A formação em psicanálise

 

 

  

Formação em psicanálise / Transmissão da psicanálise

por Renata Udler Cromberg 

 

O que herdaste de teus pais

Adquire para que o possuas

O que não se usa

Um fardo é, nada mais

Pode o momento usar tão só

Criações suas. (Goethe – Fausto)

 

"A psicanálise simplifica a vida. Ela fornece o fio que leva um ser humano para fora do labirinto de seu próprio inconsciente."  (Sigmund Freud)

"Os poetas e os filósofos falaram do inconsciente antes de mim. O que eu fiz foi criar o método científico de abordá-lo."  (Sigmund Freud)

É curioso que Freud utilize apenas a metade do verso de Goethe, sem dúvida seu inspirador literário. A metade que ele utiliza, “o que herdaste de teus pais, adquire para que o possuas”, se refere ao processo que diz que uma herança só é absorvida se houver um processo ativo de apropriação através do reconhecimento das incorporações transformadas em absorções, introjeções, e finalmente, em identificações. Fala de possuir ativamente pelo processo de aquisição aquilo que se herda passivamente pelo suceder das gerações, seja uma herança biológica, genética, histórica ou fantasmática.

Talvez se possa dizer que o que Freud recorre a Goethe para falar do ser humano nós podemos falar também em relação à formação / transmissão da psicanálise.

Existe uma formação que se dá por uma decisão consciente/pré-consciente de apreensão de um método, a partir do famoso e tradicional tripé análise pessoal/supervisão/formação teórica (conceitual e metapsicológica), e uma transmissão a partir da determinação inconsciente que se expressa nas diferentes transferências ao longo da vida, que ocorrem na análise, na supervisão, na formação teórica, e que se dão de forma paradoxal, ao mesmo tempo determinada inconscientemente e sujeita ao acaso das contingências da vida.

O que já não é tão simples é a segunda parte do poema de Goethe, que Freud não utiliza em suas citações. O que não se usa um fardo é, nada mais.  Não é tão simples se livrar da parte que não queremos das heranças. Sabemos que isso diz respeito ao supereu e toda dialética narcísica, e sabemos o quanto o supereu atormentou Freud pelo tamanho de sua importância para o bem e para o mal.

O paradoxo do supereu. Ocupa metade do livro Mal estar na civilização, escrito por ele em 1929/30. “O que não se usa um fardo é:” Podermos nos desidentificar daquilo que oprime o desejo e que vem do mandato de uma herança que se manifesta pela compulsão a repetição, pela identificação maciça com o ideal de eu a partir do eu ideal. Essa desidentificação permite uma posição como sujeito do desejo, onde o ideal de eu é aquilo que propicia a ligação com o social, entre as pessoas, possibilitando o laço social através de um fazer singular desejante.

“Pode o momento usar tão só criações suas.”: aqui é o campo da singularidade, que só se dá como invenção criativa no momento presente. Veja a promessa de Goethe aqui: se você se desfizer do que não quer das heranças, nada além disso, se abre o campo das suas criações para o que você precisa, pode, quer no momento presente. E é a pulsionalidade que se expressa pelas criações singulares eróticas e sublimadas, no campo do corpo, da sexualidade e do social.

Não é muito difícil perceber que me posiciono pela liberdade em psicanálise nesse sentido goethiano/freudiano, e que as instituições, para mim, embora tiveram um papel de consolidação dogmática de um campo, como talvez seja sempre necessário nos primórdios, hoje em dia, em tempos de redes, devem propiciar, circulação, conexões, ampliações e ressonâncias, seja quais forem as vertentes de transmissão escolhidas por elas.

Vou tentar traduzir isso de maneira mais direta, a partir de meu percurso naquilo que penso serem as bases da formação/transmissão.

A formação deve ter uma base sólida freudiana. Aqui já há uma diferença, por exemplo, das Sociedades de Psicanálise Inglesas, cuja base é pensamento analítico de Melanie Klein, onde o pensamento analítico freudiano passa a ser uma curiosidade secundária. Entendo que os pilares da psicanálise são A Interpretação do sonhos e os Três Ensaios para uma teoria sexual; o livro de Freud O mal estar na cultura — talvez o livro mais importante do século XX e que é imprescindível — o conhecimento da Metapsicologia e dos escritos técnicos; os escritos em que Freud percorreu o  caminho da tópica, dinâmica e economia, e realizou seu percurso na teoria das pulsões.

Considero que ler Lacan, Klein e Winnicot dogmaticamente para dar apenas o exemplo de autores pós – freudianos que se destacaram e formaram escolas sem mais do que uma referencia secundária a Freud, pode produzir ao mesmo tempo um dogmatismo tranquilizador, quando produz uma identificação benigna de compreensão de conceitos, mas pode produzir uma identificação maligna, quando impede a criação singular. Já uma posição anti-dogmática na formação, permite liberdade, circulação, historicização, pluralidade, singularização, o que não quer dizer ecletismo e sim estar exposto a um campo de criação simbólica múltipla, baseado em certos conceitos fundamentais como inconsciente, pulsão, transferência e repetição, para poder filtrar sua própria posição como analista.

