Somos responsáveis pela nossa saúde mental?

Bate-Papo com o neurologista Fabiano Moulin de Moraes, especialista em Cognição e Comportamento

Por Juliana de Moraes e Renan De Simone

Afinal, qual é a nossa parcela de participação pela saúde da mente? De acordo com o médico Fabiano Moulin de Moraes, coordenador do Laboratório de Neurologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e especialista em Cognição e Comportamento, estudos sobre o cérebro tiveram avanços significativos e indicam: somos mais responsáveis por nossa saúde mental do que imaginávamos e, portanto, é realmente preciso atenção aos estímulos, hábitos e rotinas que adotamos.

Nesta entrevista, ele, que é professor da Casa do Saber, organização que promove cursos para disseminação do conhecimento e cultura em SP, aborda o tema, que envolve Psicologia, Psiquiatria, Neurologia e Neurociência – bem como suas vertentes –, pois são as áreas que se dedicam a estudar o órgão, que além de atuar como o comando central de nosso corpo, é o grande responsável pelo processamento de todas as nossas ideias e sentimentos.

Para Moulin de Moraes, alimentar e treinar o corpo, o intelecto e os sentimentos de forma adequada e com equilíbrio são determinantes para a saúde integral da criança, do jovem, do adulto e do idoso, atentando ao fato de que o processo de envelhecimento biológico do homem começa “relativamente cedo”, aos 30 anos. Prepare-se, a seguir, para mergulhar nesse universo, um tanto presente e ao mesmo tempo desconhecido, que é o nosso cérebro:

Sincodiv-SP Online: Muitas vezes tratamos o cérebro como se fosse um órgão que funciona de forma dissociada do resto de nosso corpo... O que você pensa sobre isso?

Fabiano Moulin de Moraes: A ideia de separar o cérebro do resto do corpo está completamente errada. Pessoas estressadas têm maior risco de enfartar, ter AVC (acidente vascular cerebral), assim como doenças inflamatórias (intestinal ou como o lúpus, a atrite reumatoide, que são exemplos) também causam dano cognitivo e já se sabe disso comprovadamente.

Somos um único organismo e é importante que tenhamos essa consciência. No caso do Alzheimer*, a atividade física tem a capacidade de retardar ou impedir o aparecimento de sintomas da doença em até 50% dos casos. A alimentação mediterrânea (baseada em legumes, frutas, vegetais, nozes, peixe e grãos integrais) é preventiva para essa doença também. Já o aprendizado de uma nova língua retarda em cinco anos o surgimento dos sintomas.  

A depressão, um outro caso, pode ser tratada tanto com meditação, como com atividade física e remédio. A evidência é igual para as três formas de tratamento. O difícil é convencer o depressivo a fazer exercício ou meditar, mas em grupos de apoio a evidência de eficácia no tratamento já foi constatada.

Sincodiv-SP Online: E quanto à educação da mente, o que se pode afirmar?

Fabiano Moulin de Moraes: Na escola, a gente tenta exercitar muito bem o lado racional, mas quase ninguém busca ensinar como lidar com sentimentos, tais como frustração e outros, que demandam habilidades diferentes para uma adequada solução. Hoje, em algumas escolas, a meditação passou a fazer parte da grade de ensino/atividades justamente por possibilitar ganhos na área de relacionamento das crianças.

Ações simples, mas que precisam ser ensinadas, podem fazer a diferença. Quando uma criança se sente emocionalmente atrapalhada, ela pode ser orientada a ir para um canto até que fique mais calma. Verbalizar ou escrever o que se sente é um exercício muito bom. Parece bobo, mas o fato é que ajuda a ligar os circuitos do eu racional com o eu emocional. São circuitos muitos distintos, mas a gente pode chegar lá.

O que ocorre é que a sociedade acaba canalizando muito para a área de diplomas, que responde apenas por uma pequena parcela de tantas habilidades às quais devemos nos dedicar.

A vida não cabe no Lattes (currículo)! A afirmação é de Daniel Goleman, psicólogo criador da Teoria da Inteligência Emocional. Habilidades sociais são mais do que necessárias para nosso desempenho profissional e também na construção de relacionamentos pessoais saudáveis.

É muito importante que antes de eu pensar em mim, eu tenha a capacidade de compreender você e fazer mudanças no meu comportamento, conforme observo o seu estado atual. Trata-se de jogo de cintura para se adequar às diversas situações que impactam sobre minha saúde. 

