A realidade da intersexualidade

O drama das pessoas intersexuais

Elas nascem sem genitália definida como feminina ou masculina, mas não formam, necessariamente, um terceiro gênero. Na Alemanha e em outros países, recebem tratamento especial. No Brasil, não há políticas públicas que as atendam 

por Natália Mendes, 

No início de novembro passado entrou em vigor na Alemanha uma lei que permite registrar recém-nascidos sob a classificação “sexo indefinido”. Ou seja, a opção “masculino” ou “feminino” poderá ficar em branco no documento. Voltada para aqueles que nascem com características físicas que não se enquadram nos padrões médicos “masculino” ou “feminino”, chamados pessoas intersexo, a lei – que, aparentemente, representa uma ampliação dos direitos dessas pessoas – tem sido questionada por militantes da causa. Isso porque traz à tona questões sobre a discriminação e os preconceitos sofridos por pessoas intersexo e, a partir daí, surgem os debates acerca de sua eficácia e dos verdadeiros benefícios que traria para o público ao qual é destinada.

Artigo publicado pelo site BBC Brasil considerou a lei uma vitória: “A Alemanha passa a ser o primeiro país europeu a oficializar o terceiro gênero. Essa mudança é uma opção para pais de bebês hermafroditas, que nascem fisicamente com ambos os sexos”. O site da emissora de rádio alemã Deutsch Welle também saudou a legislação – “Os órgãos públicos alemães passarão a reconhecer legalmente que o sexo de uma pessoa pode ser outro além do masculino ou feminino” –, mas questionou alguns pontos que não teriam sido esclarecidos: “Como será, por exemplo, o futuro passaporte? Em alguns países, a falta de uma definição clara do sexo pode levar a um problema na imigração. Também a questão de se futuramente os intersexuais poderão se casar ou somente firmar uma união civil ainda precisa ser esclarecida”. 

Discriminação 

Esses e outros problemas foram igualmente apontados por militantes. A Organisation Intersex International Europe (OII Europe), por exemplo, publicou nota em seu site analisando o texto legal na qual evidencia que o caminho para a não discriminação de pessoas intersexo é mais longo do que pode parecer. “Quem determina que uma criança não pode ser definida como sendo nem do sexo masculino nem do feminino? De acordo com a prática atual, apenas a medicina.” Ou seja, como a definição do sexo da criança ainda está nas mãos de médicos, a lei não representaria um avanço – e o que parece uma escolha, na verdade, seria uma determinação, pois o sexo do recém-nascido ainda teria que ser classificado de acordo com padrões binários. 

Hailey Kass, tradutora e pesquisadora das áreas de linguística e gênero, reforça a visão da OII Europe. Em texto publicado pelo site revista o Viés, ela afirma que a nova lei “parece ser só aplicável para pessoas intersexo”. “Pessoas não intersexo não poderiam ser designadas fora do binário para no futuro escolherem? Por que só as pessoas intersexo?” Ela menciona outra passagem da nota da organização europeia: “Em vez de permitir que o registro de sexo fique aberto para todos(as), e não apenas para crianças intersexuais, novamente regras especiais são criadas, o que produz exclusão. As condições de vida da maioria das pessoas intersexo não irão melhorar como resultado disso”. 

Despois da lei

“Os efeitos dessa lei podem, na prática, apresentar-se em forma de discriminação e estigmatização”, diz Shirley Monteiro de Lima a Retrato do Brasil. Ela é doutoranda da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e trabalha no Centro de Referência da Diversidade (CRD). “Uma diferença que está no corpo e poderia ser manejada pelo círculo familiar e por decisão do indivíduo intersexo, ao tornar-se pública no registro de nascimento, expõe a pessoa a julgamento social, discriminação e pressão por normatização. A lei abre espaço para mais violações de direitos”, conclui.

“Ainda não sabemos ao certo o impacto dessa lei na dinâmica da família e se a criança sofrerá algum tipo de restrição social por não ter o sexo determinado no registro de nascimento”, diz Ana Canguçu-Campinho, psicóloga do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a RB. Ela trabalha desde 2002 com a temática intersexo, acompanhando pessoas nascidas intersexuais e suas famílias. Apesar das dúvidas, Ana enxerga possíveis pontos positivos na mudança. “Até o momento, acho uma alternativa interessante, uma vez que, ao não identificar o sexo no registro, permite-se que o tempo seja usado como um aliado pela própria pessoa intersexual. A criança passa a ser considerada cidadã, ao mesmo tempo em que é dado, ainda que provisoriamente, um tempo para definição do sexo.” Ela esclarece que a “lei de registro não prevê um terceiro gênero, pois no formulário não existe uma nova categoria além do masculino e do feminino. A opção de deixar ‘em branco’ o item implica uma flexibilização na forma de registrar o sexo”.

