Existe o livre arbítrio?

Novas pesquisas tentam provar que o livre-arbítrio não existe: as decisões seriam tomadas automaticamente por nosso cérebro e não teríamos controle sobre isso. Entenda o que diz a neurociência sobre seu poder de decidir sobre sua a própria vida.

por: Rafael Tonon

Você pegou esta edição de GALILEU, deu uma olhada na capa e folheou a revista até que resolveu ler este texto. Talvez tenha pensado em tirar os sapatos ou tomar um copo d’água antes. Mas o fato é que você não decidiu nada disso. “Você pode pensar que fez escolhas, mas sua decisão tanto de ler este texto quanto de comer ovos ou pão no café da manhã foi tomada bem antes de você pensar sobre isso”, afirma o professor do Departamento de Ecologia e Evolução da Universidade de Chicago Jerry Coyne, um dos defensores mais fervorosos da ideia de que nossas escolhas não são determinadas por nossa vontade. Seu cérebro tomaria todas as decisões automaticamente, sem passar pelo seu conhecimento. “Nenhuma escolha é livre e consciente. Não existe livre-arbítrio”.

As palavras de Coyne podem soar radicais, mas encontram eco em uma ala de neurocientistas que vem se dedicando a estudar e divulgar como o processo de decisão está aquém de nossos desejos conscientes. “Nossas decisões são programadas automaticamente a partir do que trazemos em nossa carga genética e das experiências de vida que tivemos. Quando uma questão chega à nossa consciência, ela já havia sido previamente decidida em uma parte de nossa mente a que não temos acesso”, afirma o neurocientista e professor da Universidade da Califórnia Michael Gazzaniga, autor de Who’s in Charge (Quem Está no Comando, ainda sem edição no Brasil, relançado em novembro do ano passado nos EUA).

O livro — uma compilação de pesquisas recentes que apontam para nossa falta de controle sobre as escolhas — é o terceiro de uma leva recente sobre o tema, que também atraiu os neurocientistas americanos David Eagleman, autor de Incógnito – A Vida Secreta do Cérebro (lançado em 2012 tanto lá fora quanto aqui), e Sam Harris, um dos grandes expoentes da teoria ateísta, em seu Free Will (Livre-arbítrio, sem edição no Brasil, que chegou ao mercado americano em março do ano passado). “Não temos a liberdade que pensamos ter”, afirma Harris. Entenda o porquê a seguir.

Depois de 60 anos de estudos, a principal tese de Gazzaniga é que o lado esquerdo de nosso cérebro é um grande contador de histórias. É ele que dá significado a nossas experiências, memórias e fragmentos de informação e, inclusive, às nossas decisões. Mas não seria o responsável pelo ato de decidir propriamente. Essa função ficaria com o hemisfério direito, onde estão gravadas as informações genéticas e de vivências anteriores. É ali que o cérebro pegaria o atalho para fazer a escolha, baseado em padrões existentes. “Quando interpretamos os fatos, acreditamos que fomos nós que pensamos ou que decidimos aquilo. Quando, de fato, não fomos — ao menos não em nível consciente”.

O hemisfério esquerdo — que Gazzaniga chama de interpretativo — buscaria uma explicação para tudo que se passa em nossa vida: seja o término de um namoro, a conquista ou perda de um emprego. É esse momento, na verdade de justificativas, que confundimos com o pensar e ponderar para, então, decidir. Isso é o que criaria em nós a ilusão de que temos domínio sobre nossas escolhas.

Gazzaniga conseguiu demonstrar o ponto pela primeira vez em um experimento em 1962, que marcou sua pesquisa na área — e revolucionou os estudos neurocientíficos. Ele trabalhou com um paciente de cérebro partido — devido à epilepsia, ele tinha passado por uma cirurgia de seção no corpo caloso, principal via de neurônios que conecta as duas metades do cérebro e, portanto, não tinha comunicação entre os hemisférios direito (responsável pelos sentidos, como visão e audição) e o esquerdo (onde a linguagem está centralizada).

O cérebro de qualquer pessoa funciona, digamos, de maneira cruzada. Quando ativamos, seja o braço direito ou o nosso campo de visão direito, os estímulos são recebidos pelo lado oposto do cérebro, no caso o esquerdo — e vice-versa. Ou seja, é possível isolar o estímulo cerebral somente para um hemisfério sem muita dificuldade. Foi o que Gazzanigga fez. Ele mostrou um pé de galinha para ser assimilado pelo hemisfério esquerdo do cérebro (que só viu essa imagem) e uma cena de neve pelo direito. Quando o esquerdo era estimulado, o paciente conseguia falar o que via. Quando era o direito, dizia não ver nada, apesar de o cérebro estar registrando a imagem, o que o pesquisador comprovou por escâner. Estava demonstrado que o lado esquerdo é que traz à nossa consciência o que a gente percebe.

