A importância do testemunho nas histórias

 

O papel do testemunho na reconstrução histórica

Quando o Brasil, com décadas de atraso, busca desvendar fatos ocorridos durante a ditadura civil-militar, a escritora Beatriz Sarlo propõe uma reflexão sobre o peso e a validade dos testemunhos na reconstrução da História. Crítica cultural e autora de livros como 'Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva', Sarlo reconhece a importância dos depoimentos na elucidação dos crimes contra os direitos humanos cometidos por ditaduras na América Latina, entre as décadas de 1960 e 1970. Mas alerta que os relatos estão sempre permeados por outras vivências e para o fato de que nenhum acontecimento histórico registrado até hoje foi reconstituído baseado em fonte única.

Uma das presenças internacionais do 2º fHist em Diamantina em 2013, a argentina Beatriz Sarlo foi a convidada especial da conferência "Testemunho e História". Em sua apresentação, afirmou que os testemunhos ganharam papel de destaque na reconstrução histórica a partir do final da Segunda Guerra Mundial, na apuração dos crimes cometidos pelos nazistas contra os judeus. "Com o fim da guerra, entramos num processo de reparação de uma dívida que, simbolicamente, foi a mais importante da nossa História, o Holocausto. Surge, então, o período de ‘dever de memória‘, quando a memória era algo em que se militava. Havia que se militar para que um acontecimento da magnitude e da crueldade, como o Holocausto, jamais se repetisse", afirmou.

Beatriz Sarlo lembrou que o dever de memória foi exercido, a princípio, pelos soldados aliados. E o primeiro ato aconteceu na abertura do Tribunal de Nuremberg, criado por meio de um acordo entre a antiga União Soviética, os Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, para julgar os crimes cometidos pelos nazistas, quando foi exibido o filme "Os campos de concentração nazistas"- uma coletânea de imagens dos campos e das atrocidades nazistas. "Nesse ponto, a memória, sem dúvida, ganha uma autoridade fortíssima na construção da História contemporânea. Até esse momento a História se construía com outros documentos", sustentou.

Sarlo ressalvou, porém, que a incorporação do dever de memória foi um processo complexo. "O testemunho é central em todo esse novo que acontece na História dos anos de 1950 em diante. Mas é preciso recordar que nem sempre aconteceu desse modo; nem sequer quando termina a guerra e saem as primeiras vítimas vivas dos campos de concentração, aqueles que tinham conseguido chegar vivos ao fim da guerra".

A escritora disse lembrar de que quando a primeira leva de vítimas é libertada, atravessa a Europa Central e chega à Itália, começa a querer a falar sobre a sua experiência. Não havia, no entanto, quem quisesse, de fato, ouvi-los. "Aqueles que estão festejando o seu regresso vivo, aqueles que estão reparando na medida do possível o sofrimento que é irreparável do campo de concentração, esses mesmos não querem escutar o seu discurso. Não foi um processo natural a instauração de um dever de escuta da memória. Foi um processo extremamente complexo". 

História Oral      

De acordo com a escritora, a partir do fim da Segunda Guerra, o dever de memória e os testemunhos, já entendidos como História Oral, ganham enorme visibilidade e se unem à História Popular, que é chamada por alguns historiadores ingleses, como Ralph Samuel, de "History from below". "A História contada desde baixo. A História daqueles que até então não tinham História", enfatizou. "A partir daí a História Popular se divide em diferentes segmentos, como a História da Mulher. Mas em todos eles, o testemunho é central".

Na América Latina, disse Beatriz Sarlo, a História Popular, baseada na oralidade, tem momentos importantes como a publicação, em 1982, das memórias da guatemalteca, de etnia indígena, Rigoberta Menchú. Menchú tornou-se ativista de direitos humanos e, em 1992, teve seu trabalho, de defesa dos povos indígenas reconhecido com o Prêmio Nobel da Paz.  No continente, a História Popular influenciou a literatura ficcional e dessa influência resultaram obras como "Memórias de um Cimarrón", do escritor cubano Miguel Barnet, que conta na primeira pessoa a História de um ex-escravo daquele país; e "Las Soldaderas", de Elena Poniatowska. 

