O mau uso das tecnologias em tempos de pandemia
“Estamos usando Zoom, Google Classroom, Microsoft Teams de uma forma completamente irresponsável” diz Professor Marcos Dantas da UFRJ
Por João Vitor Santos
Para o professor da Escola de Comunicação da UFRJ estamos entregando os dados de estudantes para corporações privadas, isso é uma privatização da educação através das plataformas de ensino remoto
A pandemia trouxe uma série de transformações e há quem diga que muitas vieram para ficar. Uma delas é a implementação da educação através do ensino remoto e das aulas síncronas a distância. No entanto, enquanto muitos celebram o fato de que, finalmente, a escola se transformou e chegou no mundo da revolução 4.0, o professor Marcos Dantas faz um alerta: “estamos usando Zoom, Google Classroom, Microsoft Teams de uma forma completamente irresponsável”. Isso porque essas plataformas, como a maioria das que operam na última geração da internet, capturam dados dos usuários e armazenam tudo que for gerado em seus ambientes. “Considero isso uma tragédia a longo prazo, porque se está entregando a essas plataformas a própria formação da identidade e da cultura brasileira”, acrescenta, em entrevista concedida por chamada de vídeo pelo Telegram à IHU On-Line.
O debate não é novo e o professor lembra que isso está na discussão dos usos desses aplicativos que parecem facilitar nossas vidas. “Enquanto se está discutindo sobre R$ 600 para a pessoa não morrer de fome, o Facebook e o Google estão ganhando bilhões de dólares de uma forma completamente invisível em cima de nossas atividades”, alerta. Mas o quadro se acentua quando se trata de educação pública e dos jovens, que se imagina serem o futuro das nações. “É muito triste isso tudo que está acontecendo, num momento em que poderíamos estar aproveitando a pandemia para reconstruir pelo menos os sistemas educacionais, pois temos uma excelente Rede Nacional de Pesquisa que poderia ser a base para se construir uma rede pública a serviço da educação”, lamenta.
No entanto, Dantas reconhece que esse não é um debate fácil, pois muitas pessoas dizem que a estrutura estatal é lenta e incapaz de gerar as respostas que se precisa diante de quadros como esse, especialmente num curto espaço de tempo. Mas, lembra o professor, é preciso compreender que para as empresas isso é um negócio. A empresa “não me responde, está perdendo dinheiro. Não me responde logo porque é bonzinha ou competente, mas porque se não fizer isso está perdendo dinheiro”, reitera.
Para ele, mesmo que se pareça nadar contra maré, é preciso tensionar e levantar esse debate. “Quando se veem documentários como ‘The Social Dilemma’ ou ‘Privacidade Hackeada’, percebe que começa a crescer na sociedade um debate sobre essas questões”, aponta. Debate esse que, quem sabe, pode levar à definição das plataformas como um serviço público, algo que, no contexto ideológico atual, segundo o professor seria uma autêntica ‘apostasia’. “Essas plataformas, Facebook, YouTube etc., no mínimo têm leis para regular que ser reguladas pelo Estado, assim como há cem anos passamos a ter leis para energia elétrica, telefonia e uma série de serviços público, nascidos com base em tecnologias que eram revolucionárias ou inéditas à época”, dispara.
Marcos Dantas Loureiro é professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, é, ainda, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT-UFRJ. Entre suas publicações, destacamos Trabalho com informação: valor, apropriação, acumulação nas redes do capital (Rio de Janeiro: Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFRJ, 2012) e A lógica do capital-informação: fragmentação dos monopólios e monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais (Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2002). Confira a entrevista.
Qual o significado do trabalho para a sociedade contemporânea?
Parto do princípio de que o trabalho é inerente ao ser humano, é constitutivo do ser humano. Logo, em toda e qualquer sociedade, contemporânea ou não, o homem é o seu trabalho. O que muda ao longo das épocas são as formas de trabalho, também as relações sociais que envolvem o processo de trabalho. Ou seja, o valor positivo ou negativo ao que cada sociedade considera como trabalho.
