A arte que desconstrói a doença mental

 

 

Manicómio. O projeto português onde a arte desconstrói a doença mental

Por Ana Tomás  

No Manicómio não há pacientes e cria-se arte com retorno e sem condescendência. O tempo, sem horários fixos, é a maior terapia que os artistas ali encontram.

Não é de terapia psiquiátrica que se trata quando se fala da associação Manicómio, embora aqui também se possam fazer prescrições. No caso, de comprimidos de chocolate cor de rosa, com travo a frutos vermelhos, da marca portuguesa Arcádia, e servidos em frascos e rótulos que lembram as farmácias antigas.

Este é um dos trabalhos mais recentes dos artistas que integram a organização co-fundada por Sandro Resende, há pouco mais de um ano. O objetivo do Manicómio é que as pessoas com doença mental diagnosticada sejam financeiramente autónomas e combater a sua marginalização social.

"Isto não é terapia, é arte", começa por explicar o professor e diretor artístico que trabalha há 20 anos com doentes mentais e colabora com o Hospital Júlio de Matos, em Lisboa.

No Manicómio desenham-se projetos com retorno e sem condescendência, ainda que admita que a lógica do mercado possa "ser muito frustrante" e fragilizar quem já se encontra numa situação mais vulnerável. "A não venda, a crítica negativa... Isso não é terapêutico para ninguém".  Para contornar e gerir expectativas e frustrações, o segredo está em conseguir que cada um dos participantes do projeto nunca perca a sua identidade. "Nós sabemos que nos serviços de saúde, ou noutros, somos um utente, um número. E aqui não, há um nome". 

As patologias - que podem ir da esquizofrenia à depressão - são tratadas fora do Manicómio, situado num hub creativo, com outros projetos e startups, na zona do Beato, em Lisboa. "Neste espaço, não existe um ar clínico e terapêutico, o que lhes permite não pensar na doença e trabalhar o seu valor enquanto artistas e dentro do espírito daquilo que querem criar. Por fim, trabalhamos a doença, mas esta não é a causa principal do nosso trabalho", explica.

Desde que começou, o Manicómio não tem registos de situações de descompensações, que por norma, segundo Sandro Resende, ocorrem de dois em dois meses, em pessoas com este historial médico. Por outro lado, mantém-se uma continuidade da atividade, que não tendo como fim primeiro a terapia, acaba por sê-lo, ao possibilitar-lhes trabalharem no que querem e ganharem com isso.

Os artistas recebem uma bolsa, mais os apoios para alimentação e transporte, materiais, 70% do valor das vendas das obras e 90% dos workshops que dão. O combate ao estigma da doença mental, passa pela rejeição da dependência de subsídios, procurando-se antes realçar o valor das obras e do trabalho dos artistas do Manicómio junto do mercado, em pé de igualdade. "Nem a marca é superior a nós, nem nós somos superiores à marca. E é preciso ter marcas com cabeças arejadas para este tipo de projetos. Não é qualquer uma que pensa assim".

No grupo das que partilham a mesma visão está a portuense Arcádia, empresa familiar e nome quase centenário da chocolataria portuguesa e que se uniu aos artistas orientados por Sandro Resende para criarem os rótulos e conceito de embalagens para o lançamento dos seus novos chocolates.

Francisco Bastos, um dos administradores da Arcádia, conta que a parceria surgiu, inicialmente, através de um "contacto informal" de um amigo que faz parte de uma das empresas que divide o espaço de cowork com o Manicómio.

O conceito do design e dos frascos para as novas drageias de chocolate foi pensado em conjunto. "Desde o início sabíamos que queríamos desenvolver um produto Arcádia com arte do Manicómio. E esta foi a base com que depois fomos construindo esta ideia de desenvolver um produto que, além da arte, trouxesse algum significado. Daí os chocolates serem feitos em forma de comprimidos, serem embalados num frasco de vidro, por sua vez, envolvidos numas caixas de medicamentos de antigamente".

Entre os artistas que contribuíram para o desenho das embalagens destes comprimidos especiais encontra-se Cláudia Sampaio, designer, pintora e escritora, com vários livros de poesia editados. Está no Manicómio praticamente desde o seu início enquanto espaço autónomo.

