A articulação da neurociência com a psicanálise

   

O que quer a neuropsicanálise?

por Adriano Messias 

“O que experimentamos como corpo

e o que experimentamos como mente ocupam,

na verdade, o mesmo lugar” (Bassols i Puig) 

Um dos delírios de certa ciência é acreditar na decifração de um saber escrito no real por meio de um sujeito suposto saber, seja ele Deus, a Natureza, a Evolução, e, mais recentemente, a tal consciência e a própria mente: ou seja, nota-se sempre um sujeito a tomar o real como signo. Bassols i Puig (cf. 2015, p. 27) ressalta a ideia de que procurar a consciência em uma construção de eu com sustentação orgânica é inútil, uma vez que, em psicanálise, o eu se faz necessariamente pela mediação de um outro, aludindo à citação de Lacan de uma frase de Arthur Rimbaud, Je est un autre: “Car Je est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute” (“Porque Eu é um outro. Se o cobre desperta em corneta, que culpa tem ele”?[1]).

Trata-se de um excerto da famosa carta de Rimbaud endereçada ao poeta francês Paul Demeny, chamada lettre du voyant, “carta do vidente”. Em tal formulação, constitui-se um paradoxo: o fato de se associar o “eu” que identifica o sujeito a uma alteridade que, por si só, seria um seu contrário, estranha e indefinida. Porém, tal contradição se evidencia quando se considera somente a concepção clássica do sujeito – referência primordial de identidade –, na qual este último se reportaria a si mesmo e às suas ações em primeira pessoa. Por isso, quando Rimbaud, ao escrever a carta de 15 de maio de 1871, diz anticartesianamente “Je est un autre” (“Eu sou um outro”), ele assume que a criação artística tem um embasamento bem original e que o domínio do “eu” não passa de uma ilusão por não se conseguir dominar o que dele e nele se expressa: “J’assiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je l’écoute.” (Eu assisto à eclosão de meu pensamento: eu a observo, eu a escuto.”).

Na primeira de suas Meditações Metafísicas, René Descartes pretendeu duvidar de tudo ao menos uma vez na vida, com a expectativa de se deparar com o indubitável que lhe permitiria reconstruir a arquitetura do saber. Ele insistia nessa dúvida para questionar a confiabilidade de seus pensamentos, de onde surgiu a hipótese do Deus enganador. Porém, na Segunda Meditação, com a assunção de seu famoso cogito, a certeza inicial, que então já caminhava pela dúvida, assumiu o lugar da certeza de se existir um sujeito pensante, malgrado o que este dissesse viesse a estar correto ou não: “je suis j’existe” (“eu sou [logo] eu existo”), de onde a definição do homem como coisa pensante, mestre absoluto das ideias, mesmo que os objetos do mundo pacificado se fizessem corroer pelas sendas da dúvida.

Neste sentido, o ser humano, mediante um suposto controle da vontade, seria responsável por seus atos e ações em relação a seus outros. Já na Terceira Meditação, o filósofo não conseguiu escapar de um “outro” que perfazia esse “eu” absoluto: ao ter a consciência da própria imperfectibilidade, posto que a única perfeição caberia a Deus, o “eu” viria a se integrar com algo que fugisse de seu controle: aí temos o “eu” cartesiano notavelmente dependente do Outro.

Friedrich Nietzsche refez o “penso logo sou” com a fórmula “alguma coisa pensa”: para ele, a consciência individual era dispensável ao movimento do conjunto. Ele não entendia o “eu” como substância, mas como um “si” do corpo, este, por sua vez, um sistema pulsional e político, de onde se pode auferir que, para o filósofo prussiano, haveria no ser humano tantas consciências quantas fossem as forças plurais e inconscientes agindo em seu corpo. Eis a grande aproximação deste conceito com o de pulsões, em Freud.

Ainda para Nietzsche, somente na condição de animal social é que o homem tomou consciência de “si” mesmo, o que também representaria a consciência de um outro, de algo que lhe soasse superior. Mas, esta consciência diria respeito somente a uma parte reconhecível, comum à experiência em sociedade, facilitada pela linguagem. Neste sentido, ela seria um reflexo da vida na coletividade. Conclui-se, pois, que há um muro intransponível, desde Nietzsche, pelo menos, no que seria apreensível como consciência e no que dela poderia ser detectado em cada qual, de onde surge o bem aplicado uso do pronome em terceira pessoa (“si”), que expõe o distanciamento e a estranheza para com a visão cartesiana do “eu” unitário e indivisível. 

