A ayahuasca e seu uso terapêutico
AYAHUASCA: PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS EM ESTUDO
Por Fabiana Ribeiro e Janaína Quitério
Agora, no final de abril de 2018, em Oakland-Califórnia, aconteceu a Psychedelic Science, que reuniu pesquisadores para discutir e compartilhar, no campo multidisciplinar, suas investigações recentes sobre os riscos e benefícios de diferentes substâncias psicoativas para usos terapêuticos, científicos e espirituais. Os efeitos em curto e em longo prazos da ayahuasca com relação à qualidade de vida, bem-estar, saúde, dependências de substâncias etc. ocupam quase a metade da sessão sobre plantas medicinais do evento, evidenciando, mais uma vez, o boom que tem se verificado nesse campo de pesquisa.
Meses antes de acontecer a Segunda Conferência Mundial da Ayahuasca, na cidade de Rio Branco-Acre, em outubro de 2016, a antropóloga brasileira Bia Labate, professora visitante do Centro de Pesquisa e Estudos de Pós-graduação em Antropologia Social (Ciesas), em Guadalajara, México, perguntou em seu artigo no The Huffington Post se o Brasil seria o novo epicentro da ciência psicodélica no mundo, já que, segundo ela, um número cada vez maior de profissionais inspira-se em estudar essa “substância instigante” sob a ótica de diferentes disciplinas. Na ocasião, escreveu, metade das propostas inscritas na apresentação científica sobre ayahuasca vinha da área das ciências sociais, e a outra metade dos campos da biomedicina, saúde pública e psicologia, entre outros.
De fato, os efeitos neurológicos da bebida e o seu potencial farmacológico, bem como aspectos antropológicos e sociais do seu uso, têm sido estudados por diversos grupos de pesquisa no Brasil. Uma busca com a palavra ayahuasca na plataforma Lattes, o maior banco de dados com informações sobre pesquisadores no país, revelou mais de 700 deles estudando o tema, dos quais 13 foram associados aos verbetes neurologia, psiquiatria, psicologia, química, toxicologia ou farmacologia. Uma pesquisa na biblioteca virtual da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp revelou a concessão de 28 auxílios para a pesquisa da ayahuasca desde 2008 até o momento, entre bolsas de iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doutorado, auxílio à pesquisa regular e auxílio para publicação de artigos e livros.
A ayahuasca é uma bebida sacramental, psicoativa, produzida a partir da decocção de duas plantas, o cipó Banisteriopsis caapi e as folhas do arbusto Psychotria viridis. É originária das populações indígenas das regiões da Venezuela, Colômbia, Brasil, Equador, Peru e Bolívia, e a partir da década de 1930 passou a ser utilizada em rituais religiosos nos quais se misturam elementos da cultura indígena e do cristianismo. A consolidação e a expansão desses grupos religiosos nos últimos 20 anos, a exemplo do Santo Daime, da União do Vegetal (UDV) e da Barquinha, entre vários outros no Brasil, contribuíram para a difusão dos saberes populares relacionados ao seu potencial terapêutico, que passou a ser alvo de estudos científicos visando a sua caracterização físico-química, seus mecanismos bioquímicos e os efeitos no tratamento de distúrbios mentais e dependência química. Isso aqueceu o debate sobre formas de regulamentar a sua utilização tendo em vista, por um lado, a preservação das manifestações culturais e da liberdade das práticas religiosas e, por outro, o estabelecimento de critérios de segurança para sua produção e consumo.
Na literatura médica e farmacológica, a ayahuasca tem sido descrita como “alucinógeno”, mas, de acordo com Luis Fernando Tófoli, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp, os cientistas optam por usar o termo “psicodélico”, embora, para ele, ambos são susceptíveis a certo grau de preconceito e estigma social relacionado às drogas. “As pessoas que fazem uso ritualístico da ayahuasca também não gostam de usar o termo ‘psicodélico’ para se referir à bebida. Eles preferem usar a palavra ‘enteógeno’, cuja etiologia significa ‘o que gera deus dentro de si’, mais próxima à experiência mística”, pondera.
Composição química, processo de extração e farmacologia
O processo de decocção das plantas resulta na extração dos princípios ativos N,N-dimetiltriptamina (DMT) a partir das folhas da Psychotria viridis, e de beta-carbonilas, conhecidos como alcaloides de harmala, sendo os principais a harmina, harmalina e tetrahidroarmina, a partir do cipó. Estes princípios ativos são inativos se ingeridos sozinhos, mas quando ingeridos simultaneamente a partir da mistura na bebida tornam-se psicoativos devido ao efeito metabólico sinérgico das substâncias presentes.
