O palhaço e o psicanalista
A revolução da escuta em tempos de ensurdecimento
Livro escrito por Christian Dunker e Cláudio Thebas propõe estratégias de escuta em tempos de colonizadores de corações e mentes.
By Amanda Mont'Alvão Veloso
A escuta do sofrimento e a escuta do improvável revelam as dimensões mais humanas dos seres, em suas vulnerabilidades e incoerências. É pau, é pedra, é julgamento. Um povo dividido pela ausência de escuta e confinado no próprio sofrimento por não querer se conhecer. Armados de palavras e de insultos, nós, brasileiros, estamos falando com as paredes.
Com oferta rara e grande demanda, a escuta atravessa os dias como preciosidade necessária à convivência. Especialmente em dias de conflitos verbais e sociais como os que vivemos atualmente. Uma fala espera se hospedar em uma escuta, mas a ela são apresentados destinos como o exílio, o adoecimento psíquico, a negação ou, na mais branda das hipóteses, um bloqueio nas redes sociais.
Com disposição e prática, é possível, a qualquer um, escutar o outro e, assim, reconhecê-lo. Mas este é um processo complexo — uma arte, pontuam o psicanalista Christian Dunker e o educador Cláudio Thebas, autores de O palhaço e o psicanalista – Como escutar os outros pode transformar vidas (Editora Planeta). O encontro de ambos na escrita é também a soma de suas experiências escutando pacientes, pais, alunos, empresários e funcionários.
A escuta do sofrimento e a escuta do improvável revelam as dimensões mais humanas dos seres, em suas vulnerabilidades e incoerências. Uma ponte fundamental em nossas relações íntimas e de cidadania. É a possibilidade de se aproximar, de discutir e discordar sem negar a existência do outro. É matriz do consenso, resistência ao poder e vacina contra ansiedades e depressões.
Mas por onde anda a escuta em 2019? Do que se alimenta, onde vive? Saiba tudo sobre este milenar esforço de convívio na nossa entrevista com Dunker e Thebas:
HuffPost Brasil: Por que é tão difícil escutar?
Christian Dunker: Escutar demanda trabalho e dedicação. É uma forma de cultivo, quase uma arte. Mas uma arte que não deixa obras visíveis e monumentos, mas tão somente efeitos e palavras. Escutar é como polir as palavras, e o escutador é um polidor de palavras, como antigamente existiam os polidores de lentes. Ao final o que se obtém é ver mais nítido e ver melhor, e quanto mais esquecido e transparente o resultado, melhor o efeito obtido. É difícil escutar porque esta arte demanda que renunciemos ao exercício do poder sobre os outros, mas também da glória das obras bem feitas e reluzentes. O terceiro motivo que torna escutar tão difícil é que a escuta começa pela escuta de si. Afinal este é o grande legado que uma psicanálise deixa para alguém: a capacidade de escutar-se, no melhor e o pior, na justa medida e em seus exageros, nos seus fantasmas e no cerne de seu ser. Logo, aprender a escutar é como apender a perder, como disse Elizabeth Bishop, ou seja, uma arte que não é difícil de dominar, mas é uma arte para viajantes corajosos.
Cláudio Thebas: Escutar é um ato de risco e coragem. É, fundamentalmente, a experiência do encontro no que ele tem de mais essencial: o descontrole. Onde há controle não há encontro. Dispor-se a escutar é ter disposição para experimentar uma aventura. Segundo o educador espanhol Jorge Larrosa, a palavra experiência deriva de “periri”, que significa perigo, mas também está na origem de pirata. Podemos concluir que escutar, por ser uma experiência, é aventurar-se num oceano desconhecido. Isso não é nada fácil.
O vazio da escuta é um espaço para que o outro nos habite. Dúvidas e hesitações são espaços de vazio e silêncio. Certezas soterram esses espaços.
Escutar é assumir uma posição de desconhecimento, de ignorância?