Então, numa sociedade escravocrata, por exemplo, se verá no trabalho algo extremamente depreciativo; os homens livres jamais diziam que estavam trabalhando, se sentiam ofendidos se alguém dissesse que teriam de fazer algum trabalho. Na própria linguagem existia diferença entre opus e labora, na Grécia, por exemplo. A palavra “negócio” também vem do latim e significa, na sua origem, ‘negar o ócio’, colocando o ócio como algo que é positivo e não necessariamente coisa de vagabundo, mas tempo para as artes, para a filosofia, para a política que, claro, só podia ser desfrutado pelas elites, pela nobreza, pelos guerreiros, pelos sacerdotes.
A sociedade moderna, constituída a partir dos artesãos e mercadores, passa a valorizar o trabalho, passa a ter uma visão positiva do trabalho e essa visão passa por todos os pensadores do século XVIII. Adam Smith, por exemplo, começa “A Riqueza das Nações” dizendo que essa riqueza se apóia no trabalho; filósofos como Bacon, Leibniz e vários outros vão colocar que o conhecimento tinha que se basear no trabalho, na atividade dos trabalhadores, dos artesãos, e assim se passa a ter uma visão positiva do trabalho.
Trabalho superado?
Hoje, determinados setores de pensamento passaram a sustentar que o trabalho estaria superado e ultrapassado. Do ponto de vista de que o trabalho é constitutivo do ser humano, ele não está superado e não está ultrapassado. Mas, do ponto de vista das relações capitalistas de produção, certamente estamos testemunhando mudanças importantes nas relações trabalhistas. O trabalho central hoje, do ponto de vista da acumulação capitalista, não é aquele que Marx viu no século XIX, ou o que Adam Smith viu no século XVIII. Sempre acontecem transformações e hoje, se falamos de trabalho, temos que considerar aspectos que em outros momentos da modernidade não eram consideradas.
E uma dimensão que considero, por exemplo, é a dimensão artística; coisas que no tempo de Marx eram consideradas como arte, mas não estavam inseridas numa lógica produtiva, numa lógica econômica como ocorre hoje. Essa é a distinção que faço no conceito de trabalho atualmente, mas o trabalho continua sendo essencial para todos nós.
Como a ideia de trabalho se reconfigura diante do cenário das redes e do mundo digital? A digitalização do sistema bancário, por exemplo, diminui o trabalho do funcionário do banco.
Aí temos que recuperar e entender algumas noções marxianas básicas. Uma delas é a distinção clara entre o trabalho produtivo e o trabalho improdutivo, e no conceito de que no trabalho produtivo há um trabalho que valoriza o capital, enquanto o trabalho improdutivo é toda atividade em que não se valoriza o capital. Toda vez que se identificar qualquer tipo de atividade que está servindo para valorizar o capital, pode-se conceituar como trabalho produtivo.
A discussão hoje é justamente se o conjunto de atividades que fazemos, e fazendo de maneira tão natural como o curso de um rio, na verdade podem ser atividades que realizamos porque o capital introduziu essas atividades para se valorizar. Então, é apropriado discutir se hoje, quando estou realizando minhas atividades financeiras no banco através do computador, estou substituindo um bancário. Nesse caso, eu posso estar contribuindo para valorizar o capital. É uma questão em aberto.
Há outras questões que para mim são muito mais fáceis, pois essa questão realmente está numa fronteira complicada. Quando estou, por exemplo, no Facebook ou no YouTube curtindo ou comentando coisas, não tenho dúvida nenhuma em afirmar que estou trabalhando para o capital, pois estou produzindo dados. Eu vi um documentário que está sendo muito comentado, “The Social Dilemma” [no Brasil, O Dilema das Redes, em exibição na Netflix], e ali os sujeitos confessam que estão fazendo exatamente isso, extraindo os meus, os seus, os nossos dados para valorizar a plataforma. Então, estou produzindo dados para eles e, nesse caso, estou trabalhando para eles.