Gazzaniga, então, pediu ao paciente para escolher uma imagem dentre muitas colocadas sobre uma mesa, já podendo olhá-las com os dois olhos. Uma das mãos apontou para uma pá e a outra para uma galinha. Ao justificar as escolhas, o voluntário disse que a galinha combinava com o pé de galinha que ele havia visto antes. Quando percebeu que também tinha apontando para uma pá, a justificativa veio mais que prontamente: “E você precisa da pá para limpar as penas da galinha”. O paciente não sabia nada sobre a cena da neve, mas teve que arranjar uma forma de explicar a pá, que remetia a ela, apontada por seus próprios dedos. Isso é o que faríamos ao tentar justificar uma decisão, na verdade, já tomada de forma automática.

No ano passado, o pesquisador fez uma nova versão do estudo, dessa vez com nove pacientes normais e usando um aparelho para monitoramento constante do cérebro. Ele observou nas imagens o hemisfério esquerdo fazendo conexões e criando justificativas para letras e figuras que haviam sido estimuladas no lado direito. “O hemisfério esquerdo manipula um pouco as coisas para permitir que uma história faça sentido”.

É assim quando você compra um sapato de que não precisava e diz que foi por causa da liquidação, ou quando tenta se convencer de que escolheu um hotel em detrimento do outro, apesar de mais caro, porque era mais bem localizado. Na verdade, o embasamento para essas escolhas não estaria na razão, mas na misteriosa fábrica de justificativas que se encontra nos rincões obscuros de nossa mente.

PILOTO AUTOMÁTICO

Quando você nasce, seu cérebro (como um hardware) vem com uma programação genética que foi assimilada por gerações anteriores. Instintos e reações, como sobrevivência ou medo, estão instalados ali, de fábrica. Conforme você se desenvolve, aprende a copiar o comportamento de pessoas próximas, como seus pais, ou passa a assimilar as melhores formas de fazer as coisas na base da tentativa e erro.

Tudo isso é material que vai sendo absorvido pelo cérebro, como novos programas que você instala em um computador. E será usado na hora de fazer uma escolha. “O cérebro guia o comportamento de maneira conveniente. Não importa se a consciência está envolvida na tomada de decisão. E na maior parte do tempo, ela não está”, afirma Eagleman. Tanto é que você não pensa para respirar, comer, andar, amarrar os sapatos e nem para escolher um parceiro amoroso.

Em Incógnito, Eagleman narra um experimento que mostra bem como somos programados para certas escolhas. Um grupo de homens foi solicitado a analisar fotos de mulheres e dizer quais acharam mais atraentes. A maioria escolheu mulheres com os olhos dilatados. “No cérebro, em grande parte inacessível, algo dizia que os olhos dilatados de uma mulher têm correlação com a excitação e a disposição sexual”, diz Eagleman.

Isso pode vir tanto de herança genética de antepassados quanto de experiências de ter estado com mulheres excitadas e, logo, com as pupilas dilatadas. Ou uma junção de ambos. “Os cérebros dos voluntários sabiam disso, mas eles não”, afirma o pesquisador. Os homens até tentaram justificar de outras maneiras suas escolhas, mas era tarde demais, o lado inacessível do cérebro já havia decidido por eles. Aliás, o que coloca hemisfério direito em posição de chefia é justamente uma questão de timing. Ele é mais ágil e dita as respostas antes.

Essa diferença foi demonstrada em um experimento conduzido no Centro Bernstein para Neurociência Computacional, em Berlim, em 2008. Os cientistas colocaram voluntários em frente a uma tela onde letras surgiam aleatoriamente. Eles deveriam apertar um botão para dizer qual era a letra assim que aparecia — em uma dinâmica semelhante a um quiz de TV em que se dá uma resposta a uma pergunta do apresentador.

Ao monitorar o cérebro dos participantes, os pesquisadores observaram que as duas partes que indicavam qual botão os voluntários iriam apertar se mostravam ativas até 7 segundos antes da ação. “Antes de você tomar consciência do que fará em seguida — tempo em que você teoricamente teria a liberdade de fazer o que bem entendesse — seu cérebro já determinou o que será feito. Só depois você toma consciência dessa ‘decisão’ e acredita que está no comando dela”, afirma Harris.

Para o autor de best-sellers sobre ateísmo e criador da fundação Project Reason — que propaga o conhecimento científico em detrimento da visão religiosa —, o conceito popular de livre-arbítrio está ligado a duas presunções: a de que cada um de nós poderia ter agido diferente em alguma situação do passado ou a de que somos a força consciente de muitos de nossos pensamentos e ações no presente. “O que a ciência do cérebro tem constatado é que ambas são falsas”.

Mas o resultado dessas pesquisas científicas podem não ser suficiente para entedermos o funcionamento do cérebro como um todo. Por isso, o professor de filosofia e neurociência da faculdade de Georgia State, nos EUA, vê todas essas conclusões com cautela. Para ele, há decisões muito mais complexas do que qual botão apertar ou dizer que imagem se vê numa tela, e poderíamos funcionar de maneira diferente em outras situações. “Os neurocientistas enumeram esses estudos para mostrar que o cérebro faz tudo sozinho, e, portanto, a mente consciente não tem papel”, afirma. “Por que, então, teríamos a mente consciente?”. O fato é que o livre-arbítrio pode (ou não) ser uma ilusão. Se for, talvez seja necessária.