Dunker: Sim, por isso Lacan dizia que o psicanalista deve se engajar na paixão da ignorância ou na douta ignorância. Porque esta posição da ignorância é a que a transforma em curiosidade, este nome do desejo que tão facilmente fazemos extinguir em nossas crianças. Mas a paixão da ignorância, necessária para escutar, não é a soberba ignorância, ou seja, a ignorância orgulhosa de si, afogada entre Freddy Kruger e Dunning-Kruger. Freddy era este personagem de filmes de terror, dos anos 1990, que matava pessoas entrando no sonho delas. Dunning era este psicólogo que provou como as pessoas que têm menos conhecimento de uma matéria “acham” que sabem mais sobre ela do que aqueles que “realmente” têm conhecimento do assunto. Ou seja, conhecer de verdade implica humildade e não arrogância; por outro lado, desconhecer de fato implica matar os sonhos alheios em vez de escutá-los. Por isso a paixão da ignorância, essa condição ética da escuta, não é nem desconhecimento, esta paixão do ego que nos atormenta de forma paranoica nos fazendo ver o mundo em imagem e semelhança de nós mesmos - ainda que imagem e semelhança invertida -, nem ignorância mal-tratada que precisa se vestir de sabedoria para se defender de sua pequenez.
Aquele que não se escuta logo não escuta os outros e sai em imediata desvantagem no quesito: fazer reconhecer seu desejo (ansiedade) ou desejar ser reconhecido (depressão).
Qual o papel do humor para escutarmos nossas próprias contradições como humanos?
Thebas: Muralha que bomba não derruba, o humor acha a fresta. O humor sempre foi e sempre será este instrumento social de desestruturar, de revelar, descortinar. A mesma criança que nos subtrai da hipocrisia ao apontar para o rei, dizendo que ele está nu, também pode apontar pra dentro de nós para que aceitemos o fato de sermos ridículos e imperfeitos. Esta criança, que está dentro de cada um de nós, está pedindo espaço pra nos ajudar a ver o mundo com a perplexidade que perdemos. Quando rimos de nós mesmos, nos libertamos e autorizamos que o outro também se liberte rindo de si.
Qual a importância da dúvida e da hesitação para os relacionamentos humanos?
Thebas: Escutar depende de duas condições principais: silêncio e vazio. O silêncio nos ajuda a neutralizar a prontidão com que a gente sentencia perguntas e respostas. Nos permite escutar o que o silêncio do outro, que se infiltra entre as palavras dele, está querendo nos dizer. O vazio é o oco essencial para que as palavras do outro reverberem e ele possa escutar a si mesmo. Espaço para que as emoções também possam reverberar encontrando ressonância comum entre quem fala e quem escuta. O vazio da escuta é um espaço para que o outro nos habite. Dúvidas e hesitações são espaços de vazio e silêncio. Certezas soterram esses espaços.
Dunker: A dúvida é o sinal psicológico da ética moderna. Não é por outro motivo que Hamlet hesita longamente antes de vingar o assassino de seu pai, que Fausto recua diante do pacto que faz com o Diabo Mefistófeles, ou que Robinson Crusoé cultiva sobre a existência de outros estrangeiros em sua ilha. Só Dom Quixote não tem dúvida, este paradigma da loucura moderna. Mas a hesitação toma tempo, mostra vulnerabilidade, adia a ação. Na dúvida se infiltra o pior: as más influências, o desamparo e a possibilidade de ser manipulado pelos outros. Escutar é colocar-se e criar-se dúvidas compartilhadas; escutar é postergar juízos demandando mais fatos e evidências ou mais solidariedade e convicção. Enquanto escutamos o trabalho da dúvida, partilhamos nosso destino com os outros e generalizamos nossas inquietudes. Por isso, de todas as formas de divertimento, de convívio e de uso do tempo, inclusive o entretenimento, a campeã indiscutível é a conversa. Quando não há mais conversa no bar, sabemos que o alcoolismo venceu. Quando consumimos em silêncio ocupacional, seja drogas, roupas, imagens ou palavras, sabemos que a escuta perdeu.