Mas as pessoas, de modo geral, parecem ignorar esse dado e até dizem que não se importam e que preferem o benefício de desfrutar desses aplicativos e sistemas. Quais os desafios para a conscientização das pessoas sobre a importância dessa realidade?
É o desafio da conscientização, em primeiro lugar. Quando se veem documentários como “The Social Dilemma” ou “Privacidade Hackeada” [no original The Great Hack, também da Netflix], percebe-se que começa a crescer na sociedade um debate sobre essas questões.
De fato, a sociedade naturalizou tudo isso. E é muito difícil essa conscientização, eu sinto isso toda hora, pois sou o chato que fica levantando esse tipo de polêmica em todo lugar e as pessoas dão exatamente esta reposta: “mas, e daí?!”. Agora mesmo, na universidade, tivemos uma enorme oportunidade de construir plataformas para as aulas a distância para organizar o ensino e uma série de coisas, mas estamos usando Zoom, Google Classroom, Microsoft Teams de uma forma completamente irresponsável.
Então, levanto esse tipo de discussão, e o pessoal diz: “mas e daí?! Essas ferramentas são mais fáceis, mais simples. O [sistema] da UFRJ não funciona”. Tem esses tipos de argumentos, mas que implicam em questionar: por que o Google Classroom funciona? Funciona porque tem um monte de dinheiro investido, tem um bando de engenheiros trabalhando nisso e é uma experiência global. São milhões de pessoas mandando dados e a partir daí eles podem aperfeiçoar o sistema. Além de todo investimento em servidor, rede etc.
Veja o caso da assistência técnica imediata, tem um bando de gente concentrada para resolver. Eu tive um problema aqui, mas na hora que quis acessar um sistema não consegui, mandei uma mensagem para o suporte e ele me respondeu cinco horas depois. Aí, o camarada que não tem consciência ri. O outro [sistema das grandes corporações] já teria me respondido na hora. E isso é verdade porque, se o outro não me responde, está perdendo dinheiro. Não me responde logo porque é bonzinho ou competente, mas porque se não fizer isso está perdendo dinheiro.
Saída é pelo debate
Ou seja, é um processo de conscientização, e essas deformações que essas plataformas vêm provocando na democracia estão ajudando nessa conscientização, porque tem cada vez mais gente percebendo que há um problema sério no campo da democracia. No momento não vejo outra possibilidade que não seja debater o tema. O debate vai levar, como já está acontecendo na Europa, a projetos de lei, e esses projetos provocam essas reações, porque o outro se sente prejudicado no seu conforto e aí se tem uma disputa querendo ganhar corações e mentes. Não é um processo fácil e imediato, é um processo político, mas que está começando.
Em que medida esses conceitos de trabalho material e trabalho imaterial servem para compreender esse mundo em transformação? Dão conta desse desafio?
O único trabalho imaterial que conheço é aquele que Deus fez ao criar o mundo. Todo trabalho é material, essa ideia do trabalho imaterial é uma perigosa invasão idealista. Acredito que se Marx ressuscitasse hoje ele faria alguns comentários como aquelas ironias que ele fazia para o Dom e outros nos rascunhos dele. No Capital ele é mais comedido, mas nos rascunhos, de vez em quando, ele soltava o verbo mesmo.
Para começar, todo o trabalho é feito com o corpo, a sua mente está no seu corpo, sem ele não se faz nada. E todo o trabalho é feito através da energia e matéria que o cerca, é a luz, o som, o calor, o frio, o tato, o cheiro, tudo isso é matéria-energia e através disso que se percebe o mundo e se dá significado a ele. Por isso, toda a atividade é material, é feita pela matéria-energia e, no fundo, para manter o seu corpo vivo. A cultura humana é produto da necessidade humana de manter o corpo vivo. E nisso nos diferenciamos de outros seres vivos, pois enquanto qualquer outro tem uma relação imediata com a natureza, o ser humano tem uma relação com a natureza mediatizada pela sua cultura. E isso vale tanto para o neandertal que pintava a caverna antes de caçar, quanto vale para nós hoje com todo esse mundo tecnológico que nos cerca.