“Teu Eu não é teu”

Daqui, retomo Bassols i Puig (2015, p. 27): “Se teu Eu não é teu – e tampouco teu Eu –, é, antes de tudo, porque se constitui a partir da imagem do outro, da imagem dos outros que cumpriram para ti uma função de idealização”. Ou, na linguagem da poeta brasileira, “Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram/ Em espírito./ E esses foram sem número./ Sem nome./ De todos os tempos.” (MEIRELES, 1998, canto XXIV). O “eu”, em psicanálise, por conseguinte, não consegue ser objetivado pela ciência, mesmo com o uso do mapeamento neuronal. Adiante em suas argumentações, o psicanalista catalão reitera: “A extimidade do Outro da linguagem e do gozo rompe, de fato, com a pretensão de localizar no interior do Eu neuronal um microcosmo como representação correlata a um macrocosmo, igualmente suposto, ‘no exterior’” (BASSOLS I PUIG, 2015, p. 29)[2]. Aqui, a ancoragem evidente se dá em Lacan e em Freud.

Apreende-se um reducionismo ontológico por trás do ideal do “eu” metaforizado no sonho do fabricante de autômatos do século XVIII, que desejava ver a mecanização do sujeito. Isso se assemelha a algumas fabulações contemporâneas de certa ficção e certa ciência, que anseiam pelo povoamento dos mundos virtuais por espécies de consciências ou mentes flutuantes, finalmente “separadas” dos corpos, como ilustrado pelo enredo de alguns episódios de Black Mirror. Lá, o “eu” se parece muito mais a uma patente requerida ou a uma marca registrada nas mãos do dono bilionário de alguma multinacional. Tal fantasia, para ser realizada, precisaria não apenas de potentes recursos tecnológicos oriundos do avanço da inteligência artificial, mas teria uma tarefa de Sísifo: dar conta do impossível que escapa a toda significação, e aí está, por si só, um fracasso científico anunciado. 

Mas, nesse contexto, como se encontraria Freud, quem nunca abandonou a biologia totalmente?

O que ele fez foi se afastar de uma abordagem estritamente neurológica no anseio por uma compreensão psíquica do sujeito. A neuropsicanálise, pois, surgida bem no final do século passado, tem como intenção propiciar parcerias com as neurociências, sempre respeitando os caminhos próprios que a psicanálise trilhou até então. O marco fundante foi a revista Neuropsychoanalysis (1999), que contava, em seu conselho editorial, com nomes como os dos neurocientistas António Damásio, Oliver Sacks e Eric Kandel, além dos psicanalistas André Green, Otto Kernberg e Charles Brenner. Mark Solms, psicanalista e neuropsicólogo sul-africano, tornou-se o maior nome deste campo interdisciplinar, para quem psicanálise e neurociências teriam em comum olhar sobre um mesmo objeto de interesse: o cérebro. Reforço que escrevi “sobre um mesmo objeto”, mas não “um mesmo objeto”, pois, uma tal proposição, se tomada de chofre a partir de um ângulo simplista, se mostraria problemática, já que o inconsciente cerebral das neurociências não reflete o inconsciente freudo-lacaniano. O primeiro é automático, dependente direto do arcabouço neural, enquanto o segundo possui um dinamismo impalpável, ainda que longamente analisado há décadas. Até agora, o inconsciente em psicanálise parece impossível de ser comprovado pela imageria médica, até mesmo por conta de um desvio epistemológico, o que de fato abriu caminho à psicanálise tal como a conhecemos hoje, notadamente a partir da publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900).

Desde o início de suas investigações neuropsicanalíticas, Mark Solms, em trabalho com a esposa, Karen Kaplan-Solms, possuía tal percepção, e suas pesquisas a respeito das contribuições da psicanálise para com o entendimento de determinadas lesões cerebrais se tornaram bastante notórias e precursoras.