É difícil escutar porque esta arte demanda que renunciemos ao exercício do poder sobre os outros.
De que maneira a ausência da escuta se relaciona com quadros clínicos bastante presentes no discurso contemporâneo, como a depressão e a ansiedade?
Dunker: A relação é direta na medida em que depressão e ansiedade são sintomas ligados à fratura ou fragilidade de nossas experiências de reconhecimento. Aquele que não se escuta logo não escuta os outros e sai em imediata desvantagem no quesito: fazer reconhecer seu desejo (ansiedade) ou desejar ser reconhecido (depressão). A escuta, como experiência transformativa, envolve reconstruir e encontrar seu próprio tempo. Esse tempo está perdido e pressionado na ansiedade e atrasado e lentificado na depressão. A escuta é um trajeto de deflação egoica, seja pelo seu aspecto lúdico, seja por sua dimensão de valorização da alteridade (empatia). Tanto o brincar quanto o outro estão prejudicados: na ansiedade não há tempo para brincar, na depressão não há vontade para tanto. Na depressão o Outro cai como um juiz interminável e infinito sobre o sujeito: sentença sem evidências, culpa sem processo. Na ansiedade o Outro desaparece e todo enigma é consumido pelo saber. A perda da empatia é nítida nos dois quadros e sua gradual recuperação é um sinal clínico de que o paciente está melhorando. Aliás é por isso que tanto depressivos, quanto ansiosos — assim como as pessoas organicamente adoentadas — são tão frequentemente sentidas como pessoas chatas e irritantes.
Escutar é sinônimo de conversa longa, complexa, difícil e perigosa.
Como os pais podem escutar seus filhos? Quais desafios têm se apresentado atualmente?
Dunker: Se você quer confiança, dê confiança; se você quer intimidade, ofereça intimidade. A maior parte dos pais, especialmente de adolescentes, quer saber mais sobre seus filhos sem oferecer nada de si. Para escutar é preciso entrar no mundo do outro como um antropólogo entra em outra cultura: leia, aprenda, prepare-se, depois dispa-se de seu etnocentrismo (adultocentrismo), encontre informantes, descubra se os etnólogos que o antecederam nesta rota não foram comidos por canibais. O segundo desafio é que, para o pais, escutar vai se tornando gradualmente sinônimo de obedecer. No começo a maior parte do trabalho vai se concentrando nisso, mas se não os escutamos quando pequenos, valorizando a sua palavra, a sua opinião e o seu ponto de vista, não é depois que eles aprenderão a escutar. A capacidade de escuta é proporcional ao cultivo de uma língua estrangeira, a língua do outro, que mesmo que fale português, tem seu idioleto único. Por isso toda tentativa de inclusão, inclusive em categorias como adolescente, jovem ou criança, já é um problema se achamos que vamos entender alguma coisa do outro a partir disso. O terceiro ponto é que os pais não ensinam seus filhos a escutar depois reclamam que eles não os escutam. Escutar é sinônimo de conversa longa, complexa, difícil e perigosa. Tudo de que fugimos e queremos que eles nos deixem em paz enquanto são pequenos, depois eles não brincam conosco de nossa principal brincadeira, que é a de escutarmos-nos uns aos outros.
Thebas: Podem abaixar-se pra escutá-los olho no olho; valorizar suas hipóteses, incentivando-os a investigar, intuir, arriscar; jamais recriminá-los por sentir algo “ruim”, como inveja ou raiva. Podem ajudá-los a ampliar seu repertório de percepções de si para que, identificando com mais clareza o que sentem, eles consigam expressar melhor suas necessidades. Um quinto ponto é a lei da reciprocidade: se quer que eles se sintam confortáveis em se abrir com você, faça o mesmo. É importante pra criança perceber que o adulto que sempre dá colo também pode precisar do seu colinho.
A perda da empatia é nítida tanto na ansiedade quanto na depressão, e sua gradual recuperação é um sinal clínico de que o paciente está melhorando.