O que existe hoje é um processo de trabalho que está envolvendo toda a sociedade, dois, três bilhões de pessoas no Facebook, por exemplo, e bilhões de pessoas no mundo inteiro usando o Google para fazer buscas. A partir daí um segmento muito pequeno da sociedade se apropria desse conhecimento geral, se apropria dessas culturas todas, dessas práticas sociais para gerar um lucro fantástico. Para se ter ideia, o lucro do Google no ano passado foi de 39 bilhões de dólares.
E aí existe um aspecto importante, que deveria ser o papel que a esquerda deveria cumprir: começar a conectar essas práticas sociais com esses lucros financeiros. Com isso, as pessoas podem começar a desenvolver uma crítica. Porque enquanto se está discutindo sobre R$ 600 para a pessoa não morrer de fome, o Facebook e o Google estão ganhando bilhões de dólares de uma forma completamente invisível em cima de nossas atividades.
Riqueza? Mas de onde?
E é assim que se faz Jeff Bezos o homem mais rico do mundo, Bill Gates o segundo mais rico. Mas essa riqueza vem de onde? Vem de mim, vem de você. Quando for possível conectar esse discurso, talvez haja mais consciência política a respeito de quem está realmente ganhando com essa brincadeira.
Então, mesmo no sentido epistêmico, o senhor acha que o conceito de imaterial perde força, se torna etéreo?
Exato, fica extremamente subjetivo sem a relação necessária com o corpo, com a sobrevivência, com a nossa realidade prática.
O senhor já falou brevemente, mas gostaria que detalhasse como apreende o fato de estruturas do Estado abrirem mão de desenvolverem plataformas de uso comum, como na área da educação, por exemplo, e legar esse trabalho à iniciativa privada? O que significa todo o ensino público no Rio Grande do Sul, por exemplo, ser entregue a uma plataforma como o Google Classroom?
Considero isso uma tragédia a longo prazo, porque se está entregando a essas plataformas a própria formação da identidade e da cultura brasileira. Imagine que educação é um processo em que uma criança entra com quatro, cinco, seis anos e, pensando teoricamente de forma otimista, vai sair com 23, 24 ou 25 anos. Todo o processo de informação e perspectiva do que esses milhões de crianças possam ser no futuro já está sendo tratado no algoritmo do Google agora. Então, já podem dizer o que vai ser o Brasil daqui a 15 ou 20 anos. E nós não podemos.
Por isso considero tudo uma tragédia, é muito ruim. E no documentário “Dilema das Redes”, os próprios caras que construíram essas coisas dizem como eles produzem seus usuários. Como eles falam no documentário, indústria de plataformas é uma indústria de drogas.
Então, quando o Estado brasileiro renuncia – renunciou controlar as telecomunicações no governo FHC, renunciou controlar o seu subsolo também no governo FHC quando entregou a Vale, acabou de entregar a Embraer (depois o sistema não prosperou, mas está destruindo todo o sistema de ciência e tecnologia) –, se tem de fato um processo de desmonte do Estado brasileiro. E ainda, agora, de forma radical, pois estão queimando matas, florestas, pantanal, e isso tudo está fazendo parte do processo. Isso se dá em todos os setores, falam do presidente, mas são todos os setores. O Congresso também não faz nada, a Justiça raramente ajuda. É uma completa falta de compreensão, patriotismo, de brasilidade, de visão de futuro, é a mediocridade.
É muito triste isso tudo que está acontecendo, num momento em que poderíamos estar aproveitando a pandemia para reconstruir pelo menos os sistemas educacionais, pois temos uma excelente lei Nacional de Pesquisas que poderia ser a base para se construir uma rede pública a serviço da educação, mas se fica brigando para ver se consegue pegar alguns nacos desse mercado. Tudo é reduzido a mercado, mas nem tudo pode ser; a educação não é mercado.