Repassando algumas das proposições de Mark Solms, relembro que o pesquisador considera que psicanálise e neurociências têm, de fato, objetos de estudo separados, mas “(…) que elas propõem diferentes métodos de investigação para dar conta desses objetos; e que os conhecimentos que elas geram seriam, portanto, de dois tipos diferentes” (SOLMS; SOLMS, 2004). Em suma: olhares bastante diversos sobre o cérebro, cada qual de seu ponto de posicionamento como campo do saber.

Para Mark Solms, o ponto de contato entre psicanálise e neurociências residiria no método neuropsicológico de análise de síndromes, o qual o pesquisador exemplifica com casos clínicos de pacientes seus e de sua esposa, deixando claro que, para ele, “(…) só poderemos elucidar adequadamente a estrutura dinâmica inconsciente de um sintoma mental por meio do método psicanalítico” (SOLMS; SOLMS, 2004, p. 40).

As sessões realizadas pelo casal colocaram em dúvida teorias cognitivas já consistentes àquela época, demonstrando, por exemplo, que pessoas afetadas pela chamada síndrome do hemisfério direito tinham conhecimento de seus membros paralisados, o que se demonstrava mediante falas e ações do analisando no decorrer do processo analítico, revelando, assim, que não se tratava de pacientes que careciam de informações perceptuais sobre o estado de seus corpos. Isso contraria o ponto de vista de António Damásio, por exemplo, uma vez que, de acordo com as investigações de Mark Solms, memória e percepção parecem ser provenientes, em grande parte, do substrato inconsciente (cf. opus cit., p. 60).

Em vez de se desejar uma união paradigmática – o que é problemático ao se considerar a tópica já levantada por Thomas Kuhn (1922-1996) ao tratar da incomensurabilidade dos paradigmas –, pode ser possível que a psicanálise e as neurociências sejam colocadas em um diálogo cooperativo e respeitoso, ainda que haja muitos desafios de várias ordens neste aspecto.

Mark Solms, por seu turno, ciente do problema metodológico que a neuropsicanálise tem diante de si, refaz o elo perdido entre Freud e a neurologia. Neste afã, reside a necessária localização de algum problema comum para ver se existe a possibilidade de uma tal conversação interdisciplinar. Como o próprio Solms ilustra, ele crê que “(…) fazendo-se observações psicanalíticas em pacientes com lesões em partes específicas do cérebro, torna-se possível correlacionar diretamente os fenômenos psicanalíticos com os fenômenos neurocientíficos” (SOLMS, 2004a, p. 48).

O pesquisador destaca que, na origem da mente, para Freud, está o necessário desprendimento das “informações extraídas da superfície do corpo” (opus cit., p. 144) em relação à anatomia. E a psicanálise, destarte, parece ser um dos poucos campos de cuidados com a saúde humana que ainda sustentam algo do antigo baluarte da clínica tradicional, ou seja, a escuta. Afinal de contas, em nossos dias, a medicina ocidental confunde bom tratamento com análises subjetivas de imagerias, em que o atendimento atencioso do paciente em sua singularidade sintomática fica em último plano frente aos infindáveis exames e diagnósticos tecnicistas, fomentadores da indústria dos quase sempre caríssimos fármacos de ponta, com a mediação de planos e seguros de saúde que tornam o médico, mais e mais, apenas um integrante do maquinismo neocapitalista da saúde, sempre compartimentada e alopatizada. Em tal panorama, ainda existe quem deseja, insistentemente, mapear o intangível do psiquismo em regiões ultralocalizadas do sistema nervoso central.

Nesta abordagem, tomo como outro exemplo os estudos de caso de portadores da síndrome de Korsakoff – nos quais a memória recente fica altamente afetada, impossibilitando o acúmulo de informações e percepções recebidas e, ao mesmo tempo, estimulando a confabulação, ou seja, a proliferação de crenças inventadas, calcadas em memórias fabricadas, o que muito aproxima o quadro de uma psicose. Em conclusão, Mark Solms diz que esta síndrome não seria uma falha cognitiva, uma vez que “(…) há algo que emerge para preencher a lacuna deixada por esse déficit. Em resumo, há um jogo de forças dinâmico” (opus cit., p. 177). 