Em quais espaços vocês sentem que a escuta é mais urgente?
Thebas: Eu diria que é a escola. Não fomos educados a escutar. A escola pode contribuir muito criando espaços de investigação da escuta com as crianças desde bem pequenas. Ajudá-las a escutar seus sentimentos, nomear estes sentimentos sem culpa nem julgamentos, e em um segundo momento, investigar quais as melhores formas de expressar estes sentimentos e necessidades de uma forma saudável pra todos. Se investimos em uma educação para a escuta, as relações se transformam em todos os espaços.
Dunker: Nas relações primárias, entre pais e filhos, entre escola e alunos, e entre amigos e amantes, a escuta é decisiva pois nestas relações forma-se a nossa disposição para a escuta e nosso estilo de escuta, bem como desperta-se ou não o gosto por tal atividade. Depois que fixamos uma maneira básica de escutar e ser escutado, o valor das experiências transformativas decisivas vai declinando. Essa tendência acompanha a evolução, mais ou menos crônica, da teimosia e do fechamento na vida das pessoas, assumindo proporções dramáticas com o envelhecimento. Contudo, os déficits de escuta são sentidos de maneira mais aguda quando nos vemos diante de situações que seriam de aparente simplicidade para serem tratadas ou resolvidas, mas que a precariedade da escuta torna-as insolúveis. Quanto mais enraizada em figuras específicas de poder, quanto mais identificados com seus papéis, mais difícil a experiência da escuta. Há um livro clássico sobre o assunto, Pode o Subalterno Falar, de Spivak, que mostra como em relações tóxicas de poder ao subalterno negamo-lhe a escuta. No trabalho, há desescutadores profissionais que acabaram com inúmeras carreiras alheias. Entre casais é certamente o segundo motivo mais frequente para ocasionar separações. Em matéria religiosa e moral, a desescuta tende a aumentar de maneira inversa da qual fixamos nosso interlocutor em um lugar, do qual ele não sairá, porque isso acaba abalando princípios de nossos valores e questionando nosso próprio narcisismo.
No trabalho, há desescutadores profissionais que acabaram com inúmeras carreiras alheias. Entre casais é certamente o segundo motivo mais frequente para ocasionar separações.
Por que vocês dizem que a escuta é uma atitude política?
Dunker: Porque ela é uma práxis, ou seja, não é uma técnica orientada para fins nem uma contemplação teórica de objetos do mundo. Os saberes práxicos são os que não dissociam meios e fins, nem o agente nem o paciente da ação. Neste grupo há dois saberes clássicos: a política e a ética. Nos dois casos, estamos às voltas com a maneira como sustentamos nosso desejo em situações atravessadas pelo poder, seja de exercê-lo, seja de ser seu objeto. Um mundo sem escuta seria um mundo no qual o poder se exerceria sem resistência. A escuta faz resistência ao mero funcionamento das coisas, e à mera facilitação das trocas, no interior das quais, muitas vezes vamos nos transformando em pessoas-coisas. Renunciar ao poder e encontrar o ponto de vulnerabilidade de um laço social é o ponto de partida da escuta.
Thebas: Considerando que a política é (ou deveria ser) a arte do consenso, a escuta é essencialmente a sua matriz. No livro dizemos que a etapa inicial da escuta é a hospitalidade. Hospedar o outro em si, na língua dele, nos hábitos dele. É, portanto, ainda que temporariamente, se deixar colonizar pelo outro. Isso é um ato político revolucionário em tempos em que o que mais se vê é o contrário: a tentativa de sermos os colonizadores de corações e mentes.
Um mundo sem escuta seria um mundo no qual o poder se exerceria sem resistência.
Qual a importância da pluralidade e da diferença, pensando no ensurdecimento que buscamos nos grupos de semelhantes?