Ainda sobre o campo da educação, é impressionante pensar que toda essa transformação causada pela pandemia está gerando dados que as redes de pesquisas nas universidades, e o próprio Estado, não vão ter como acessar.
Com certeza, não vai demorar muito para começarem a aparecer as consultorias do Google dizendo como educar suas crianças. E detalhe: para fazer as crianças felizes, elas têm que curtir.
O senhor trabalha o conceito de capital-informação. Gostaria que detalhasse essa perspectiva. E quais os desafios para compreender esse conceito na prática?
O capital-informação, que foi um conceito que deu origem a um livro meu em 1996, implica dizer que o capital, no seu processo evolutivo, passou a organizar a produção e a apropriação do valor em torno da apropriação imediata da informação. Isso porque a lógica marxiana é a de que a relação de produção e apropriação é mediatizada pela mercadoria. É preciso ter um objeto externo pelo qual se dão as trocas, as transferências de valor. E como esse objeto externo é propriedade de alguém, ele é transferido em troca de outra propriedade. Geralmente essa outra propriedade em troca é o dinheiro, representante universal do valor.
Só que o capital, na sua evolução, foi cada vez mais transformando o processo produtivo em produção e a comunicação em informação. Claro que quando se produz comunicação é preciso ter um suporte qualquer. Mas o lucro passa a ser imediato, e aí há uma relação dialética entre o mediato e o imediato, e se sai da mediação mercantil e vai para uma mediação diretamente semiótica, que é a marca. Você não compra as coisas, compra as marcas – Nike, Adidas, Iphone, Android. E, assim, começa a viver num mundo de marcas.
O preço que se paga por um medicamento, que é caríssimo, na verdade, não é um valor de troca, é um valor apropriado como renda por causa de uma patente em cima da ciência e tecnologia embutida numa pílula qualquer. Só que temos sempre que colocar a informação num suporte material qualquer, mas se está pagando é pela ciência e tecnologia, pelo desenho, pelo trabalho que produz isso. E todo o trabalho que não produz isso tende a ser desqualificado e daí vem a ideia do trabalho imaterial. Informação, por definição, não é “equalizável” e a mercadoria, por definição, é “equalizável”.
Diferença que produz diferença
Das muitas definições de informação, a de Gregory Bateson é a de que informação é uma diferença que produz diferença. O processo de produção de mercadoria é justamente um processo de produção de uma igualdade. Quando o capital passa a negociar informação, ele está negociando algo que não é equalizável, por isso precisa da patente e de toda uma estrutura jurídica de apropriação, que é uma estrutura de cercamento. Agora começou uma discussão sobre o comum, mas é um pouco isso também, pois as pessoas passam a ter ou não o direito de acesso se pagam ou não o preço que é pedido.
É uma ideia que Rifkin e vários autores já colocaram, que é quando você passa a ter o direito de acesso. Você pode pagar pelo acesso ou pode dar seus dados, mas é sempre uma relação desigual, não é uma relação de equivalentes. Isso porque alguém tem o monopólio do conhecimento, da imagem. Então, estamos indo – ou já estamos vivendo – numa sociedade moderna rentista, que é o mundo do capital financeiro. É o capital financeiro se apropriando do trabalho sem a mediação do produtor de mercadorias.
Assim, isso, em tese, é o que chamo de capital-informação. Não deixa de ter o trabalho produzindo valor, mas esse trabalho, que é orgânico, sistêmico e que só produz valor não por mecanismo de troca, mas por mecanismo de renda, de cercamento através de patentes, de jardins murados.
E são essas lógicas que fazem com que o trabalho no século XXI se transforme por completo?