O professor Tófoli estuda o potencial terapêutico da bebida há mais de seis anos, desenvolvendo pesquisas multidisciplinares em parceria com outras instituições, tais como o Centro de Controle de Intoxicações (Unicamp), o Instituto de Química (Unicamp), o Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA/Unicamp), o Departamento de Psiquiatria da Unifesp, o Instituto do Cérebro da UFRN e a Universidade Estadual Santa Cruz (UESC). Ele explica que o DMT é uma substância conhecida por causar alterações na percepção e cognição, mas também está presente em baixas concentrações naturalmente no organismo, sendo metabolizado por uma enzima chamada monoamina oxidase (MAO). Isso significa que o nosso corpo já produz o DMT em baixas concentrações, mas seus efeitos psicoativos não se manifestam porque a substância é rapidamente transformada pelo nosso organismo em outros compostos menores e que não apresentam o mesmo efeito. No entanto, as beta-carbonilas extraídas do cipó são capazes de inibir a ação da MAO, e é por isso que a ingestão da ayahuasca contendo os dois princípios ativos simultaneamente produz efeitos alucinógenos.
Segundo a Portaria no. 344/98 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o DMT é uma substância controlada, sendo obrigatória a autorização especial da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde para sua produção e manipulação.
Uso regulado no Brasil: breve histórico
No Brasil, o uso da ayahuasca é liberado apenas para fins ritualísticos por grupos religiosos. Na década de 1980, a espécie vegetal Banisteriopsis caapi, que compõe a bebida, chegou a ser incluída na lista de drogas ilícitas da antiga Divisão Nacional de Medicamentos (Dimed) do Conselho Federal de Entorpecentes (Confen)[1]. Por meio da criação de um grupo de trabalho, o próprio órgão conduziu pesquisas e visitas às comunidades usuárias em diversas regiões do país, cujos resultados foram consolidados em um relatório sobre o uso da bebida em rituais religiosos. Esse relatório serviu de base para que a espécie fosse retirada da lista da Dimed e a bebida fosse definitivamente legalizada em 1992, garantindo, dessa forma, o direito à liberdade da prática religiosa e preservando as manifestações populares e indígenas.
Posteriormente, em 2004, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) publicou a resolução no. 5, que dispõe sobre o uso religioso e a pesquisa científica da ayahuasca e das plantas utilizadas para a sua produção. Essa resolução instituiu o Grupo Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca (GMT-Ayahuasca), formado por especialistas das áreas de antropologia, farmacologia, social, psiquiatria, jurídica e representantes dos grupos religiosos das linhas mais antigas e tradicionais que fazem uso da bebida, e que teve por objetivo mapear e acompanhar o seu uso religioso e as pesquisas acerca do seu potencial para uso terapêutico. O relatório final do grupo, publicado no Diário Oficial em 2010, orienta que “não pode haver restrição, direta ou indireta às práticas religiosas das comunidades, baseada em proibição do uso ritual da ayahuasca”.
Uma análise do processo de regulamentação do uso da bebida no Brasil, publicado em 2012 no International Journal of Drug Policy pela pesquisadora Beatriz Labate, apontou a fragilidade da resolução no. 5 no que diz respeito à ausência de instrumentos legais para a fiscalização das práticas que fogem ao escopo definido na resolução. Segundo ela, a resolução apenas sugere a criação de mecanismos de controle, mas não os torna obrigatórios. Dessa forma, essa função acaba ficando a cargo das instituições religiosas, o que pode abrir brechas para a flexibilização das restrições estabelecidas na resolução.
Potencial no tratamento de dependência química e de distúrbios mentais
Um dos primeiros estudos brasileiros com ayahuasca na área médica foi feito na Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 1998, com a dissertação de mestrado em saúde mental sobre o uso da substância em contexto religioso por ex-dependentes de álcool. Por meio de pesquisa qualitativa, Eliseu Labigalini Junior analisou quatro pessoas que apresentavam dependência severa ao álcool, mas que tiveram remissão poucos meses depois de começarem a frequentar os rituais na União do Vegetal (UDV), um dos principais grupos religiosos ayahuasqueiros no país. “Com essa pesquisa, percebemos que havia algo a ser aprofundado, pois havia pouca literatura, e a primeira pergunta que nos fizemos foi se a ayahuasca era, de fato, segura, ou se estava aberta a riscos”, explica Dartiu Xavier da Silveira, professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp, onde, desde então, coordena um grupo de pesquisas sobre as potencialidades terapêuticas da substância.