POR FAVOR, ME ENGANE

A ideia de liberdade de escolha foi propagada pela primeira vez por Santo Agostinho (354-430) em O Livre-Arbítrio, texto em que defendia que Deus criou o homem livre para fazer suas escolhas — e a ele cabia eleger entre o bem e o mal. Desde então, o tema se tornou recorrente na religião e também na filosofia (veja na linha do tempo abaixo), espalhando a crença de que podemos definir nosso destino. Essa ideia persisite e vem sendo investigada pelo professor de filosofia e psicologia do Charleston College, na Carolina do Sul, EUA, Thomas Nadelhoffer. Ele conduz um estudo para identificar que noção de livre-arbítrio as pessoas têm hoje.

A definição mais recorrente até agora — dada por cerca de 70% dos dois mil entrevistados — é a de que livre-arbítrio é nossa capacidade de fazer escolhas diferentes, mesmo que tudo que antecedesse nossas decisões (por exemplo, o passado, a genética, as crenças, etc.) fosse exatamente igual. Ou seja, o oposto do que a neurociência vem se esforçando em provar. “Ainda que os cientistas concluam por certo que não temos livre-arbítrio, acreditar nele ainda pode ser uma ‘ilusão positiva’”, afirma Nadelhoffer.

O filósofo afirma que evidências científicas têm mostrando que pessoas submetidas a ideias antilivre-arbítrio são mais propensas a trapacear e se tornarem agressivas. “Já os que creem na liberdade de escolha aprendem a lidar melhor com as próprias emoções e são mais caridosos”, afirma. Em um estudo de 2010, os psicólogos sociais americanos Roy F. Baumeister e Tyler F. Stillman incentivaram pessoas a ler uma série de declarações que reforçavam o livre-arbítrio, como: “Eu sou capaz de substituir os fatores genéticos e ambientais que influenciam, por vezes, o meu comportamento”. Outro grupo de participantes, porém, foi solicitado a se debruçar sobre uma série de afirmações deterministas, incluindo: “A crença no livre-arbítrio contradiz o fato conhecido de que o Universo é governado por princípios legais da ciência”.

Em seguida, os participantes tinham que recordar de algum episódio de suas vidas em que sentiram culpa e avaliar (em uma escala de 1 a 7) o grau dessa culpa. Os que tinham lido as declarações a favor do livre-arbítrio deram notas mais altas para a culpa. “Os influenciados pelo determinismo foram levados a acreditar que pouco poderiam ter feito para mudar o curso dos eventos”, afirma Baumeister, que é professor de psicologia da Universidade do Estado da Flórida. Já os que seguiram a crença da liberdade de escolha tendiam a se responsabilizar mais pelos próprios atos e a refletir sobre eles — inclusive pensando em como fazer diferente em uma próxima vez.

COLAPSO SOCIAL?

O fim da crença na liberdade de escolha poderia afetar a maneira como as pessoas agem em suas vidas, mas também ter um profundo impacto na sociedade e nas leis, quando se assume que as escolhas são guiadas pela genética e experiências pessoais, como definir, por exemplo, a pena de um criminoso. “A pessoa que comete um ato de crueldade também poderia ser vista como vítima de sua biologia e de sua história”, afirma o Ph.D em psicologia pela Universidade Cambridge Simon Baron-Cohen, que defende uma forma mais relativa de culpabilizar as pessoas, já que a ciência vem mostrando que elas não estão no comando do que fazem. “Isso nos levaria não apenas a puni-las, mas a ajudá-las.”.

A ideia encontra seus poréns, mas não deixa de levantar uma reflexão sobre como a sociedade atual responsabiliza os indivíduos por seus atos. “O risco quando não se crê na liberdade de escolha está na punição ao produzir uma obediência externa, mas não uma consciência ética interna, reflexiva”, afirma Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na USP. Impor uma punição a alguém sem que essa pessoa tenha a capacidade de se arrepender e refletir sobre suas atitudes — porque crê que elas foram predeterminadas por fatores fora de seu controle — pode não ter muita valia.

Por outro lado, se a partir de hoje qualquer um pudesse matar ou roubar com base no argumento simplista de que “meu cérebro me mandou fazer isso”, a sociedade entraria em colapso. Mas Gazzanigga não acredita que isso irá acontecer. “Embora nossa consciência não esteja no comando como pensávamos, nosso cérebro automático é capaz de apreender regras sociais”, afirma o pesquisador. “Inclusive, elas ajudam a criar as experiências que vão proporcionar as nossas decisões futuras, mesmo que elas sejam automáticas”.

É fato. A ciência se esforça para mostrar que estamos menos no comando do que poderíamos supor. Nosso cérebro seria uma máquina orgânica programada com uma espécie de software em que os bits são nosso código genético e experiências vividas, que lançam respostas automáticas e rápidas, que só mais tarde chegam à nossa consciência. Mas, ainda assim, esse cérebro imediatista faz parte do que somos e, no fim das contas, somos um todo. Você pode estar menos no controle do que imaginava — mas continua sendo você o dono de sua própria vida.

 

Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI334301-17773,00-VOCE+NAO+ESTA+NO+COMANDO.html

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