Em faculdades dos Estados Unidos, a Inteligência Emocional, inclusive, já passou a fazer parte de uma das cadeiras a serem estudadas. Não basta mais saber quais glândulas produzem quais hormônios. Hoje, sabe-se que o comportamento e o ambiente e hábitos interferem diretamente no funcionamento dos órgãos, mudando seus padrões, com impacto para a saúde metabólica.

Sincodiv-SP Online: Há pessoas mais atentas aos sinais do corpo do que outras, que só percebem um problema, por exemplo, quando a doença está em estado avançado. O que as diferencia?

Fabiano Moulin de Moraes: Nossas percepções estão vinculadas à atenção. Se sua atenção está sempre para fora, é muito difícil observar sinais internos do corpo, seja de um fígado que está funcionando mal ou de um coração que está grande e causa falta de ar. Muito do controle sobre a vida está na atenção e a meditação promove isso, esse olhar para dentro.

Monges budistas, com muitas mil horas de meditação, são capazes de modificar sua frequência cardíaca. Eles chegam a um nível de compreensão da linguagem corporal que pouquíssimas pessoas possuem. Daí vem a percepção de que dependemos de múltiplas inteligências para promover nosso desenvolvimento e envelhecimento saudável.

Não é simples. No mundo, somos invadidos por estímulos e condicionamos o cérebro a um vício por novidades. Não consigo prestar atenção em mim porque tem pouca coisa nova. Então, vou como um viciado – e isso é possível, hoje, medir por meio de exames –, buscar mais estímulos.

É um exemplo totalmente esdrúxulo, mas que tem tudo a ver com isso. Alguns meninos adolescentes de hoje, por exemplo, que tiveram acesso a vídeos de pornografia, não conseguem ter ereção com mulheres reais. É literalmente como se eu criasse uma criança com batata frita e depois oferecesse alface para ela comer.

Trata-se de moldar de forma inadequada o cérebro. Por isso que é criminoso oferecer doce, refrigerante, etc. para crianças antes dos três anos. Induz-se ao um erro de plasticidade, de adequação do cérebro.

Sincodiv-SP Online: Como é possível, portanto, ensinar e treinar a atenção?

Fabiano Moulin de Moraes: Com a atenção, a situação é semelhante à da experimentação alimentar. Se não experimento e vivencio o tédio, o que é simples (e muitas vezes considerado sem graça), não espere que consiga atenção quando ela é pedida, não espere que se tenha discernimento para uma consciência alimentar quando ela é necessária.

Aí vem, muitas vezes, um problema de educação que se transforma num diagnóstico de déficit de atenção e hiperatividade. O cérebro é muito aberto ao ambiente, mas preciso estar exposto a situações às quais a vida vai proporcionar para que seja capaz de me adequar a elas.

Não adianta controlar a inquietação da criança com um Ipad e depois querer que essa mesma criança seja capaz de se manter quieta por cerca de uma hora em sala de aula.

Ou a gente adequa a sociedade desde o começo ou adequa depois... com tratamentos voltados ao aparecimento de doenças contornáveis (ou não), que nos obrigam a medidas de ajuste.

Sincodiv-SP Online: O que acontece quando há excesso de estímulos ao cérebro?

Fabiano Moulin de Moraes: Um cérebro movido a estímulo depois de estímulo é um cérebro que começa a ficar mais ansioso, que costumeiramente percebe insatisfação, ficando mais vulnerável à depressão. Não é capaz de valorizar suas conquistas porque percebe tudo de forma tão banal...

O cérebro é moldado. Existem características da genética de cada um, sim, mas na ampla maioria das vezes é possível orientar a forma como ele se desenvolve. E, insisto, a meditação faz isso de forma maravilhosa!

Se pego uma pessoa que jamais meditou e ela o faz por 15 minutos durante quatro semanas, quando faço a ressonância do cérebro, identifico outro órgão, bem diferente daquele que havia mapeado antes da prática. É um cérebro capaz de postergar a gratificação, mais motivado, mais focado.

A atividade física é outro meio para se alcançar saúde da ponta do cabelo ao dedo do pé. Previne quase todas as doenças, tanto na construção da saúde de uma criança como na preparação para uma velhice saudável. Tudo está ligado!

