O "Coringa" nosso de cada dia
O que o Coringa desmascara em nós mesmos?
Por Marcos Vinícius Gontijo
(Marcos Vinícius Gontijo é Historiador, graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e mestrando e bolsista CAPES pela Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP)
Incômodo, constrangedor e angustiante. Coringa nunca esteve tão próximo de seus espectadores
O filme Joker, “Coringa”, estrelado por Joaquin Phoenix e dirigido por Todd Philips, traz as marcas de uma Gotham tomada pela solidão promovida pelo individualismo e cercada pela extrema desigualdade social, além de profunda crise política e moral — caso contrário, não seria Gotham. Em meio a discursos políticos repletos de receitas fáceis e recheados de falas meritocráticas, transitando por uma sociedade na qual a dor alheia é motivo de piada e a empatia é prática estranha, Coringa, dessa vez, desperta um sentimento novo na plateia: para alguns, compaixão; para outros, pesar.
Arthur Fleck ou Happy — apelido carinhoso ironicamente dado à personagem pela mãe —, quem trabalha para a Haha’s, uma espécie de empresa de palhaços, intercala sua rotina desvalorizada como palhaço com os programas de TV na companhia de sua mãe, Penny Fleck. Pobre, sozinho e discriminado, a vida cinzenta de Arthur só ganha cores quando a personagem sonha com o dia em que irá obter sucesso e reconhecimento como comediante.
Penny, por sua vez, é obcecada pelo magnata Thomas Wayne, para quem trabalhou durante parte da vida há trinta anos atrás, quando, vítima de uma psicose, passou a acreditar que Arthur era filho bastardo de Wayne. Escreve cartas diárias pedindo auxílio ao ricaço, cuja única resposta é o silêncio intransponível dos muros do pequeno castelo dos Wayne.
Nessa atmosfera de descaso, humilhação e esquecimento, o espectador é confrontado com o macabro da risada incontrolável, acompanhada da visão penosa do corpo franzino e sofrido da personagem, além dos longos silêncios. Mesmo entre os diálogos, entrecortados pelas gargalhadas sinistras, há um silêncio inquietante e desconfortável que parece se projetar da tela para a plateia.
Arthur que, apesar da sua falta de traquejo e do seu sofrimento causado pelo distúrbio, que o impede de controlar o riso diante de situações embaraçosas e\ou desagradáveis, se esforça para ser descontraído e gentil para com as pessoas ao seu redor, as quais, na contramão, terminam por repeli-lo por desconfiança e incompreensão. Sem abandonar o sonho de ser comediante em um famoso stand-up comedy e as seções infrutíferas de terapia, Arthur aos poucos adentra mais e mais em sua doença e depressão, conforme as pessoas ao seu redor vão se demonstrando maldosas, oportunistas, dissimuladas, convenientes e distantes. Até porque estão todas, com exceção dos Wayne e de Murray Franklin, apresentador de um talk show, no mesmo buraco.
A sociedade de Gotham desconhece a empatia. Esta é ali, em realidade, inexistente. Até mesmo as pessoas das quais mais é esperada, como a terapeuta e assistente social que acompanha o protagonista ou a própria mãe, agem de forma completamente autocentrada. O outro só existe na condição de estímulo do próprio ego, não como uma alteridade desconhecida, diferente e motivadora de uma relação de troca intelectual e emotiva, como a fala de Arthur à terapeuta deixa claro: “Eles sequer sabiam que eu existia… Mas, eu existo. As pessoas estão começando a notar”. O encerramento da cena, por conseguinte, confirma o isolamento e nega a ilusão do protagonista. Arthur questiona à terapeuta, expondo a completa incapacidade de interação e comunicação entre as personagens: “Você não ouve o que eu falo, ouve?” A terapeuta confirma ao responder apenas com o aviso de que não poderão continuar com a terapia, pois o governo cortara a verba do projeto, e acrescenta: “eles não dão a mínima para pessoas como você ou como eu”. Ao perguntar, enfim, com quem ele poderia falar, lida diretamente com sua impotência por trás da resposta “eu sinto muito”.
Nada, mas nada mesmo em torno de Fleck possui valor, com exceção do dinheiro (e ego), cuja fonte maior são os Wayne. A vida em Gotham é descartável e escorre pelas vielas, enquanto magnatas brancos e bem aparentados, como Thomas Wayne, lançam suas carreiras políticas com discursos prontos e taxativos sobre força de vontade, mérito e sucesso, enquanto assistem calmamente a Chaplin em um palácio rodeado por protestos. Ao passo que do ângulo de Fleck, a moral e a política não passam de um discurso falido no lugar do qual restara apenas o desejo próprio de cada indivíduo e, sobretudo, do capital.
Arthur Fleck percebe-se rodeado por situações contraditórias: desde uma mãe que o reprime por brincar com o filho; ou uma plateia que ri de piadas feitas com judeus e, por extensão, com minorias; ou, por fim, três jovens brancos, abastados e supostamente bem-educados que assediam uma garota no trem durante a noite. Para completar o quadro de impotência diante de injustiças, o protagonista descobre em determinada altura que sua vida, além de solitária, está envolta por uma situação duvidosa de orfandade, adoção e maus tratos, ao mesmo tempo em que vivera no seio de uma mentira supostamente criada pela mãe, que sofreria de uma psicose. Por fim, Arthur conclui que não é ele, agora Coringa, o verdadeiro “horror”, mas as inúmeras ações que uma sociedade doentia, como a de Gotham, é capaz de submeter os sujeitos, sobretudo aqueles que representam a diferença.