Preocupado com a segurança no uso da ayahuasca, Silveira desenvolveu pesquisa com um grupo de adolescentes que faziam uso religioso da bebida, alguns deles desde a infância, de forma a analisar se o seu uso constante produzia alguma consequência negativa nos participantes. “Existe um conceito genérico, muito divulgado pelos americanos, de que qualquer substância psicoativa causa dano cerebral. Mas os resultados surpreenderam: tanto a ayahuasca se mostrou uma substância segura, como pudemos verificar que a frequência de problemas de atenção era muito menor no grupo de adolescentes que tomavam ayahuasca, em comparação ao grupo que nunca experimentou a bebida”, explicou o pesquisador. A resolução número 5 do Conad, entretanto, impõe ressalvas ao uso da ayahuasca por crianças, adolescentes e gestantes. Os resultados da pesquisa, feita em parceria com a Universidade da Califórnia, foram publicados no Journal of Psychoactive Drugs, em 2005. Atualmente, o grupo de pesquisa da Unifesp planeja iniciar uma investigação sobre o potencial terapêutico da ayahuasca em dependentes de cocaína e crack.
Ainda sobre segurança, uma revisão da literatura científica publicada em 2016 na Brain Research Bulletin por pesquisadores do Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da Universidade John Hopkins e do Centro de Neurociência da Universidade North Texas Health Science, ambos nos EUA, encontrou trabalhos que indicam uma baixa neurotoxicidade e efeitos adversos da DMT, no entanto apontam evidências de intensos efeitos cardiovasculares quando administrada em doses altas por via intravenosa. Essa revisão relata ainda diversos estudos realizados em ratos, gatos, macacos e humanos que indicam que a substância não produz tolerância, isto é, os efeitos da bebida são sentidos na mesma intensidade ao longo do tempo, quando administrada na mesma dosagem. Em consonância com esses resultados, o Libreto Informativo sobre Drogas Psicotrópicas, produzido pelo Conad em parceria com a Cebid/Unifesp informa que a ayahuasca não desenvolve tolerância, não causa dependência nem síndrome de abstinência.
Diversos trabalhos citados na revisão da Brain Research Bulletin indicam que o consumo da ayahuasca pode ser seguro e benéfico, e a bebida apresenta potencial promissor para o tratamento de vários distúrbios psiquiátricos, tais como depressão. Esses estudos mostraram que usuários de longo termo apresentaram menores psicopatologias, além de melhor desempenho em testes de neuropsicologia, menor abuso de drogas e menos problemas psiquiátricos e psicológicos quando comparados a não usuários.
Outro grupo interdisciplinar ativo no Brasil em pesquisas sobre os potenciais terapêuticos da ayahuasca fica em Natal, na Universidade Federal do Rio Grande no Norte (UFRN), com duas linhas de pesquisas, uma delas desenvolvendo justamente trabalhos em pacientes com depressão severa, sem resposta a tratamento. “Começamos esse estudo em 2006, quando eu ainda era professor da USP de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, junto com pesquisadores do Departamento de Psiquiatria da lá”, descreve Dráulio Barros de Araújo, hoje professor titular do Instituto do Cérebro da UFRN.
Em um primeiro momento, foi feito um ensaio aberto – aquele em que tanto os pesquisadores quanto os pacientes têm ciência acerca da substância com potencial terapêutico utilizada – com pacientes que tinham depressão resistente ao tratamento. Em uma única sessão, foi oferecida uma dose de ayahuasca em laboratório, e os pesquisadores acompanharam os efeitos nos voluntários durante alguns dias. “Já nessa primeira fase, observamos que existe, sim, um efeito antidepressivo que aparece em apenas algumas horas no primeiro dia em que foi tomada a bebida, e esse efeito se prolonga por alguns dias”, explica Araújo. Os resultados desse primeiro ensaio foram publicados na Revista Brasileira de Psiquiatria, em 2015.