Sincodiv-SP Online: O cérebro envelhece da mesma forma que o resto do corpo?

Fabiano Moulin de Moraes: O cérebro começa a envelhecer bastante cedo!  As mudanças são muitas ao longo da vida. E, nesse processo, manterei os conhecimentos de uma vida inteira, minha enciclopédia.

No entanto, algumas áreas perdem capacidade. É o caso da habilidade para aprender uma língua. É muito mais fácil aos cinco anos do que aos 50. Perdemos a velocidade de processamento e de alterar entre os assuntos, assim como o tempo de atenção.

A plasticidade do cérebro fica reduzida, mas não o incapacita. É justamente essa abertura à novidade e capacidade de adequação que caracterizam, no entanto, o cérebro saudável.

O que não é normal é perder a capacidade de aprendizado.

Sincodiv-SP Online: A partir de quando, nosso cérebro começa a envelhecer, do ponto de vista biológico?

Fabiano Moulin de Moraes: O volume cerebral começa a mudar a partir de nossos 30 anos, o que parece ser cedo, mas não é, uma vez que ampliamos a nossa longevidade muito nos últimos três séculos e sabemos que na natureza, sem acesso aos recursos que hoje temos disponíveis, provavelmente ninguém viveria longamente.

No entanto, hoje, chegamos aos 80, mas somente até os 30 anos a gente chega com facilidade, fazendo absolutamente o que quiser. Depois, passamos, do ponto de vista biológico, para um regime de exceção. Então precisamos ter atitude de exceção, privilegiando as ações que visam o benefício no longo prazo e não no curto.

É o caso da dieta saudável, da atividade física na rotina, do sono bem dormido. Tudo isso, do ponto de vista prático do cérebro, é ir contra prazeres imediatos...

É muito difícil resistir ao cheesecake, por exemplo, se você não projetar que planeja ir à praia e ficar à vontade com seu corpo, por exemplo. É o pensamento de médio e longo prazo que deve prevalecer para que haja um envelhecimento saudável.

Sincodiv-SP Online: O fator genético pesa muito na forma como acontece o envelhecimento mental das pessoas?

Fabiano Moulin de Moraes: A normalidade do cérebro depende, sim, de vários mecanismos genéticos, que vão responder por cerca de 50% de sua saúde nesse processo, mas 50% está intimamente ligada à nossa rotina.

Uma das coisas mais negligenciadas na saúde é o ronco, que aumenta o risco de enfarto, doenças cardíacas em geral, AVC e até Alzheimer (doença que está ligada à saúde vascular também).

A gente precisa dormir porque o cérebro depende do sono para manter sua memória. Noites mal dormidas afetam o ânimo e toda a saúde, levando a uma série de doenças.

Então, temos uma responsabilidade enorme no contexto da saúde mental porque somos responsáveis por metade da parcela de saúde que teremos ou não a depender de nossos hábitos. É muita coisa!

Sincodiv-SP Online: Você mencionou a rotina como fator para a saúde. Qual o papel do hábito para a organização das ideias e para a saúde cerebral?

Fabiano Moulin de Moraes: O hábito é uma saída genial do cérebro. A partir do momento que um hábito é estabelecido, você libera vários neurônios para outros fins. Por exemplo, o ato de falar. Quando você está aprendendo um idioma, é tão difícil no início, mas tão logo você alcance fluência, sequer lembra que é necessário estruturar frases, simplesmente o faz.

É como dirigir. Quantas vezes, quando estamos cheios de questões na cabeça, chegamos em casa e nem lembramos exatamente como fizemos. A ação passa ao automático. Deixa de passar pela consciência.

O hábito, portanto, nos possibilita aprender novas coisas. O problema é que quando uma ação se transforma num hábito, meu poder sobre ela fica bem reduzido. É mais difícil mudar.

O livro O Poder do Hábito, do jornalista Charles Duhig, fala exatamente sobre o que acontece no cérebro da gente nesses casos. O hábito em si não importa tanto, mas sim os gatilhos do antes e do depois (da recompensa) para que modifiquemos rotinas arraigadas e consigamos melhorar hábitos. É a Neurociência que explica isso.

Sincodiv-SP Online: E a novidade. Qual a sua função para a saúde cerebral?

