Como trabalhar as emoções com as crianças?

 

As crianças precisam conhecer histórias tristes para aprender a lidar com a tristeza

Eva Martinez, educadora e terapeuta espanhola, discute como trabalhar as emoções com as crianças através da literatura 

Por: Paula Peres 

O currículo da escritora espanhola Eva Martínez é longo: professora, terapeuta e formadora de formadores no Institut de Ciènces de l’Educació (ICE) da Universitat Autónoma de Barcelona (UAB) e diretora pedagógica da Associação ARAE, em Barcelona. 

Especialista em educação emocional, Eva defende a literatura como uma maneira de trabalhar habilidades socioemocionais nas crianças. Especialmente, os contos e as fábulas. É coautora do livro Emociones y familia: El viaje empieza en casa (Emoções e família: a viagem começa em casa, em tradução livre) e Bajo la piel del lobo: acompañar las emociones con los cuentos tradicionales (Debaixo da pele do lobo: acompanhar as emoções com os contos tradicionais).

Eva Martinez costuma dizer que não sabe se escolheu a Educação ou se a Educação a escolheu: desde criança, brincava de ensinar suas bonecas imitando os trejeitos de suas próprias professoras. Já a decisão pela psicologia foi tomada de maneira mais racional. “Às vezes, eu me dava conta de que a escola é um lugar que não te ajuda a crescer emocionalmente”, reflete a educadora. “É um lugar em que se comportar bem é um valor apreciado, em que tirar boas notas é bom, mas quando uma criança se comporta mal, é punida”.

Defensora do direito das crianças de expressarem seus sentimentos, inclusive os ruins, Eva é terminantemente contra as histórias que só mostram personagens perfeitos e terminam bem, como os contos de fadas que sofreram uma espécie de higienização: histórias que foram adaptadas para que só tivessem personagens com sentimentos bons, eventos que não são difíceis de serem explicados para as crianças, mulheres delicadas e homens corajosos.

“Esse tipo de história gera efeitos negativos na formação da pessoa. É muito difícil para um homem se mostrar frágil, se sentir como uma princesa, porque ele não foi educado para isso, não foi essa referência de homem que ele teve. Precisamos pegar contos que mostram os seres humanos como humanos de verdade”, disse ela durante sua participação na mesa “Embaixo da pele do lobo - temos que ler os clássicos?” no Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura na 1ª infância, realizado pelo Instituto Emília e a Comunidade Educativa CEDAC, em parceria com a Fundação Itaú Social e o Sesc São Paulo.

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva concedida a Nova Escola sobre o papel da literatura na formação humana das crianças. 

NOVA ESCOLA: Você diz que se emocionar é diferente de ser uma pessoa sensível. Qual a diferença?

EVA MARTINEZ: As emoções são respostas fisiológicas que todos os seres humanos têm em resposta a determinados impulsos do ambiente ou que se passam dentro de nós. As emoções surgem, saem de dentro de nós. O que não é bom, às vezes, é ser arrastado por elas. Temos que saber utilizar as emoções de maneira que permitam o bem-estar, a boa comunicação e relação com o outro. Eu disse isso em referência a filmes da Disney. Considero que esse tipo de filme ou literatura tocam nossas emoções, fazem as pessoas se emocionarem, mas nada além disso.

É relativamente fácil tocar a fibra emocional de alguém. O que é realmente difícil é ajudar esse menino ou menina a construir um aprendizado com o que está passando. Além disso, a Disney toca em emoções específicas, aponta muito para a luz, mas nós somos sombra e também luz. 

É papel da escola trabalhar as emoções?

Acredito que a primeira aprendizagem que se dá sobre as emoções – e a mais importante e determinante – é na família. A escola tem pouca margem quando a criança vem de uma família com muitas dores. Podemos, sim, olhar para a dor dessa criança e ajudá-la a se expressar e se comunicar melhor com os outros. A escola pode fazer isso, mas não pode mudar algumas emoções porque o impacto que as experiências emocionais da família têm nela é fundamental. Eu acredito que a escola não é lugar para fazer terapia, mas onde podemos fazer algo mais do que estamos fazendo [que é educar]. 

Como assim?

A escola, às vezes, não oferece oportunidades reais para crescer, só para crescer no campo acadêmico: o de se comportar bem, de ter bons resultados. Não no que se refere a crescer como pessoa. Uma criança que veio de uma experiência de maus tratos, abandono, de uma família desestruturada, com problemas de álcool e drogas, não vai se comportar bem na escola. Ela precisa extravasar essa raiva, precisa falar da sua dor. E isso acontece quando ela se comporta mal, gritando. A escola não permite esse crescimento, esse acompanhamento. 

A mesa “Embaixo da pele do lobo - temos que ler os clássicos?”, que teve Eva como convidada, debateu o papel dos contos e outras histórias "imperfeitas" na formação de uma criança. Foto: Sofia Colucci 

Qual a relação entre a leitura e a formação psicológica das crianças?

Sou terapeuta, então trabalho com pessoas que têm algum problema, alguma dificuldade na sua vida. Muitas dessas dificuldades têm relação com a pessoa não conseguir sustentar as emoções negativas: a dor, a raiva. Não sabemos como questionar muitas emoções, não temos recursos pessoais porque não fomos educados para isso. Não nos ajudaram a entender o que se passa com a gente, o que sentimos.

Eu descobri que os contos, sobretudo os tradicionais, falam de muitas emoções que sentimos, mas que não são fáceis de expressar ou comunicar, nem fáceis de sentir, muitas vezes.