Poucos países têm leis voltadas exclusivamente para pessoas intersexo. Segundo levantamento publicado pelo site da Deutsch Welle, desde 2010 vigora no Paquistão legislação que reconhece intersexuais como cidadãos, embora não existam dados oficiais sobre o número de pessoas intersexo vivendo no país. Antes disso, as pessoas intersexo não podiam ser registradas – ou seja, não podiam votar ou ter conta em banco, por exemplo. “Com a lei, os intersexuais passaram a ter acesso à educação gratuita, ao sistema público de saúde e a eles é reservada uma cota de 2% dos postos de trabalho em órgãos governamentais.”

Diferente

Na Austrália, os documentos de pessoas intersexo contam com um terceiro campo, ao lado dos de “masculino” e “feminino”, em que é empregado o termo “diferente”. Países como Afeganistão e Nepal também reconhecem pessoas intersexo. Já na Índia existem as Hjiras, pessoas que não são consideradas “nem homem nem mulher” e que possuem um papel social definido: são encarregadas de batizar crianças e abençoar casamentos. Nesse país, “as crianças intersexuais são abandonadas em templos e criadas em uma comunidade específica”, explica Ana.

O tema da intersexualidade, além de complexo, tem sido submetido a interpretações equivocadas. Em 1993, o termo hermafrodita ficou conhecido no Brasil após o sucesso da novela “Renascer”, transmitida pela TV Globo, que contava com a personagem Buba, interpretada pela atriz Maria Luísa Mendonça. Mas o assunto não foi aprofundado e essa passou a ser uma das únicas referências comuns sobre intersexualidade. Hoje, a expressão “hermafroditismo” não é mais usada por pesquisadores, especialistas e militantes, por trazer um conceito equivocado.  

Shirley explica, em sua dissertação de mestrado, que o termo hermafrodita é oriundo da mitologia grega, da história de Hermafroditus, um jovem muito bonito, filho de Hermes e Afrodite, que despertou a paixão da bela ninfa Salmacis. Mas Hermafroditus a rejeitou e dizia preferir a morte ao amor de Salmacis. Já a ninfa pediu aos deuses que nunca se separasse dele. Para atender aos dois pedidos, os deuses uniram Salmacis e Hermafroditus em um único ser com dois sexos.

“Pela definição médica, uma pessoa nascida sob a condição de intersexualidade não apresenta sexo cromossômico, genitália externa ou sistema reprodutivo interno dentro do padrão considerado normal para o sexo masculino ou feminino”, diz Shirley. Isto é, não se trata de um homem e de uma mulher em um único corpo, nem de uma pessoa que seja homem e mulher ao mesmo tempo.

Em maio de 2004, o site da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo (ILGA, na sigla em inglês) publicou declaração assinada por Mauro Cabral, ativista argentino intersexual, que afirma que, para a medicina ocidental, os intersexuais são “pessoas com genitália ambígua, indefinida, deformada ou patológica”. Cabral explica que, “para o movimento internacional de pessoas intersexuais e seus aliados, no campo da teoria e dos direitos humanos, intersexuais são aqueles cuja genitália difere dos estereótipos masculino ou feminino, sem que tal variação na aparência genital signifique uma deformação ou uma patologia herdada”. Assim, conclui ele, “intersexualidade é um termo guarda-chuva, descrevendo uma grande variedade de situações em que os genitais de uma pessoa não correspondem aos estereótipos sociais, culturais e políticos atuais”. 

Terceiro gênero?

Mas, ao contrário do que muitos acreditam, isso não significa que as pessoas intersexuais se identifiquem, necessariamente, com um “terceiro gênero”. Da mesma forma como no caso de pessoas transexuais, pessoas intersexo podem se identificar como homens ou como mulheres, independentemente de seus órgãos genitais e reprodutivos. “No Brasil, ainda é muito raro que uma pessoa nascida intersexual reivindique um espaço distinto dos já consolidados homem e mulher”, explica Ana. “O que acontece com maior frequência é uma tentativa de ajustar seus corpos aos padrões estabelecidos para o sexo. O poder exercido pela medicalização destina pouco espaço para expressão de corpos e identidade que destoem dos padrões estabelecidos socialmente.”

Ou seja, há diversas variações nos corpos e identidades de intersexuais, e generalizar afirmando que pessoas intersexo são, necessariamente, um “terceiro gênero” pode acabar tendo o efeito contrário do que se pretende, limitando as possibilidades de ser de cada indivíduo e obscurecendo as questões específicas relacionadas aos intersexuais. “O sexo, no fim das contas, pode ser mais social do que biológico”, disse Gerald Callahan, imunologista e professor da Universidade do Colorado, nos EUA, em entrevista publicada pelo site da revista semanal Época em 2007. “Por isso, acho que a opinião da pessoa é um fator determinante.” Em sua dissertação de mestrado, Shirley também aborda a questão de identidade, colocando-a como “uma consequência das relações vivenciadas pelo indivíduo com os outros, com o seu contexto social e consigo mesmo”.

