O machismo, os assédios e a violência de gênero

Pelo fim das cantadas (e do machismo)!

98% das brasileiras já sofreram algum tipo de assédio – e 8 em cada 10 não curtem.

por Bárbara Secco 

Rio de Janeiro, início de 2016. Numa manhã de sábado saio de casa vestida com uma bermuda e camisa de manga. No caminho para meu destino – menos de 10 minutos, a pé, sou abordada por três homens, de idades variadas. O primeiro me “elogia”, num tom baixo, em que só eu posso escutar. O segundo está de carro, diminui a velocidade e comenta sobre meu corpo. O terceiro passa por mim e me olha como se eu estivesse à venda.

Outro dia, quando a sensação térmica na cidade beirava os 50 graus, passei por uma menina na rua, com roupa de ginástica e um casaco amarrado na cintura, para que seu corpo, marcado pelo tecido apertado, não chamasse tanto a atenção. A vi e tive pena, de mim e dela. Porque muitas vezes uso o mesmo artifício. E a gente vai se tolhendo, como quem aceita o fardo de ter nascido mulher.

Não a culpo. Não me culpo. Mas não precisamos mais nos calar.

Todos os dias, mulheres são obrigadas a lidar com comentários de teor obsceno, olhares, intimidações, toques indesejados e importunações de teor sexual que muitas vezes são entendidos como elogios, brincadeiras ou características intrínsecas da sociedade quando, na verdade, tudo pode ser considerado uma violência contra as mulheres, em diferentes níveis.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2014 ocorreram no Brasil entre 136 mil e 476 mil estupros. A cada três horas, uma mulher é estuprada no país. Apenas 10% dos casos são notificados. E os assédios? Esses nem entram nas estatísticas. Ou melhor, não entravam.

Criada em de julho 2013, “Chega de Fiu Fiu” é uma campanha de combate ao assédio sexual em espaços públicos lançada pelo Think Olga, uma think tank feminista. Com o sucesso da campanha, foi lançado um estudo online contabilizando a opinião das mulheres em relação às cantadas de rua.

Participaram cerca de 8 mil mulheres, de todo o país. Alguns resultados da pesquisa: 98% delas já haviam sofrido assédio, 83% não achavam legal, 90% já trocaram de roupa antes de sair de casa pensando onde iam por causa de assédio e 81% já haviam deixado de fazer algo (ir a algum lugar, passar na frente de uma obra, sair a pé) por esse motivo. Entre as reações à campanha, uma minoria de mensagens de ódio e até ameaças de estupro.

Com o resultado do estudo foi criado o “Mapa Chega de Fiu Fiu”. A ideia é que o material seja um instrumento de empoderamento para as mulheres, que passam a ter um espaço para denunciar assédios e agressões e, quem sabe, tornar as cidades mais seguras ao relacionar geograficamente os locais e motivos que aumentam a incidência de casos de assédio em determinadas áreas. ‎‎No mapa, encontramos casos por todo o país. Relatos de assédios físicos, verbais, homofóbicos, racistas e outros, com data e com comentários sobre o ocorrido. Percebe-se que o assédio não é algo bairrista ou relacionado a alguma classe social. E sempre é cometido pelo sexo masculino.

‎Na História, o papel da mulher – por anos, séculos e milênios – foi subalterno, à margem da presença masculina. O filósofo francês Michel Foucault diz que a sexualidade e a diferença “homem x mulher” não vêm da natureza, mas é criada a partir de contextos históricos. Na construção do gênero masculino, ainda na infância, os aspectos de masculinidade são ideias e práticas que identificam essa identidade à virilidade, à força e aos poderes advindos da própria constituição biológica sexual, colocando o oposto como características femininas.

A ideia de mulher como “subgênero” ou “segunda classe” só começou a ser revista com o início do movimento feminista, por volta de 1791, com a publicação da Declaração dos Direitos da Mulher, durante a Revolução Francesa (Uma linha do tempo da história feminista pode ser acessada aqui.) Até então, a mulher ficava fora até mesmo do histórico social e político da sociedade. E, com isso, sofria todo o tipo de violência: física, sexual, psicológica e moral.

No contexto brasileiro, a sociedade é historicamente machista. Uma pesquisa feita pelo Instituto Avon e Data Popular, em 2013, mostra que 98% dos mais de 2.000 entrevistados(as), de todas as regiões do Brasil, afirmaram viver em uma sociedade machista.