Dunker: A escuta começa pela escuta de si — e de como a diversidade de outros evoca e ressoa diferenças que ainda estavam informuladas em nós mesmos. Escutar não é indiferente ao ouvir: escutamos o significante, mas ouvimos as vozes. Se não conseguimos ampliar a polifonia de vozes que nos habitam e que convergem no Outro, as vozes tendem a encontrar um uníssono que Freud chamou de supereu. Esta instância que observa, julga e pune o eu e o outro que a ele se assemelha ou desassemelha. O desejo de obter a pura diferença, a singularidade ética de cada um, é proporcional, portanto, ao quanto de pluralidade de vozes pode ser suportado por um ser-falante. O mais simples é reduzir o tamanho do mundo e manter as vozes unificadas para serem mais bem combatidas, vale dizer, sufocadas. É assim que se formou esta usina de sofrimentos nos quais se tornaram a escola e o mundo corporativo, assim como a ambiência política custodiada pela linguagem digital. Nesse contexto, nos vemos divididos entre aderir ao vozerio e conseguir falar mais alto que os demais, ou reduzirmo-nos a nossa insignificância silenciosa. Grupos semelhantes são grupos tendencialmente pobres em estrutura e reativos em funcionamento.
Em que medida o desprestígio da educação e da ciência nos dias atuais passa pela dificuldade, como sociedade brasileira, de fazer perguntas?
Dunker: Boas perguntas estão em falta no mercado, pois elas não conseguem concorrer com as perguntas fáceis, para as quais qualquer um tem pelo menos uma resposta igualmente fácil, equivocada ou impraticável. Isso se deve em parte à dificuldade de reconhecer um novo regime de originalidade, um regime que diria ser de ordem mediana. Só conseguimos pensar soluções óbvias ou incrivelmente originais e inéditas. Não há tanto espaço assim para tantas ideias startups no mundo; melhor dizendo, ideias demandam trabalho, trabalho de pensamento, de maturação, de teste. Ideias demandam a prova do conceito. Mas em uma situação de debilidade de produção social de verdade, nenhum conceito é requerido, e a exposição crítica vem se confundindo com pichação concorrencial ou narcísica. Sem crítica transformativa fica muito difícil realmente fazer frente a dificuldades reais.
Escutar é a experiência do encontro no que ele tem de mais essencial: o descontrole. Onde há controle não há encontro.
Como podemos praticar a escuta em temas tão espinhosos quanto política, religião, sexo e moral? Percebe-se que nesses assuntos há uma grande dificuldade de se estabelecer uma interlocução...
Dunker: A política é curiosamente o campo fundado na palavra para substituir a violência e reconhecer a diversidade produtiva. Mas quando a extensão de participantes aumenta e quando as decisões se tornam mais complexas, começamos a ter que “reduzir” os assuntos e as pessoas. Também no sexo ou na religião nos acreditamos fincados em solo sólido e inamovível dos princípios que nos constituem, como somos. Quando isso é tocado, nossa insegurança ontológica emerge indicando que nossa identidade não é tão perfeita quanto gostaríamos. Mas é nesta vacilação de nosso ser que reside também a liberdade desconhecida em nós mesmos. Uma liberdade da qual não queremos saber, porque ela pode mostrar que nosso eu e que nossa identidade não deixam de ser apenas sintomas mais estruturados e normalopáticos. Mas o fulcro da desescutação, quando a matéria em questão é o sexo, diz respeito aos modos contingentes como cada um constrói sua gramática de satisfações. Ignorar que outras pessoas têm outras fantasias é a razão e princípio da desescutação da singularidade do outro, de sua decomposição em meros particulares. O particular é um princípio de coletivização, assim como o singular é um princípio de diferenciação. A escuta é um modo de acolher e destinar o conflito entre um e outro simplesmente porque aspira à universalidade da linguagem.
Thebas: Creio que a resposta é uma soma de todas as anteriores, inclusive a que diz respeito às crianças. Passa também por nos desarmarmos em relação ao outro para que possamos trocar opor por compor. Enquanto vermos o outro como um oponente, não conseguiremos ser componentes das coisas que a vida nos instiga e desafia a fazermos juntos.
Para se manter e se perpetuar, o poder precisa do silêncio dos descontentes.