Callahan também tocou em uma das questões mais polêmicas relacionas ao tema: a das intervenções cirúrgicas realizadas em recém-nascidos com genitália ambígua. Mesmo não havendo nenhum indício de que a condição de intersexualidade traga problemas de saúde ao indivíduo, esse é um dos principais problemas relatados por pessoas intersexo. As intervenções – questionadas por especialistas e militantes – podem ocorrer, inclusive, sem o conhecimento e a autorização dos pais. “Na maioria das vezes não há nada a ser feito do ponto de vista cirúrgico na infância. Não é uma condição que ameace a vida nem que necessite de tratamento imediato”, disse o imunologista. 

“Considero o principal desafio o reconhecimento social do intersexo como uma diversidade de existência e não como uma anormalidade”, diz Ana. Ela entende que esse é um dos pontos mais importantes na luta das pessoas intersexuais. “A visão do intersexo como anormalidade é histórica. Na Idade Média, as pessoas intersexuais eram percebidas como monstros ou aberrações e muitas vezes eram executadas. Hoje, com a medicalização das sociedades, o intersexo é classificado como doença e anormalidade.”

A OII USA publicou um texto para explicar algumas ideias falsas sobre pessoas intersexo, traduzido por Hailey Kass e publicado no blog Transfeminismo. A organização afirma que as cirurgias que visam a uma “normalização” dos corpos intersexo é equivalente à eugenia, isto é, uma tentativa de “remover diferenças, as quais algumas pessoas decidiram como indesejáveis e que, constantemente, criam problemas que não existiam”. A organização também salienta que as práticas médicas, como as cirurgias e tratamentos hormonais, podem ser contrárias à identidade de gênero da pessoa. 

Políticas Públicas

Na declaração publicada pelo site da ILGA, Cabral afirma que estudos apontam que pelo menos uma em cada 2 mil pessoas nasce com órgãos genitais fora dos padrões médicos e que essas pessoas acabam submetidas a cirurgias para a “correção” da genitália. Shirley explica que, “na prática, os neonatos, quando têm identificada a condição intersexual, são submetidos a intervenção cirúrgica e a registro de nascimento no sexo masculino ou feminino de acordo com a assignação realizada na cirurgia”. Ou seja, recém-nascidos que são identificados com genitália ambígua passam por cirurgia para poderem se enquadrar nos padrões médicos de masculino e feminino e serem registrados com o sexo que foi definido com o procedimento. Mas não há dados precisos sobre o número de procedimentos como esse e sobre o número de pessoas intersexo.

Em artigo publicado há uma década, a revista Super Interessante já apontava a dificuldade de obtenção de informações confiáveis e precisas a respeito. “Os cálculos mais conservadores admitem que um em cada 3 mil bebês nasce com essa morfologia, em suas várias formas (no Brasil, isso significaria uma população de mais de 56 mil pessoas).” Segundo a revista, pesquisadores como Anne Fausto-Sterling, professora de Biologia Molecular da Universidade de Brown, no estado americano de Rhode Island, especialista no tema, “garantem que o número é o dobro: um bebê em cada 1,5 mil”. O texto também explica que a prática de cirurgias em recém-nascidos não é novidade. “As cirurgias para determinar o sexo de bebês são aceitas desde a década de 1960, o que reduz as possibilidades de estudos de longo prazo que confirmem ou neguem virtudes para essa intervenção na natureza dos recém-nascidos e, principalmente, seus efeitos na vida adulta do indivíduo.”

De acordo com o artigo, uma das regras ditadas em manuais oficiais de medicina é operar recém-nascidos que tenham pênis de tamanho inferior a 0,9 centímetro, na tentativa de enquadrar o genital nos padrões femininos, transformando-o em um clitóris. Depois da cirurgia, é recomendado começar um tratamento hormonal. Embora a ideia de que a maioria das cirurgias em pessoas intersexo é para as designar como do sexo feminino, a OII USA desfaz esse mito. “Muitas condições intersexo em bebês designados homens são constantemente ignoradas e seus pais são simplesmente informados de que existe algum problema em urinar adequadamente ou que um testículo não foi formado, etc. Ademais, em várias partes do mundo, pessoas intersexo são designadas como homens o quanto mais possível for, porque ser homem é visto como mais socialmente desejável.”

Sem registros oficiais, com discriminação médica e social, intersexuais acabam por encontrar muita dificuldade em serem reconhecidos e aceitos socialmente e, dessa forma, também enfrentam muitos obstáculos na luta por políticas públicas que realmente atendam às suas demandas. Segundo Shirley, um dos maiores desafios dos intersexuais é “conquistar o direito de decidir em assuntos que afetam seus corpos e sua saúde, decidir se desejam realizar alguma intervenção cirúrgica e pensar criticamente sobre o espaço social que desejam ocupar”.  

No Brasil, não há políticas públicas específicas para intersexuais. Assim como não há nenhuma associação atuante que seja exclusivamente voltada para a demanda de pessoas intersexo. “As demandas são expressas e resolvidas isoladamente ou articuladas às reivindicações e projetos de leis de outros grupos indentitários, como transexuais e travestis”, explica Ana. Assim, “a visibilidade pode ser considerada como um instrumento de emancipação e de promoção da dignidade em pessoas nascidas intersexuais”.  

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/node/27282/

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