Sim. A partir da Teoria da Informação, existem várias instâncias no processo de trabalho que chamo, a partir de expressões da própria Teoria, de trabalho aleatório e redundante. O aleatório é o trabalho criativo, que tem o erro por pressuposto, é o trabalho científico, artístico, em que se sabe que há erro, mas que se tenta controlar e desenvolver a partir de tentativas e erros. O trabalho redundante é justamente aquele em que o erro não está pressuposto, o erro tem que ser eliminado, controlado. De modo que, nesse processo, e exatamente por causa disso, se tem várias dimensões de tratamento de informação. Tem uma dimensão muito aberta em que a taxa de redundância é muito baixa e tem aquele outro trabalho em que a taxa de redundância é muito alta. Ou seja, no limite, é o trabalho do ‘sim’ e ‘não’, do ‘certo’ e do ‘errado’, é o famoso trabalho de montagem taylorista do passado. Quando se chega a esse estágio, é possível substituir esse trabalhador por uma máquina.
Onde foi possível colocar máquina, onde havia trabalho redundante, o desenvolvimento das tecnologias digitais pôde substituir. Mas onde se mantém o trabalho em que o erro ainda é pressuposto, se está tratando com uma dimensão comunicacional que, às vezes, é incomensurável, se continua precisando de cérebros humanos. Assim, a relação de trabalho vai se modificando na medida em que você vai podendo substituir trabalho redundante por máquina e por isso vai fechando cada vez mais a demanda por trabalho produtivo. Só que as pessoas que são excluídas do processo têm que continuar sobrevivendo de alguma maneira. E aí vai se gerando esse mundo caótico em que estamos vivendo.
E como resolver a equação dessa legião de pessoas que não conseguem acessar essa outra forma de trabalho?
É, com certeza, temos uma legião mundial de lúmpens. E está criando essa sociedade da barbárie que estamos vendo. Como resolver isso? Aí é bom lembrar uma autora do início do século XX chamada Rosa de Luxemburgo, que escreveu um livreto com o título Socialismo e barbárie, porque acho que ela deveria ter razão.
O capitalismo está produzindo um lumpesinato global, e esse pessoal está aí fazendo o que temos visto e nos conduzindo. O capitalismo, com essa massa desorganizada, inculta e que tem que sobreviver, está produzindo essa barbárie, milicianos, pentecostais etc. E vemos isso no mundo inteiro, nos Estados Unidos, na Alemanha.
Em meio a esses dilemas, tem ressurgido o debate sobre uma renda básica universal. Qual sua opinião sobre esse tema?
Para mim, é pão e circo. Na Roma antiga era a mesma coisa, o que era o proletariado romano? Era exatamente o cidadão livre e pobre, porque era livre ele não trabalhava, pois trabalhar era algo ímpio, e que o aristocrata sustentava com o pão e com o circo. Na verdade, uma renda básica universal pode ser uma medida paliativa, mas o que precisaria mesmo é de uma nova política, de um novo Estado que pegasse essa multidão e desse a ela uma nova formação intelectual.
Onde está a saída para isso? A saída é a arte, é a música, o esporte, as pessoas não querem mais trabalhar em fábricas ou bancos. É esse o mundo e as melhores políticas são aquelas que vemos aparecer, por exemplo, na Copa do Mundo, em que se vê um time como o da Islândia, que é um país pequeno, mas que fez um bom sucesso na última Copa. Quando foram ver qual era o motivo do sucesso, descobriram que tem uma política naquele país que pega os jovens que tendem à exclusão e os inserem em programas esportivos. Então, o jovem começa a trabalhar para virar jogador de futebol. A Alemanha não tem nenhum craque no futebol, mas o sucesso da Alemanha está no time, e no time que foi formado desde lá debaixo. É uma política de Estado. Veja o Mbappé, um jogador francês que faz muito sucesso. Ele também é produto de uma política de Estado que pega meninos das periferias francesas e os insere num processo educativo ligado ao esporte.
Temos as soluções estruturais para isso, que é pegar justamente essa meninada que está entrando na escola e as inserir em programas em que possam desenvolver suas potências criativas, seja no esporte, na música, seja na arte. É claro que nem todo mundo tem competência, ninguém vai ser craque de futebol do nada, tem certas habilidades que são inatas, mas o fato é que também todo mundo pode ser bom em alguma coisa, basta oportunidade.