A consciência é um unicórnio

Bassols i Puig (2015) relembra que o texto A coisa freudiana ou Sentido do retorno a Freud em Psicanálise, de 1956 (cf. LACAN, 1998, p. 402-436), já apresentava os paradoxos da consciência e das confusões da chamada Psicologia do Ego americana – linha desviante da freudiana e centrada nas ilusões do “eu”. O texto lacaniano é útil para se repensar a atuação das terapias cognitivo-comportamentais (TCC), amplamente adotadas em nossos dias. Neste contexto, o termo “consciência”, para o psicanalista catalão, perfaz, entretanto, um jogo:

A consciência como semblante é, sem dúvida, uma das melhores definições que se pode dar a ela, desde que a categoria de semblante seja entendida à luz do último ensino de Lacan. Assim como o arco-íris, ou mesmo uma miragem, é um semblante da natureza – como o são igualmente o falo ou o Nome-do-Pai –, a consciência, que só é situável, do mesmo modo que o arco-íris, no espaço das imagens reais, é um puro efeito do imaginário captado pela linguagem (BASSOLS I PUIG, 2015, p. 48).

Como salienta o autor, aqui se esfuma a diferença entre sujeito e objeto para surgir a lógica da fantasia, que é a disjunção entre um e outro. Eis, portanto, o simbólico da linguagem que “(…) permite nomear com um significante – o Eu (Je) – a função imaginária – Eu (Moi) – com que me identifico” (opus cit., p. 49). E é somente compreendendo essa cisão – sintetizada no inconsciente estruturado como e por uma linguagem, e na pulsão que exige uma satisfação mais além do princípio do prazer – que se pode dar escuta ao sujeito do inconsciente, de onde não deriva nenhuma unidade ao suposto fenômeno da consciência.

Jacques Lacan disse que a fórmula do cogito não fundamenta “nenhuma consciência de nenhum Eu psicológico (…), mas deixa escrita para sempre a redução irredutível do sujeito (…)”(opus cit., p. 53). Daí advém a bela formulação nada dualista de Bassols i Puig, a partir do saber lacaniano: “O que experimentamos como corpo e o que experimentamos como mente ocupam, na verdade, o mesmo lugar” (Opus cit., p. 55).

Bassols i Puig ainda nega o determinismo causal, ou seja, toda relação direta entre causa e efeito no âmbito da subjetividade, preferindo empregar o termo sobredeterminação, que pressupõe “uma rede simbólica de elementos significantes” (cf. BASSOLS I PUIG, 2015, p. 63), o que muito tem a ver com a perspectiva semiótica em interseção com a psicanálise.

No caso humano, “(…) sempre há mais de uma linha causal, vários fios que confluem para um nó, onde se produz um efeito” (opus cit., p. 63). As neurociências – um campo muito cindido, ao contrário do que pensa o senso comum – se dividem por teorias que quase esbarram em uma espécie de neofrenologia tecnicista e intracraniana – ao contrário da frenologia do século XIX –, na perspectiva de se localizar, por exemplo, determinadas funções no sistema nervoso. Isso frustra os neurocientistas afeitos a conseguirem o sonhado mapping da mente no cérebro e, ao mesmo tempo, nos mostra o quanto esta última, mais do que puro enigma, aproxima-se, metaforicamente, até mesmo da ordem do fantástico. A mente é como um belo unicórnio galopando pelo céu em noite enluarada, e lá embaixo, na terra, correm os apalermados cientistas que sonham em apanhar o robusto animal em suas redes de caçar borboletas. 

(este texto integra o ensaio Psicanálise, Semiótica e Neurociências: nós do contemporâneo) 

Referências bibliográficas:

BASSOLS I PUIG, Miquel. A psicanálise, a ciência, o real. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2015.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

MEIRELES, Cecília. Cântico. São Paulo: Editora Moderna, 1998.

MESSIAS, Adriano. Entre zumbis, ciborgues e fantasmas: interfaces entre o corpo, a tecnologia e a educação. In: FUSARO, Márcia (Org.). Artes Tecnológicas Aplicadas à Educação. São Bernardo do Campo: Codes, 2018.

________________. Será a condição humana uma monstruosidade? São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2019.

SOLMS, Karen Kaplan-; SOLMS, Mark. O que é Neuro-Psicanálise: a real e difícil articulação entre a neurociência e a psicanálise. São Paulo: Terceira Margem, 2004.

Notas: 

[1] Todas as traduções são do autor.

[2] Sobre o êxtimo e a extimidade, cf. MESSIAS, Adriano, 2018, 2019.

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