O filme Joker (Coringa), desse modo, aproxima do estado natural de sociedade rousseauniana. Isto é, não é o sujeito que nasce corrompido, mas a sociedade que o corrompe. Nesse sentido, Coringa é figura ambígua, pois, se de um lado é vítima, do outro, é vilão. Ao cabo, Arthur e Coringa só podem ser compreendidos como produtos da sociedade em que estão inseridos. Não há, infelizmente, saída fácil para problemas sociais ou políticos.
Desse modo, o Coringa de Phoenix segue a regra das versões anteriores: encena diante de uma plateia que assiste, aturdida, ao seu próprio drama e medo. Se Jack Nickolson em 1989 foi uma espécie de arruaceiro que se satisfazia vandalizando museus e trazendo a desordem para os âmbitos mais elitizados e formais; Heath Ledger em 2008, pós 11 de setembro, foi um Coringa terrorista que disfarçado de médico explodia hospitais, utilizando a vida de civis inocentes para instaurar o terror; Joaquin Phoenix, dessa vez, expõe aquilo que, hoje, desconforta e se evita discutir amplamente em nossa sociedade: a solidão e seus danos psicológicos provocados por uma automatização cada vez mais intensa das relações humanas e a descrença na política como instrumento legítimo e eficaz de convívio.
Além da falência do Estado — para os mais desvalidos, claro — e a sua instrumentalização de acordo com interesses privados, de modo que as necessidades mais básicas — como os remédios dos quais necessita Arthur — são negadas à população em prol de interesses econômicos; em um tempo em que a depressão assola as pessoas das mais diversas faixas etárias, ao passo que grupos bizarros a negam ou insistem em produzir um humor tóxico, o filme não poderia ser nada menos do que incômodo e angustiante, pois a personagem fictícia encarna os reais desafios e medos da plateia que a assiste inquieta.
Coringa revela de forma contundente como o processo civilizador — conceito elaborado pelo sociólogo Nobert Elias — desagua em uma sociedade anômica, na qual o vizinho ao lado não sabe mais sobre você (ou eu) do que o número sobre a porta do apartamento. Uma sociedade formada, portanto, por indivíduos incapazes de se comunicar e partilhar experiências, dores e expectativas entre si, mas que, em contrapartida, é eficiente em produzir conteúdos em larga escala voltados para a autoimagem, com todo teor narcisista e individualista que a envolve. Essa situação se aprofunda ao se instaurar uma ideologia, ligada ao capital, na qual há um grupo seleto de pessoas bem-sucedidas — supostamente independentes e ricas porque mereceram — que contrasta com a grande massa de pessoas que foram incapazes e preguiçosas demais para “vencerem” na vida. Nas palavras de Thomas Wayne, “um bando de palhaços”. Isto é, um discurso que cria e fomenta um nós (ricos) e eles (pobres).
Entretanto, Penny, Arthur Fleck e Thomas Wayne, não obstante as suas posições sociais, compartilham de uma concepção semelhante: ao terem como finalidade apenas a completa satisfação do próprio ego, reproduzem o esvaziamento das relações sociais que arrebata a cidade de Gotham, Nova York e\ou São Paulo. A diferença é que Penny e Arthur compram o discurso que privilegia Wayne, herdeiro e dono de um monopólio empresarial que domina Gotham.
Incapaz, enfim, de alcançar seus sonhos e de alimentar seu ego, Arthur, depressivo e solitário, adentra em um quadro de resignação e psicose violentas, cujo desfecho estaria entre o suicídio e a insanidade. Ele abraça esta segunda, sem, no entanto, abandonar o desejo de ser cultuado e ver sua imagem nas telas.
A loucura e as estruturas discursivas que a envolvem articulam aquilo que a própria ideia de razão, de acordo com determinado momento histórico, nega em confirmar em si mesma. Em uma sociedade na qual todos se veem obrigados a sorrir e serem felizes a todo momento e custo (como diz a frase em tom imperativo no espelho do camarim do programa Live with Murray, “put on a happy face”), Arthur é objetivado como louco ao escancarar o quão infeliz é e o quão doente a sociedade de Gotham está.
O Coringa, portanto, desce dos palcos e se assenta ao lado do expectador, faz compras no mesmo supermercado, enfrenta a mesma fila de banco. Não é mais um vilão apenas com planos mirabolantes e não reside em uma Gotham de arquitetura estranha e labiríntica. Coringa passa a ser a carta que, sinistramente, está entre nós e nos negamos a ver. Como todo bom Coringa, está no trabalho, em casa, na escola e até em nós mesmos, ocupa diversos espaços e reside nessa ausência presente que forma o vazio que negamos ou temos medo de enfrentar.
Fonte: http://www.justificando.com/2019/10/14/o-que-o-coringa-desmascara-em-nos-mesmos/