É preciso fazer isso com toda essa meninada, porque já não tem mais atividade em banco e empresas e, daqui a pouco, não vai ter nem atividade de entregador de iFood, pois drones, balões etc. já estão em experimento. Hoje, por exemplo, temos impressoras 3D para costurar roupas. Aliás, já existe impressora 3D para construir prédio e em breve não terá mais atividade de pedreiro; também não terá mais essa atividade semiescrava de costura de roupa que existe hoje, como bolivianos que vêm para o Brasil e são semiescravos em confecções de roupas. É preciso realmente uma política estrutural para construir um novo tipo de ser humano, e não é o capital que vai fazer isso. O capital, no máximo, vai fazer essa renda mínima para o pessoal ficar um pouco sossegado.
Essa sua sugestão seria, então, uma saída para além do capital? E não compreende, por exemplo, lógicas que falam em novas estruturas, em reforma do capitalismo?
Óbvio, desde que sou criança nunca pensei em reformar o capitalismo. Infelizmente, esse chip veio comigo e não consigo mais trocar.
Como imagina ser o futuro do trabalho, tendo em perspectiva essa experiência da pandemia?
Não se trata de um pós-pandemia. Talvez com uma vacina tenhamos um pós-pandemia, mas algumas coisas que já vinham em processo foram aceleradas agora. Como já destaquei, existe um processo capitalista que tende cada vez mais a valorizar o trabalho criativo, ou o que chamo de trabalho informacional aleatório – arte, desenhos, esportes, ciência e tecnologia etc. – e por isso mesmo um processo que tende cada vez mais a eliminar ou desqualificar, a reduzir a situações bem miseráveis o trabalho redundante.
Nisso entra uma segunda questão, que é uma divisão internacional do trabalho, porque esse trabalho criativo tradicionalmente, desde que Colombo descobriu o caminho da América, sempre foi concentrado nos países centrais e raramente um país periférico consegue romper isso. Um exemplo de país periférico que rompeu isso foi a Coreia do Sul, ou mesmo a China. Mas, geralmente, o trabalho mais criativo, baseado em tecnologia, ficou sendo o trabalho criador dos grandes paradigmas conceituais e ficaram sempre lá no Norte, como até mesmo essa ideia de DigiLabour, mais uma expressão que vem dos colonizadores, e o trabalho redundante vai sendo jogado para a periferia.
Nós não conseguimos, enquanto Brasil, superar isso. Eu acho que chegamos ao limite, tivemos um momento em que poderíamos romper esse circuito e não rompemos por uma série de questões e a tendência é que a sociedade brasileira fique cada vez mais com o que é pior em termos de trabalho. Acabei de observar que dos dez homens e mulheres – pois tem uma mulher – mais ricos do Brasil, cinco ou seis são financistas e quatro são varejistas. Ou seja, o capitalismo brasileiro hoje é o capitalismo de especuladores financeiros ou de varejistas. Será que não se tem mais nada no meio?
Agronegócio
O nosso agronegócio é uma mera plataforma de exportação de tecnologia estrangeira, se trabalha com sementes da Monsanto, com máquina Caterpillar, é um mero terreno onde se produz informação na forma de soja para exportar. Se dá apenas o terreno para essas empresas produzirem e uma pequena mão de obra para operar o trator. No caso brasileiro estamos vendo, e agora a sociedade decidiu com a eleição que tivemos, que quer ser realmente isso aí, a periferia de periferia. Não consigo ser nada otimista nesse cenário, até porque quem poderia estar pensando um projeto em como sair disso, está ainda jogando nos marcos de uma democracia liberal que já fracassou há muito tempo.
Pensar um controle dessa geração de dados e marcos legais que protejam esses dados pode ser um caminho? Como pensar num ideal de regulação de dados e como ela se daria via regulação estatal?