A artista de 38 anos chegou ao projeto por iniciativa  própria."Em 2017, estive internada no hospital e quando saí comecei a pintar em casa, mas sempre sozinha e a tentar recuperar, ao mesmo tempo. Fiz uma pesquisa sobre arte outsider ou arte bruta em Portugal, porque achava que o meu trabalho não se enquadrava nas galerias. E um dia encontrei uma entrevista do Sandro e fui mostrar-lhe os meus desenhos. Depois ele falou-me deste espaço e convidou-me para ser uma das artistas do projeto." 

A arte surgiu cedo na vida de Cláudia, e muito antes de poder vir a ser encarada também como forma de terapia. "Desde pequenina, sempre escrevi e desenhei". 

Seria o tempo, ou a falta dele, a ditar opções e a fazer com que o desenho fosse ficando para trás. Há três anos, trabalhava em cinema e televisão e tinha "uma vida muito diferente". "Era stressante, já não me fazia nada feliz". Acabou por deixá-la e apostar nos seus desenhos, que foram evoluindo e lhe permitiram descobrir-se como artista. "É uma oportunidade de tempo que eu nunca tinha tido antes". O internamento, o segundo e o mais longo que teve, levou-a até aí. "Por causa dos medicamentos não conseguia ler quase nada, nem escrever. E como sentia que tinha de criar, a única coisa que conseguia fazer eram desenhos, uns esboços, desenhava as caras das pessoas... Quando saí fiquei com esse bichinho". Experimentou então a pintura, num papel de metro e meio colado na parede, "para ver o que é que surgia". "Comecei a rabiscar e a partir daí nunca mais parei."

Cláudia já não vê a doença mental como tabu, quer desconstruir a ideia de incapacidade associada às pessoas que sofrem desse tipo de problema e partilha que na origem do seu internamento estiveram pensamentos suicidas. "Tenho uma grande aflição com a perda de tempo e com a ideia de mortalidade. E cada vez mais sentia-me sufocada por achar que estava a desperdiçar o meu tempo numa coisa que não era aquela para a qual eu era talhada".

A artista e escritora diz, na brincadeira, que foi pelo efeito da medicação que decidiu abandonar a vida que conhecia para se dedicar só à pintura, mas reconhece que esse passo - que tantos desejam dar, com ou sem doença mental associada - lhe "trouxe muitos problemas", até nas relações pessoais. O Manicómio ajudou a materializar e profissionalizar o desejo, proporcionando-lhe oportunidades, uma rede de contactos e um contexto de segurança pelo facto de trabalhar com pessoas que estão na mesma situação. "Há aqui uma coisa acolhedora, quase de proteção. Estamos todos ligados pelos nossos problemas mentais, apesar de muito diferentes e das histórias de vida de cada um", diz a artista, que confessa que só sentia o estigma da doença mental quando contava às pessoas o facto de ter estado internada e de se medicar. Mesmos as mais próximas, "não entendiam nem o que eu tinha, nem porque tinha de tomar medicamentos . Tive imensas discussões e cheguei a dizer que nunca mais ia sequer tentar explicar o que é que se sente quando se está numa crise ou porque é que se vai parar ao hospital psiquiátrico".

Cláudia acredita que projetos como o dos chocolates da Arcádia, que joga com o aspeto da medicação, ajudem a quebrar o estigma e muitas das incompreensões associadas às doenças mentais. "O que nunca acontece na saúde mental é falar muito sobre isso. É tabu porque não se fala. E o Manicómio foi puxando empresas e outras pessoas para ajudar a mostrar que há pessoas com problemas mentais que também são muito normais e podem ser úteis à sociedade, o que até há pouco tempo não era entendido assim."

Além do valor do trabalho dos artistas, 10% das receitas das vendas destes chocolates, já disponíveis nas lojas da Arcádia, em Portugal, reverte para a Manicómio, e fará parte da gama fixa dos produtos da marca. "Não é uma edição limitada, nem sazonal. Estará sempre disponível", sublinha Francisco Bastos, sobre aquele que é o segundo projeto de responsabilidade social da empresa. 

