Anos depois, o professor de psicologia Joshua Smyth, da Universidade do Estado de Dakota do Norte, solicitou a 70 pessoas que sofriam de asma ou artrite reumática que escrevessem, em três sessões de 20 minutos, sobre as situações mais estressantes e traumáticas que tiveram. Smyth também trabalhou com um grupo de controle formado por indivíduos com as mesmas patologias, pedindo, porém, que escrevessem sobre a programação de seu dia. Assim, os eventos traumáticos foram contrapostos às perspectivas do futuro imediato.

Quatro meses depois, metade das pessoas que descreveu os traumas manifestou uma nítida melhora nos sintomas: redução da dor e aumento da mobilidade, no caso da artrite reumática, e um incremento da capacidade pulmonar, no caso dos asmáticos. No grupo de controle, porém, apenas 24% apresentaram melhoras análogas.

Uma possível explicação é fornecida por pesquisas sobre os efeitos da escrita sobre o sistema imunológico. Expressar no papel as próprias experiências negativas parece aprimorar a percepção da pessoa a respeito de si, tornando a somatização mais tênue. Smyth constatou também a redução nos níveis de cortisol (hormônio produzido por uma glândula do sistema neuroendócrino, ativado nos momentos de stress) nos pacientes que escreveram sobre seus traumas. O fato não surpreendeu, já que os sistemas imunológico e neuroendrócino desempenham papel decisivo nos sintomas da asma e da artrite reumática.

Uma pesquisa recente, realizada na Itália, avaliou os efeitos da escrita na saúde psíquica e física de 20 gestantes. Durante seis sessões, uma por semana, elas escreveram sobre sentimentos e pensamentos ligados à gravidez. Nas duas últimas sessões, as futuras mães descreveram as expectativas e as fantasias relacionadas ao parto e ao recém-nascido. Comparadas a outras grávidas, as que participaram do experimento manifestaram maior capacidade de exprimir as emoções, tiveram menos dor durante o parto, risco menor de depressão após o nascimento da criança e mais facilidade de amamentar. Além disso, seus bebês precisaram de menos consultas médicas nas primeiras semanas de vida.

POR QUE FUNCIONA?

Embora alguns psicanalistas ressaltem a importância da codificação verbal de conteúdos armazenados em forma não-verbal, outros reconhecem a mudança que a escrita é capaz de provocar na percepção de si. Algo similar àquilo que Sigmund Freud imputava ao papel do diário. A “voz do ausente”, expressão usada pelo fundador da psicanálise para designar a escrita, pode facilitar a elaboração de perdas e a aceitação do luto e da separação – o que abre caminho para reparações psíquicas.

Mas, afinal, como o registro das experiências no papel pode causar tantos benefícios? “É muito difícil encontrar uma única explicação para um fenômeno tão complexo”, reconhece Solano. “O fato é que ao longo da vida todos passamos por eventos mais ou menos traumáticos e, mesmo que estejamos bem e não apresentemos transtornos significativos, é provável que haja um elemento estranho em nossa mente que pode impedir o desenvolvimento máximo das potencialidades. Por isso, quando escrevemos regularmente sobre nossas emoções e trajetória, quase sempre vem à tona um evento que nos perturba. Escrever ajuda a reelaborar e superar essas vivências desagradáveis.”

Outra hipótese, complementar à anterior, sustenta que a escrita “ensina” a mente a pensar de forma mais complexa e articulada. “É uma espécie de exercício mental que ajuda nas relações com os outros e consigo mesmo”, afirma o psicólogo. Certos estudos demonstraram que, após escreverem seguindo essa técnica, as pessoas se tornaram mais ativas nas relações com os outros. “Os experimentos mostram ativação de habilidades sociais, maior facilidade para se expressar afetivamente e, em alguns casos, a escrita ajudou a redefinir metas profissionais”, observa. É como se, ao serem colocados no papel, desejos, necessidades e emoções se tornassem mais claros.

“A escrita nada mais é do que um sonho portador de conselhos”, dizia o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). E quanto às outras formas de expressão? A música, por exemplo, permitiria elaborar a experiência, assim como a escrita? E o mesmo se aplica à pintura? Muitos artistas expressam na tela as próprias experiências traumáticas, na forma de linhas e cores. “Talvez não seja adequado colocar no mesmo plano a escrita e as formas de arte que não contemplam a palavra, pois é justamente o uso da linguagem que permite a reelaboração dos fatos e a reflexão”, acredita Luigi Solano, da Universidade La Sapienza.

O cinema talvez esteja mais próximo da arte da escrita. Basta recordar o filme Macbeth (1971), de Roman Polanski. O diretor recriou a obra-prima de Shakespeare com um excesso de sangue e violência, o que, segundo vários críticos, evocava o bárbaro assassinato de sua mulher, três anos antes. 

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/escrita_para_curar.html

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