O que vivemos hoje pode ser chamado de “machismo velado”, aquele que sabemos que existe, mas que ninguém gosta de admitir. É resultado de uma desigualdade que dá aos homens poder sobre as mulheres. Dados da mesma pesquisa mostram que 52 milhões de brasileiros(as) admitem ter algum conhecido, parente ou amigo que já foi violento com a parceira. No entanto, apenas 9,4 milhões de homens admitem terem tido tal atitude. Por quê?

A pesquisadora Rita Laura Segato, no artigo “Gênero e Colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial”, enumera algumas teorias para explicar o feminicídio (ou genocídio de gênero) vivido nos tempos atuais. Dentre os exemplos, o avanço dos direitos das mulheres, que colocam “em xeque” a superioridade masculina no ambiente familiar e a resposta conservadora ao que se apresenta na sociedade como inovador (no caso, a independência das mulheres).

Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que 58,5% dos(as) brasileiros(as) concordam totalmente ou parcialmente com a frase “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Um preconceito ainda enraizado no comportamento e no imaginário da população brasileira. A impunidade do feminicídio, uma invenção moderna (como o genocídio), encontra-se vinculada à privatização do espaço doméstico como espaço residual, não incluído na esfera das questões maiores, consideradas de interesse público geral. Por anos, a luta das mulheres era vista como uma luta inferior, até mesmo dentro da esfera da luta de classes. O mesmo se dava (e se dá até hoje) com outras minorias, como homossexuais, transexuais, indígenas, etc.

‎Exemplos de machismo e da falta de legitimação da luta pelos direitos das mulheres no Brasil podem ser vistos também na nossa política. O PMB, Partido da Mulher Brasileira, foi criado em 2008 com a intenção de “aumentar a participação das mulheres em todos os setores da sociedade” e conta com 20 cadeiras no Congresso Federal. Destes, apenas duas são ocupadas por mulheres. Nem mesmo a liderança do partido é feminina (cargo ocupado pelo deputado Domingos Neto, do Ceará).

Não que essa não seja uma luta de todos, homens e mulheres. Com certeza é. Mas uma das grandes reivindicações do movimento feminista é pelo aumento da participação das mulheres da política – dos 513 deputados que compõem a Câmara, apenas 52 são mulheres (cerca de 10%). E a falta de expressividade da mulher em um partido que coloca essa luta em seu próprio nome só reflete o quanto ainda estamos distantes de uma sociedade igualitária para brasileiras e brasileiros.

‎‎Outro tema polêmico é o Projeto de Lei 5.069, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que visa mudar as regras para casos de aborto no Brasil. Aprovado em outubro de 2015 pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, o projeto pretende tornar crime induzir, instigar ou auxiliar uma gestante a abortar.

Atualmente, está previsto no Código Penal, artigo 128, que a mulher tem o direito de realizar abortamento legal em duas situações: se a vida da gestante estiver correndo risco e se a gravidez resulta de estupro. Uma terceira situação foi aprovada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012: no caso de feto anencéfalo. Uma legislação antiquada, se comparada a países como Alemanha, França e até os vizinhos Uruguai e Argentina.

Na Argentina, o artigo 86 da Constituição legaliza o aborto quando a mulher se encontra em risco por causa da gravidez, em casos de gravidez por estupro e se a vítima sofre de incapacidade mental. Mas parlamentares seguem apresentando projetos de lei para descriminalizar, de modo mais amplo, a prática.

O Uruguai é o país latino-americano com a legislação pró-aborto mais avançada. Pepe Mujica ratificou em 2012 uma lei que descriminaliza a prática até a 12ª semana de gestação. Com isso, acredite, o número de abortos praticados no país diminuiu (uma em cada cinco mulheres que procuram assistência para interromper a gravidez acabam desistindo).

O projeto de lei brasileiro gerou revolta entre a população, principalmente as mulheres, que foram às ruas protestar, pedindo direitos pelo seu próprio corpo. A pergunta que fica: se os homens engravidassem, o aborto ainda seria ilegal? As revoluções, mesmo as maiores, começam com a luta e perseverança de poucos(as). A luta das mulheres por direitos iguais está apenas começando. 

‎Fonte: http://calle2.com/pelo-fim-das-cantadas-e-do-machismo/

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