O percurso teórico, metapsicológico nos conceitos psicanalíticos deve ser detalhado. Pode ser em grupo de estudos. A necessidade de uma formação institucional vem muito mais da validação do ofício, da circulação e na afirmação de um campo na sociedade. A formação depende de leitura, que é pessoal e intransferível, marcada pelas próprias questões. Isso se dá na formação institucional ou em paralelo a ela.

Minha experiência como coordenadora de grupos de estudos semanal ou quinzenal é que ele cria um campo onde cada participante vem com as suas questões, o fio da sua tessitura, que junto aos outros fios fazem um percurso a cada vez, que cria um texto grupal onde cada um, ao final, recolhe a seiva de seu próprio percurso, numa rica experiência ao mesmo tempo grupal e singular, que impede fenômenos de massa grupal.

Já a experiência analítica pessoal fala de uma identificação, uma desidentificação e uma diferença o tempo todo em ação entre analista e analisante. Este termo evoca para mim o quanto quem faz análise está em ação trabalhando junto com um analista que segue um percurso analítico, dando suporte à transferência. A ética do psicanalista e da psicanálise para aquele que descobre seu desejo de analisar em sua análise não deveria levar a uma identificação egoica ou superegoica com o analista no sentido de pertinência obrigatória a sua instituição psicanalítica de origem, ou adquirir seu modo de ser analista.

O mesmo vale para as experiências de supervisões que são lugares de uma escuta especial sobre a prática clínica de um analista, e não lugares de uma super visão com todo o séquito de inibições que a idealização transferencial traz. As supervisões em grupo são também a possibilidade de vários inconscientes estarem contribuindo para a compreensão de um caso clínico com a continência transferencial do supervisor coordenador. Vários fios tecendo uma compreensão que incide portanto não apenas no analista supervisionado, mas em cada um dos participantes.

Uma última palavra sobre dois polos cada vez mais presentes na formação do psicanalista: a importância da Clínica Ampliada e do dispositivo grupal.

Há intervenções psicanalíticas em diversas formas de dispositivos grupais em várias formas institucionais. Há uma história da psicanálise em grupo, com grupo, através do grupo, e um rico desdobramento conceitual a partir disso. Os psicanalistas, ao longo do tempo, transformaram a materialidade do divã em uma figura de metáfora — um divã com asas —  a ser transportada a qualquer situação onde a associação livre e a atenção flutuante demandem novos dispositivos grupais para se reinventarem além da neurose: psicose, borderline, adolescentes difíceis, crianças autistas, explosivas, bebes, famílias, psicossomática, desafios pedagógicos e a própria neurose em tempos difíceis ou novos.

Estamos já longe da ideia inicial freudiana de que a psicanálise seria o ouro puro e a psicoterapia realizada em Clínicas públicas seria o cobre da psicanálise. Talvez esta colocação se deu num tempo de institucionalização da psicanálise, onde o dogmatismo e a centralização se tornaram necessários para a constituição de um campo novo de conhecimento e prática. A partir mesmo do ensaio freudiano Psicologia das massas e análise do eu, de 1922, vemos que a grupalidade está presente no trabalho de divã no consultório a dois, ou em trabalhos grupais em consultório ou clínica ampliada.

Eu é outro. A constituição do eu se dá por identificações múltiplas e por isso cada um carrega em si múltiplos grupos constitutivos através de sua história singular. Quando algo falha nesse tecido de base, há que ser reconstituído ou criado com inventividade, numa aposta de que algum laço social é possível, um vínculo de pertencimento com o outro, em algum grupo. Esta aposta é na mutação do sofrimento e da dor para que o existir, o ser, a vida pulsional faça sentido e um projeto desejante possa desenhar uma singularidade, nas suas ínfimas grandezas cotidianas. Conservando uma abertura ao sempre incerto do encontro, prenhe de criações ou frustrações, todo grupo, diante de um escopo, de uma tarefa, cria um inconsciente grupal com conteúdos fantasmáticos e defesas que possibilitam ou impedem o grupo de realizar o que se propõe, que é outro do que a somatória de inconscientes singulares.

O que leva ao paradoxo das instituições psicanalíticas: organizadas em grupalidades de formação, pesquisa, produção escrita e oral, atendendo demandas variadas e mutantes da saúde mental na cidade, mas siderando fantasmas grupais ou da comunidade psicanalítica.

Cada vez que a formação/transmissão acrescenta folhas novas, vivificando a seiva que corre na árvore da comunidade psicanalítica, esta se afirma como a possibilidade de algo em aberto, não cristalizado, que está sempre em constituição. 

 

Fonte: https://revistalacuna.com/2017/04/28/n3-07/?fbclid=IwAR0Y_NrL8Wi8YxeK3Ozmfc650MLcRMwAtCsVdNmUTxNb_2nzYxjp6YoZ7Co

 

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