Faróis, verdades e ilusões
AQUELES QUE (DES)NORTEIAM A CIÊNCIA
Por André Islabão em Medicina e saúde
“Siga a ciência!” Este foi o mantra mais ouvido nos últimos anos. Ele supõe várias coisas, nem todas elas totalmente corretas. Em primeiro lugar, sugere que a ciência saiba para onde está indo e tenha algum rumo predeterminado de evolução constante e sempre positiva. Sob este ponto de vista teleológico, já temos exemplos de sobra de que nem todo avanço científico e tecnológico traz apenas benefícios para a humanidade. A talidomida e a própria bomba atômica estão aí para justificar este ponto de vista e um certo grau de parcimônia.
Em segundo lugar, a ideia da ciência como uma enorme fonte de luz não é perfeita. De certo modo, a verdade é exatamente o contrário. Sócrates já dizia isso com o seu “só sei que nada sei”. Quanto mais descobrimos, mais percebemos o que ainda falta conhecer. O campo de estudo das ciências é na verdade um imenso breu em que, aqui e ali, vê-se tênues fachos de luz de potência e duração variáveis. É talvez a isso que se refira um outro famoso lema que fala das “luzes da ciência”. Na verdade, essas luzes servem para guiar as pessoas próximas – outros pesquisadores da área – e acabam por oferecer uma ilusão de domínio sobre a natureza e suas verdades.
É por isso que a ciência é tão importante em nossas vidas e para o futuro da humanidade, pois ela pode mudar nossos rumos – para pior ou para melhor. Isso é o suficiente para justificar um maior cuidado com quem seja responsável por esses fachos de luz que nos guiam pela escuridão da ignorância. Essas pessoas – os cientistas ou pesquisadores – devem ser pessoas do mais alto nível de integridade ética, que se mantenham absolutamente fiéis ao compromisso de investigar maneiras de melhorar a vida da humanidade e completamente blindadas contra as investidas do poder econômico ou político que tente usar a força da ciência para obter benefícios para si em detrimento da sociedade como um todo.
A ciência médica está bem longe de ser este paraíso de integridade ética e moral. Em que pese o esforço de muitos pesquisadores independentes e sérios, a ciência é uma empreitada custosa em termos pessoais e financeiros. Assim, a incompetência de nossos administradores aliada à ganância e oportunismo da indústria levou ao desmonte crescente da ciência financiada por fontes públicas e independentes, o que fez com que grande parte das pesquisas de interesse público passassem a ser financiadas e conduzidas pela própria indústria, resultando em uma crescente distorção de toda a nossa base de conhecimentos científicos. De certa forma, a ciência passou a servir a ela mesma mais do que à sociedade a que deveria servir. É uma nova ciência que parece ter como objetivo principal a sua autopreservação e o lucro das empresas patrocinadoras. Era de se esperar uma resposta mais enérgica da sociedade e da própria comunidade científica, mas esta insiste em calar enquanto aquela nem percebe a gravidade do problema.
Há algumas décadas, o alemão Siegfried Lenz escreveu o livro O barco farol. Nele é contada a história de um barco farol que servia de referência para todos os outros barcos que navegavam pelas redondezas. Em determinado momento da história, o barco farol é invadido por piratas que tomam o controle do barco sem que isso seja percebido pelos navegadores das outras embarcações. Como continuam a receber os sinais de luz do barco farol, os outros navegadores seguem tranquilos e acreditam que segue havendo ordem no mar. Pouco importa se a direção que estejam tomando é a correta ou se as pessoas no comando do barco farol tem intenções louváveis. Esta ilusão de ordem e de controle serve como um estupefaciente substituto para a verdade e como um efetivo abortador de rebeliões. Mas esta aceitação coletiva da referência do barco farol é apenas isto, e está longe de ser uma verdade absoluta ou uma realidade desejável. A nossa ciência médica está em situação muito parecida. Ao passarmos o timão da ciência para as mãos da indústria, perdemos totalmente o rumo. Ainda podemos recuperar o controle, mas o naufrágio pode estar mais próximo do que imaginamos.
Fonte: https://andreislabao.com.br/2022/03/06/aqueles-que-desnorteiam-a-ciencia/?fbclid=IwAR3Sw_Yy1oJh3Sj3qnO99djdHxR2_VCudsac6eF6XoYujxVZqYklrZKWPtQ