Quando as palavras são saudáveis

Curar com palavras

Além de conseguir analisar a personalidade através da escrita, o psicólogo James Pennebaker vê nela uma terapia capaz de ajudar a moderar os efeitos das experiências traumáticas.

James Pennebaker examina as palavras como se elas fossem marcadores biológicos sob a lente de um microscópio. Após três décadas de investigação traduzida em mais de 200 estudos internacionais, este professor de psicologia da Universidade do Texas concluiu que todos os “eus”, “os”, “as” e “eles” e “elas” que referimos nos nossos diários não constituem palavras insignificantes, mas possuem o poder de diluir as vivências traumáticas, quer sejam individuais ou coletivas. De facto, utilizou a sua metodologia para analisar os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque e Washington, e de 11 de março de 2004, em Madrid.

O programa informático que Pennebaker criou mergulha num texto e elabora um quadro clínico preciso, para depois se arriscar a adiantar um prognóstico. Chega mesmo a dar mais um passo, ao sugerir um tratamento simples, económico e isento de efeitos secundários: 15 minutos diários de escrita expressiva, a qual consiste em converter em texto as angústias, crises e experiências dolorosas da existência.

“A escrita expressiva estimula o sistema imunológico, descontrai e melhora a qualidade do sono, ajuda a controlar a pressão arterial, reduz o consumo de álcool e trava as complicações associadas à asma, à diabetes e à artrite”, afirma Pennebaker numa entrevista concecida no seu laboratório no Texas. E acrescenta: “Diminui também as crises depressivas, reordena o pensamento e promove a ligação com os outros.”

Dos Beatles aos presidentes

O seu interesse por contar e avaliar palavras começou em 1979, quando estudava o modo como o stress aumenta o risco de a pessoa adoecer. Depois de distribuir um questionário por estudantes universitários, descobriu que aqueles que tinham vivido uma experiência traumática e que a guardavam para si iam com maior frequência ao médico. Se os segredos são tão nocivos, por que não estudá-los? Foi, assim, que o psicólogo começou a procurar vivências pessoais ocultas em textos.

Aos 61 anos, Pennebaker orgulha-se de ter aplicado as suas análises a textos tão diversificados como as canções dos Beatles, as comunicações da Al Qaeda (como pormenorizamos na caixa sobre as cartas de Osama bin Laden), as obras de Shakespeare ou os discursos de vários presidentes norte-americanos.

Segundo Pennebaker, a escrita é como uma marca registada pessoal: as palavras revelam mais sobre nós do que aquilo que estamos dispostos a contar voluntariamente, pois deixam transparecer o nosso estado de espírito. O analisador linguístico que criou, o LIWC (Linguistic Inquiry and Word Count), é um programa de análise que classifica as palavras de um texto escrito por categorias gramaticais e psicológicas, avaliando-as e ordenando-as por critérios. Estabelece, por exemplo, que 20 por cento dos vocábulos se referem a emoções positivas e 10% a negativas. Determina igualmente o tipo e a quantidade de pronomes pessoais: quanto mais autorreferências um texto incluir (abundância de “eu”, “meu”, “mim”), maior é o individualismo e a tendência depressiva do autor.

“As pessoas deprimidas utilizam mais a primeira pessoa do singular, tendem a centrar-se em aspetos negativos da vida, a isolar-se e a desligar-se dos outros”, explica o especialista. “Depois de se passar por um trauma coletivo, é normal usarmos menos o pronome ‘eu’ e mais o ‘nós’.” Pennebaker refere-se a um estudo que efetuou juntamente com Darío Páez, da Universidade do País Basco, e com Itziar Fernández, da Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED), publicado no International Journal of Clinical and Health Psychology.

A equipe comparou os relatos de 325 norte-americanos e 333 espanhóis após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque e Washington, e de 11 de Março de 2004, em Madrid. A conclusão foi que “os espanhóis escreveram mais sobre processos sociais e incluíram nos textos mais pronomes na segunda e terceira pessoa do que os norte-americanos, enquanto estes utilizaram mais a primeira pessoa”. Os resultados correspondem, segundo Pennebaker, à diferença entre uma cultura individualista (a norte-americana) e outra de carácter mais coletivista (a espanhola).