Por que a escuta é tão antagônica aos dispositivos de controle e de exercício do poder?
Dunker: Comece a conversar com um policial para ver se ele deixa. Faça o exercício de levar a sério a diretiva que um burocrata te apresenta. Leve a sério anúncios, motes e missões de talento e demais máximas institucionais. Não precisamos de mais leis, mas de uma outra relação, menos cínica com as que estão aí, pincipalmente as que possuem efeito cotidiano. Se começarmos a obstruir os pequenos vícios de exercício do pequeno poder no cotidiano, uma revolução de escuta se tornará possível. Tire as pessoas de seus papéis, não as trate como personagens de um tipo social. Façamos com que elas escutem o que estão dizendo e como estão dizendo e uma camada grossa de barbárie, de deseducação, será questionada. Isso vale amplamente para as redes sociais e para a linguagem digital. O choque das pessoas diante de sua própria despersonalização pode ser grande, mas ele é necessário. Para se manter e se perpetuar, o poder precisa do silêncio dos descontentes, precisa da moral de que o trabalho e dinheiro tudo resolvem e tudo saneiam. O poder não suporta o riso: por isso, palhaços e psicanalistas: uni-vos !
Qual a relação entre o não-escutar e as dinâmicas autoritárias que temos visto em 2019?
Dunker: A partir de 2016 começamos a nos acostumar com a negação da fala alheia. Em vez de escutar o que ele diz, decidimos quem ele é. A redução do mapa a somente dois, nós e eles, é uma redução imaginária, desencadeada pela crise da lógica do condomínio. É também um retorno relativo à força das ruas, uma insatisfação com o uso do sofrimento como força indutora de mais produtividade no trabalho e na escola, e finalmente, um novo tipo de linguagem que determina novas formas de vida e de laço social que vieram com a cultura digital. Com isso muitas pessoas entraram em espinhosos desfiladeiros políticos, sem formação para a escuta em situação de diversidade, seduzidos pela mensagem de engrandecimento de si e pela promessa fácil de que todo o mal pode ser erradicado de uma vez, porque ele está nestas pessoas sem caráter que estão a mais neste mundo. Esse método segregativo encontrou meios de expressão para tornar a nossa democracia, de aspiração inclusiva em uma democracia de corte exclusivista, ou seja, funcional e eficaz para cada vez menos pessoas. O autoritarismo é apenas uma exageração das práticas de poder em detrimento da autoridade, uma aposta na prevalência do controle sobre o cuidado, da violência sobre a educação.
Escutar é um ato político revolucionário em tempos em que o que mais se vê é o contrário: a tentativa de sermos os colonizadores de corações e mentes.
Podemos apontar uma relação entre a falta de escuta e a proliferação de fake news?
Dunker: A relação é direta, mas de determinação múltipla. Fake news não é só um fato que pode ser checado e desqualificado, ainda que neste ínterim ele tenha causado prejuízos, por vezes irreparáveis. Elas afetam os fatos, criando erros, mas também mentiras e ilusões. São estas as três inversões da verdade:
1. a verdade sem compromisso temporal com a história de sua formulação, portanto sem potência de fidelidade passada (ilusão da memória);
2. a verdade sem desejo, portanto sem capacidade de engajamento, sem compromisso e sem promessa (mentira do desejo);
3. a verdade sem fatos, consensos ou verificação (falsidade das afirmações).
Por isso é possível contar uma mentira dizendo apenas verdades factuais. É possível iludir o outro com suas próprias mentiras, sem responsabilidade. É possível manipular dados e imagens para que estes produzam o sentido que oculte o Real.
Fonte: https://www.huffpostbrasil.com/entry/escuta-poder_br_5d3b8de9e4b0c31569eaecbd?ncid=other_facebook_eucluwzme5k&utm_campaign=share_facebook&fbclid=IwAR2qcbBVF45Fl--wT55sJT50aufGc8-nEk-cNckJeimt-nCbBV6wvx4rrAc