Fabiano Moulin de Moraes: A plasticidade (de adequação ao meio) e a flexibilidade são pouco recorridas nas ações habituais, por isso as dicas que são bastante conhecidas, como fazer um caminho diferente vez ou outra, conhecer novos grupos de pessoas, pegar a escada em vez do elevador, viajar, etc. são importantes na medida em que exigem justamente a tomada de consciência para o aprendizado.

A natureza do cérebro é preguiçosa... Embora, pese 2% do corpo, é órgão responsável por consumir 20% das energias. É pesado para o organismo, por isso tende a buscar meios para economizar recursos.

A novidade é um gasto, é como a malhação cerebral, mas é o que constrói saúde. O ponto sempre será o equilíbrio. Devemos, sim, ter hábitos (de preferência bons) e exposição a novidades para uma mente saudável.

Sincodiv-SP Online: Quais novos conhecimentos da ciência, em sua opinião, trarão os maiores ganhos para as pessoas e para a sociedade?

Fabiano Moulin de Moraes: Eu diria que a Epigenética está mudando a forma como enxergamos o desenvolvimento da saúde e da doença das pessoas. Esta é uma ciência que funde o estudo da genética com os aspectos do ambiente, uma área que transcende todas as outras da Medicina na medida em que dialoga com todas elas.

Antes, achávamos que o ambiente era muito adaptável e o gene muito duro, quase imutável. Se tenho um determinado gene, ele produz uma também determinada proteína e acabou. Hoje, porém, sabemos que um ambiente ruim pode ser tão perverso quanto um gene pode estar aberto às influências do ambiente ao qual é submetido.

Sincodiv-SP Online: Pode exemplificar como o meio altera o desenvolvimento genético, no caso do cérebro?

Fabiano Moulin de Moraes: Temos janelas de oportunidade ao longo de nossas vidas. Uma delas é a da construção das relações emocionais. Se uma criança, por exemplo, até os dois ou três anos, não tem uma relação de apego saudável com uma pessoa, ela terá muitas dificuldades para construir relacionamentos positivos e duráveis no futuro.

Sabemos disso por estudos realizados em grupos que passaram por situações catastróficas, caso dos “Órfãos da Romênia”. Trata-se de uma situação em que as crianças foram situadas em orfanatos e sistematicamente privadas de contato com pessoas. Depois, quando adotadas por famílias de várias partes do mundo, mostraram-se inadaptáveis à sociedade, ou seja, perderam a habilidade que nos diferenciam, essencialmente, de outros animais, nossa sociabilidade.

Nesse caso, o ambiente modulou a expressão de seus genes. Isso mostra como o meio e a rotina interferem no desenvolvimento (ou não) de nossas habilidades, capacidades e saúde em geral.

Ter o conhecimento sobre isso nos traz poder e também responsabilidade de criar um ambiente e hábitos adequados para cada um de nós.

Sincodiv-SP Online: Qual é o efeito do oposto da “negligência”, com famílias que excedem na atenção e monitoramento?

Fabiano Moulin de Moraes: O outro extremo para uma situação como a das crianças romenas são as Teorias do Pai Perfeito e do Pai Helicóptero, que são aqueles que não possibilitam nenhum tipo de frustração para seu filho e o monitora o tempo inteiro. Assim, criam verdadeiros monstros, inadequados ao mundo. Isso porque a frustração e o sentido de responsabilidade pela liberdade são parte das sensações às quais devemos ser capazes de lidar. Então, nem a privação total, nem o excesso são saudáveis.

Existe uma faixa adequada de apoio às crianças, caracterizada pelo Pai Suficiente, segundo o pediatra Winnicott, que permite as frustações, os prazeres e liberdades e ainda sim estar lá presente. É o caso da criança que explora o meio livremente, mas se preocupa em olhar para trás em busca do pai, como que perguntando, numa prova de confiança, se deve seguir com a sua investida.

O que esse exemplo mostra é que, além de aprender sobre o novo para treinar “músculos da mente” e praticar exercícios para que os efeitos positivos das atividades físicas beneficiem o cérebro, precisamos estabelecer e manter vínculos, alimentando relações de confiança, cultivar o que a sociedade (muitas vezes) considera inútil... Mas, definitivamente, não é! 

Fonte: http://www.sincodiv.org.br/site/noticia-sincodiv-sp-bate-papo-com-o-neurologista-fabiano-moulin-de-moraes-especialista-em-cognicao-e-comportamento-4083

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