O documentário “O Dilema das Redes” coloca uma hipótese em que já havia pensado, mas não tive coragem de falar. Todo esse negócio tem que ser posto na ilegalidade, e não é só a Shoshana Zuboff [professora aposentada de administração de negócio pela Harvard Business School, Ph.D. em psicologia social da Universidade de Harvard e bacharel em filosofia pela Universidade de Chicago] que está falando. No documentário, ela usa uma imagem muito forte, porque diz que na legislação, ou para nossa sociedade, o comércio de órgãos é ilegal, o comércio de escravos é ilegal. Quando fala exatamente isso, está equiparando esse mercado de dados ao mercado de escravos. Isso é muito pesado, pois ouvimos uma Ph.D. de Harvard.
E, de fato, a única alternativa é essa. A Lei Geral de Proteção de Dados, que foi uma invenção europeia – porque as plataformas não são europeias –, no fundo é uma legitimação desse processo. Eu não posso usar uma dessas plataformas se eu não concordo em ceder meus dados. No máximo ela me diz, pela lei, como está usando esses dados, mas se eu não quero que use os dados, não me permite o acesso. Isso porque esse é o valor que está criando, é daí que está extraindo.
Tudo bem, podem argumentar que o YouTube paga se conseguir tantos impulsionamentos no seu vídeo, mas paga uma miséria. O Facebook bota no próprio relatório financeiro dele que a renda média por usuário é de 20 dólares. Como ninguém paga nada para usar o Facebook, e ele diz que a renda média por usuário é de 20 dólares, significa que esse usuário que nada paga está gerando uma renda. Então, hipoteticamente, poderia fazer um acerto com o Facebook: pego dez dólares e a empresa fica com os outros dez. Até posso fazer isso, mas o modelo permanece. Esse é o tipo de debate que aparece em “O Dilema das Redes”.
Se é essencial, deve ser público
A única maneira realmente seria proibir o modelo, fazer dessas redes como algo público, mas isso hoje é uma verdadeira apostasia. Há mais de cem anos, alguém inventou a rede elétrica e ela se tornou tão necessária para a vida humana que passou a ser regulada pelo Estado. Pode até ser fornecida por uma empresa privada, mas existe uma lei, uma regulação pelo Estado. A mesma coisa a telefonia, que também passou a ser regulada pelo Estado. E na maioria dos países passou a ser fornecido pelo Estado, até a onda neoliberal do final do século passado, que privatizou tudo isso, porém, nos países civilizados, países democratas e capitalistas avançados, houve a privatização mas o Estado continua presente. É o caso do Brasil, ainda que, do ponto de vista institucional, telecomunicações ainda é um serviço público, está na lei, na Constituição. O Estado concede à iniciativa privada, agora se ele fiscaliza é outra história.
Veja o transporte urbano, a mesma coisa. O mínimo que se tem de ter aí é uma pesada regulação estatal em cima das plataformas. Estou escandalizado porque vi que, de repente, o Facebook está transmitindo jogo de futebol. Como? Existe uma lei, uma Constituição. Então, o Facebook está concorrendo com uma emissora de TV que é regulada, isso não pode. Tem que haver uma autoridade que diga na mesma hora: não e não. Ou então se muda a lei, tudo bem, mas se leva isso ao debate. Mas isso hoje não pode. Facebook é uma empresa estrangeira, com computadores lá fora e de repente está transmitindo jogos para 60 milhões de brasileiros.
Essas plataformas, Facebook, YouTube etc., no mínimo têm que ser reguladas pelo Estado, assim como há cem anos passamos a ter leis para energia elétrica, telefonia e uma série de serviços públicos. Essas plataformas viraram serviços essenciais. Veja o WhatsApp, virou serviço essencial. A partir do momento que 60 milhões de pessoas estão usando, virou serviço essencial. Brigar por regulação em cima das plataformas era o mínimo que se poderia fazer, ainda que num estado capitalista liberal. Agora, o máximo seria a proposta de Shoshana Zuboff: considerar o mercado de dados tão ilegal quanto o mercado de órgãos.