Para além da eficácia da ferramenta informática em termos de diagnóstico, Pennebaker defende o poder curativo e reconstituinte da palavra escrita. Postula, igualmente, determinados princípios para utilizar a escrita como ferramenta terapêutica em caso de experiências traumáticas coletivas. “As experiências devastadoras atravessam uma fase inicial que se prolonga por três a quatro semanas; nesta etapa, as pessoas pensam e falam todo o tempo sobre o acontecimento”, explica Pennebaker. “Durante esse período de emergência que se segue à crise, as pessoas sabem naturalmente do que precisam e fazem uma autogestão de um processo curativo que não requer a intervenção de profissionais de saúde. Numerosas experiências demonstraram que, durante essa fase, não é conveniente aplicar a escrita terapêutica.” 

Passada esta etapa, surge outra em que as pessoas afetadas já não se mostram tão dispostas a partilhar as histórias com terceiros e mantêm-se centradas na sua própria experiência. “Finalmente, chega uma terceira fase na qual se instala uma espécie de pacto de silêncio, pois o tema deixa a maioria das pes­soas esgotada”, assinala Pennebaker. “É neste trecho que se torna importante a intervenção profissional, com estratégias como a escrita expressiva, que ajudam a elaborar e ordenar mentalmente a experiência dolorosa.”

Por que será tão reparador passar os traumas para o papel? O que acontece na psique para a escrita se transformar num processo potencialmente terapêutico? “O facto de redigir pensamentos”, explica Pennebaker, “muda a forma como a pessoa organiza o seu mundo interior; exige deter-se sobre a experiência e reavaliar as circunstâncias, até alcançar uma nova reprodução cerebral dos acontecimentos. Trata-se de um processo que implica voltar a gravar as emoções num novo formato. Os efeitos, em especial no campo da saúde, nem sempre são permanentes: é como tomar um analgésico, cuja ação deixa de se produzir a curto prazo.”

Hora de escrever

O especialista recorda a origem das suas descobertas: “Depois da publicação dos nossos primeiros estudos, eu próprio comecei a funcionar como um íman para algumas pessoas; atraía-as e contavam-me as suas experiências traumáticas. Escutava-as, pois partia do princípio de que isso as aliviaria, mas, no ano seguinte, voltavam a contar-me a mesma história e o seu estado de saúde também não tinha melhorado. Então, aprendi que contar a mesma coisa, sucessivas vezes, não é necessariamente terapêutico. Uma das condições da escrita expressiva é mobilizar as emoções envolvidas e impulsionar a reconstituição do facto traumático.”

Por outras palavras, o propósito final é que o indivíduo não seja arrastado pela torrente caótica e destrutiva do tsunami, mas participe ativamente no processo de reconstrução pessoal que passar por uma experiência angustiante e traumática exige. A escrita expressiva possui o potencial de ajudar a pessoa a transformar-se no seu próprio terapeuta. “Provavelmente, existem milhares de formas de escrever que podem ser benéficas para cada indivíduo. Cada um costuma ser o melhor terapeuta de si próprio”, afirma o psicólogo.

É importante, para o processo, procurar um lugar onde não nos possam interromper e dispor de um mínimo de 15 minutos, pelo menos durante três ou quatro dias consecutivos. A pessoa deve esquecer as regras gramaticais e deixar correr a escrita para explorar as emoções mais obscuras e profundas, assim como os pensamentos que as acompanham. “Descobrimos que quem escreve com determinados padrões, como a utilização de maior quantidade de palavras positivas, beneficia mais do que aquelas pessoas que recorrem a palavras associadas a emoções negativas”, destaca Pennebaker.

Contudo, o psicólogo assinala que é necessário forçar o recurso a essas palavras saudáveis. “A ideia é escrever sobre as próprias experiências. Inicialmente, muitos sentem tristeza mas, simultaneamente, paz. Algumas semanas depois, estão menos angustiados e mais felizes.” O tema? Pode ser qualquer um, desde que se lembre que escrever é uma forma de se relacionar consigo próprio, com os outros e com temas que doem. Escrever para se distrair: deixar no papel o negativo e ficar com o positivo. Descobrir quem se é para se transformar noutro. 

Fonte: http://www.superinteressante.pt/index.php/mente/artigos/1748-curar-com-palavras

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