Entretanto, como a primeira pesquisa não controlou o efeito placebo – segundo o pesquisador, no ensaio clínico aberto, cerca de 40% dos pacientes com depressão respondem positivamente ao placebo – o grupo deu um segundo passo, iniciando um estudo duplo cego placebo controlado, no qual nem o experimentador, nem o paciente sabem se está bebendo ayahuasca ou placebo. “Nesse novo trabalho, aumentamos a população de pacientes (foram recrutados 35 voluntários) e metade bebeu ayahuasca, metade bebeu placebo. Os resultados ainda estão em fase de revisão e, apesar de ainda não estar publicado, já podemos dizer que o estudo sugere que o efeito antidepressivo da ayahuasca é superior ao efeito atribuído exclusivamente ao placebo: inicia-se um dia após a sessão e perdura por até sete dias”, explica. Entretanto, Araújo adverte que se trata de um estudo preliminar: “Ainda tem muito caminho pela frente, a começar pela análise de todos os dados recolhidos, inclusive o de compreender de onde vem o efeito antidepressivo sugerido”, pondera.
O professor da Unicamp, Luis Fernando Tófoli, que também contribui com as pesquisas em Natal, concorda com o potencial terapêutico da ayahuasca, mas considera que ainda é muito cedo para saber se, no futuro, a ayahuasca poderia virar uma espécie de remédio.
“As grandes questões éticas, na verdade, só estarão em pauta quando, de fato, ficar comprovado que a ayahuasca é terapêutica do ponto de vista da biomedicina. A medicina vai proibir o uso ritual e assumir o uso terapêutico? Caso se descubra que a ayahuasca é efetiva, a medicina ficará dona dela? Na minha avaliação, tendo a achar que não. Existe um débito social com relação tanto às religiões ayahuasqueiras, quanto aos indígenas. Se um dia a ayahuasca virar remédio, acho que ela deveria pagar royalties sociais por se tratar de uma substância considerada sagrada”, problematiza.
Enquanto as pesquisas avançam – e os campos de estudo não param de se expandir -os pesquisadores envolvidos são unânimes quanto à advertência com relação aos riscos à saúde associados aos psicodélicos: “Não é para todo mundo, e os próprios fundadores das duas maiores religiões ayahuasqueiras, o mestre Gabriel, da UDV, e o mestre Irineu, do Santo Daime, disseram a mesma coisa, mesmo sem terem contato um com o outro”, Tófoli enfatiza. Segundo ele, os principais riscos associados aos psicodélicos dizem respeito a desenvolver quadros psicóticos em pessoas com predisposição à esquizofrenia e ao transtorno bipolar. “É por isso que, ao fazermos um estudo, temos de descartar qualquer possibilidade desses quadros em voluntários”.
O Livreto Informativo sobre Drogas Psicotrópicas orienta para que o consumo da bebida em rituais religiosos seja acompanhado por um guia ou sacerdote, habilitado a conduzir os efeitos mentais da substância para a finalidade desejada. A resolução nº. 5 do Conad ressalta ainda a necessidade de um rigoroso protocolo de seleção dos indivíduos habilitados ao consumo, e é por isso que impõe ressalvas ao uso por crianças, gestantes, dependentes químicos e pessoas com distúrbios psiquiátricos. Essas precauções visam justamente evitar a exposição à bebida de pessoas com propensão ao desenvolvimento de distúrbios psiquiátricos.
Fabiana Ribeiro é graduada em Química (1998), Mestre em Físico-Química (2001), Doutora em Ciências (2007), e possui especialização em Jornalismo Científico (2016), pela Unicamp. É membro da Comissão Técnica de Química Farmacêutica do Conselho Regional de Química da IV Região (CQFar-CRQIV). Como pesquisadora tem estudado o uso de Estatística Multivariada na modelagem de dados em Química, principalmente na área Farmacêutica. É fundadora da Overlap Consultoria Científica e criadora do site Portal da Quimiometria.
Janaína Quitério é jornalista com especialização em Economia do Trabalho e Sindicalismo (Cesit-Unicamp), em Jornalismo Literário (ABJL) e em Jornalismo Científico (Labjor-Unicamp). Atualmente, cursa mestrado em Divulgação Científica e Cultural (Labjor-Unicamp).
[1] Nota: Em 1999 a Dimed foi renomeada como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Confen transformou-se no Conad.
Fonte: http://www.comciencia.br/ayahuasca-perspectivas-terapeuticas-em-estudo/