Um espaço sem muros nem amarras

O Manicómio tem conquistado espaço com o seu conceito artístico e também junto daqueles que se debatem com problemas mentais e procuram, mais do que uma terapia, a liberdade de acomodarem a vida ao seu próprio ritmo. Têm quase 100 pessoas em lista de espera e está a prevista a abertura de mais espaços a curto prazo, mas para já é no Beato que funciona esta empresa social onde todos participam nas decisões. "Existe aqui uma comunidade quase familiar que é importante", sublinha Sandro Resende, explicando que os artistas escolhem os projetos que querem integrar. "Falamos de uma forma muito direta uns com os outros, até porque não há paredes, e não haver paredes é muito bom não só a nível artístico, como a nível de saúde e não existe vergonha. Quando um artista se sente mais fragilizado pede um psicólogo".

O Manicómio tem acordos com consultórios exteriores, que garantem o rápido atendimento dos membros do projeto, caso seja necessário. Por outro lado, o espaço fornece consultas, por marcação, para pessoas de fora, "a um preço justo" e em parceria com a Junta de Freguesia. "O encontro com os especialistas é no sofá à entrada e depois a pessoa escolhe onde quer ter a consulta, não há aquela imposição do consultório".

Sandro Resende pensou na criação do Manicómio no Hospital Júlio de Matos, onde trabalha com doentes mentais há duas décadas. A materialização do projeto começou há cerca de um ano e desde então já conta com um portefólio cheio, onde se incluem participações em exposições internacionais, como a novaiorquina Outside Fair. "Artisticamente existe uma legitimidade ganha. Olham para eles como artistas e não como doentes. Depois, com esta experiência em Nova Iorque percebemos que ainda temos muito para trabalhar, que o mercado em Portugal, nesta área artística, é inexistente".

A diferença também se nota na disparidade dos preços das peças vendidas e na forma de comercialização. "São galerias que vendem trabalhos feitos por pessoas com doenças e não só. Nós não somos uma galeria comercial, mas conseguimos algumas parcerias com galerias internacionais, de países como Itália, Espanha, França e Canadá e EUA, que mostraram interesse em trabalharem com os nossos artistas."

Embora não haja, necessariamente, uma diferença no tipo de arte produzida entre pessoas com e sem doença mental, Sandro Resende aponta a autenticidade com um fator distintivo do primeiro grupo. "Não têm uma grande preocupação nem com o lado social, nem com o lado mercantil e isso ajuda a que sejam um pouco mais livres e soltos. Existe uma pureza que por vezes não se encontra na arte contemporânea".

No Manicómio estão representadas quase todas as artes, desde a escrita à joalharia, passando pela cerâmica, pintura, escultura ou desenho, mas, sobretudo há liberdade e tempo, não existem horários a cumprir. "Nós estamos [sempre] muito preocupados com o nosso dia a dia. O tempo é um ditador complicado e a obsessão de termos de ter a casa e o carro pagos, os trabalhos que não queremos, por vezes, levam a descompensações, tristezas e desilusões". 

De França para Portugal à procura de tempo para os próprios projetos

David De Beck Spitzer tem 35 anos e frequenta o Manicómio há quatro meses. É francês, mas cresceu em Portugal. Saiu aos 15, para estudar, regressou há cinco anos e há três trouxe a família que formou. Num português correto, e sem sotaque, explica que já tinha relação com o mundo das artes, em França, onde era pintor e fazia trabalhos de publicidade e artes gráficas.

Já em Lisboa e no Manicómio encontra o espaço e o tempo para desenvolver os seus próprios projetos, como o de banda desenhada que está a criar atualmente. Como muitos dos artistas que ali estão, também teve necessidade de procurar apoio psiquiátrico. "Estive um ano num programa que se chama o Hospital de Dia, onde fazíamos psicoterapia. Foi a minha psicóloga que me aconselhou a vir aqui. Encontrei-me com o Sandro, apresentei o meu portefólio, ele gostou e entrei no grupo".

É o tempo o valor mais precioso que encontra no Manicómio. Com filhos pequenos, outras das mais valias que vê são a inexistência de horários fixos, ter um espaço e material para trabalhar e colegas para combater o isolamento social.

Para Saber Mais: https://www.esquerda.net/artigo/manicomio-arte-contra-o-estigma-da-doenca-mental/59135

Fonte: https://www.wort.lu/pt/portugal/manic-mio-o-projeto-portugues-onde-a-arte-desconstr-i-a-doenca-mental-5e50237fda2cc1784e356acc?fbclid=IwAR1jvVbrHSLp6i2sNPJw-W-ewbCze7-EZwJtjiP7wuLDBkwQhv85bEI2_Zk

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