Para mim, a literatura permite esse encontro comigo mesma: sentir que se tenho uma emoção que realmente estou sentindo, mas que não me atrevo a vivê-la porque não é considerada socialmente aceitável, eu posso projetá-la na personagem de um conto. 

De que maneira isso pode ser benéfico?

Eu acredito que quando fazemos isso na infância, aprendemos a administrar nossas emoções. É um presente para toda a vida. Uma criança deve ter consciência da agressividade com que fala com seus colegas, e ela vai conseguir isso tendo permissão para experimentar e para expressar todas as emoções que sente.

Trabalho com mulheres que sempre se comportaram muito bem. São mulheres com 30, 40 anos que sempre se comportaram bem, nunca tiveram qualquer problema, sempre estiveram presentes e disponíveis para os filhos, o marido, o trabalho. Mas elas chegam aos 40 e entram em crise, não sabem quem são, porque nunca disseram “Não” aos outros. Não sabem marcar um limite. Então imagine como essas mulheres se sentem quando alguém diz “Você pode ser agressiva e usar a sua raiva para marcar o limite ou para gritar quando não gosta de alguma coisa, você tem o direito de fazer isso”. A vida dessa pessoa poderia ter sido muito diferente, não?

Para mim, a literatura permite que a gente experimente todas as emoções. E como podemos experimentar todas, também podemos aprender com elas. Porque se só experimentamos algumas, nosso aprendizado será limitado. Não seremos capazes de edificar a aprendizagem sobre as demais e por isso acredito que é importante que as crianças vivam, se expressem livremente e que através dessa vivência, elas possam construir uma aprendizagem racional. 

Qual é o impacto de ler somente textos e livros felizes para a formação de uma criança?

Nós somos mamíferos. Somos doces, agradáveis e vulneráveis – e também somos agressivos e ferozes. Temos todos os tipos de emoções. Então, educar em um modelo emocionalmente ideal não é sustentável porque não é verdadeiro e não sintoniza com a experiência interna de uma criança. As crianças sentem dor, raiva, desejos, vontade de matar seu amigo, sua própria mãe em muitas ocasiões.

Não se trata de dizer “Não, isso que você sente é muito feio, é muito mau, está proibido”. É preciso fazer algo com essas emoções que estão sentindo, sobretudo com o que consideramos tão negativo, essa raiva, essas vontades, essa agressividade tão forte. Com isso temos que fazer algo.

Não podemos educar uma criança que tem uma história de dor fingindo que ela é sempre feliz ou que está sempre contente. Essa criança que tem uma história de dor vai se comportar mal em classe porque ela não aguenta mais sustentar sua dor sozinha. Ele não precisa que alguém lhe diga “Seja simpático, comporte-se bem, seja bom”, ela precisa que alguém olhe para aquela dor e converse com ela.

O que o professor pode fazer na sala de aula?

O professor não é um terapeuta, nem psicólogo, mas ele trabalha com emoções, mesmo que não queira. Ele precisa lidar com as emoções das crianças e com suas próprias. O professor não é um robô, que entra na classe escondendo tudo o que sente, é impossível, somos humanos.

O que podemos fazer? Pelo menos ajudar as crianças a se expressar. O professor também pode fazer com que a aula seja um espaço emocionalmente seguro, no qual as crianças se conheçam e se respeitem, criando vínculos entre si. A escola pode fazer com que as crianças sejam capazes de confiar que um igual pode ser alguém que pode ajudá-los.

Se você educa seus alunos para que, por exemplo, só tenham bons resultados em inglês, e só tenham isso na cabeça, é muito difícil que essas duas pessoas se vinculem de alguma maneira. Você pode ser muito melhor do que eu em inglês, eu sempre tiro notas baixas e você notas altas, então você vai ter mais confiança do que eu nessa disciplina. O ideal seria que alguém nos dissesse que somos iguais. Eu tenho uma experiência com inglês, você tem outra, eu tenho uma experiência com a minha família, com a minha dor, a minha tristeza, e você tem outra, mas somos duas meninas iguais. Merecemos ter nos encontrado e nos conhecido.

Eu acho que é aí que a escola está falhando, pelo menos na Espanha. Não potencializa muito as capacidades do aluno de se relacionar, e acredito que deveríamos apostar nisso: na importância de estabelecer relações de comunicação entre iguais. 

Os professores brasileiros têm muito medo de contar histórias para as crianças que sejam tristes, que dêe medo, tenham temas polêmicos ou personagens com características negativas. Qual é o seu conselho para eles?

Eu entendo que, muitas vezes, os adultos têm dificuldades porque também têm suas feridas. Digamos que eu tivesse sido abandonada pelos meus pais e isso me provocou muita dor. Hoje sou professora, trabalho com Educação, e vejo um livro sobre abandono. Para mim, será muito difícil ler esse livro, pois vai jogar sal na minha ferida e fazer com que eu tenha de me conectar com esse sentimento. Se eu não tenho isso elaborado dentro de mim, falar do abandono vai ser muito doloroso. Mas veja o que acontece: há muitas crianças abandonadas, como eu, na sala de aula. Como adulta, tenho a responsabilidade de transformar isso em algo emocionalmente nutritivo, que me cure, para depois acompanhar outras crianças abandonadas.

Eu serei uma acompanhante muito melhor dessas crianças abandonadas se olhar para o meu próprio abandono. Então, é natural que tenhamos medo, mas quanto mais cuidamos de nós mesmos, mais nos curarmos, melhor poderemos acompanhar emocionalmente as nossas crianças. 

Fonte: https://novaescola.org.br/conteudo/11123/as-criancas-precisam-conhecer-historias-tristes-para-aprender-a-administrar-sua-tristeza

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