Beatriz Sarlo reconhece que, além de centrais para diversos segmentos da História, os relatos orais tornaram-se essenciais para a reconstrução histórica. É o caso da repressão política exercida por ditaduras militares instauradas, por golpes, na América Latina, nas décadas de 1960 e 1970. Os relatos de perseguidos e de familiares dos mortos e desaparecidos, disse a escritora, foram a única fonte disponível para desvendar o que aconteceu em países como o Chile e Argentina, onde os militares cuidaram de esconder ou destruir documentos que poderiam revelar por quem, como e onde foram praticados os crimes de torturas e de assassinatos contra os opositores.  

Porém, a escritora afirma que esses relatos não são suficientes para revelar toda a História porque, além de constituírem a visão de apenas parte dos envolvidos, ainda são permeados por outras subjetividades e vivências que constituem a experiência de quem dá o seu testemunho. Beatriz Sarlo alude, para propor uma reflexão sobre a parcialidade dos relatos, a pensadores como o filósofo alemão Walter Benjamin, que conclui em sua obra não ser possível converter experiência em discurso, ao analisar a resistência dos soldados que retornaram da Primeira Guerra Mundial em falar sobre suas experiências nas trincheiras.

"Benjamin usou duas palavras alemãs para se explicar: erfahung e erlebnis. Ele afirma que erfahung, que quer dizer experiência, se inteirar de algo por aquilo que presenciei diretamente, não pode ser convertida em erlebnis, aquilo que eu vivo. O silêncio viria porque aquilo de que eu me inteirava diretamente, porque fui vítima, porque fui soldado na trincheira, porque estava lá quando violaram todas as mulheres, aquilo de que eu fui vítima e me interei, não posso, por seu impacto, construir erlebnis, que é algo vivido por mim, e que eu posso converter em discurso", explicou a argentina.

Sarlo cita ainda Nietzsche e Freud, que afirmam em seus estudos que o sujeito não governa o seu discurso - que acredita dizer a verdade, embora não diga toda a verdade. "Temos ainda a questão de que os testemunhos são permeados por outros relatos. Relatos midiáticos para um tipo de fonte e relatos da literatura, dos livros, para fontes mais intelectualizadas, por exemplo". 

Outras fontes

A escritora defende que mesmo para apurar a repressão política das ditaduras na América Latina é importante e possível buscar outras fontes. Ela cita o caso argentino, onde militares estão sendo julgados e condenados e ainda assim não falaram quando convocados pela Comissão da Verdade. Sarlo informa que ativistas de direitos humanos e parentes de mortos e desaparecidos já começam a admitir que sejam feitos acordos com esses militares, permitindo a redução de suas penas desde colaborem com as investigações. "Muitos consideram imorais esses acordos, mas alguns já começam a admiti-los e mesmo defendê-los porque, principalmente, para as famílias, é importante ter de volta o corpo do ente querido", disse em sua palestra no fHist.

Outra alternativa para a reconstrução da História da ditadura argentina apontada por Beatriz Sarlo é o cruzamento dos testemunhos de perseguidos e de suas famílias com fontes da História sindical. Segundo ela, muitos dos desaparecidos e mortos pelo regime são sindicalistas. Mas, por uma certa resistência da classe operária do país em falar, o que dificulta o trabalho dos investigadores, isso não tinha sido feito. 

"A História contada desde baixo. A História daqueles que até então não tinham História".

No Brasil, Beatriz sugere que para a reconstituição histórica da ditadura militar fontes alternativas aos testemunhos de perseguidos e familiares possam ser buscadas em organizações não governamentais e na Igreja Católica. "Quem sabe os testemunhos que são dados hoje no Brasil, como se passaram muitos anos, não são de natureza mais variada que os do caso argentino? Quem sabe algumas organizações não governamentais tenham uma sistematização maior do que a que se encontrou na Argentina no fim da ditadura? Outro protagonista, que na Argentina não se manifestou, pode fazê-lo no caso brasileiro. Me refiro à Igreja, sobretudo, porque tem mudado suas próprias condições de comando", afirmou.  

Fonte: http://www.festivaldehistoria.com.br/fhist_ptl/html/mat_21/

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