Era dos seres humanos modelados pelos smartphones

A sociedade do smartphone

Assim como o automóvel definiu o século XX, o smartphone está remodelando como nós vivemos e trabalhamos hoje.

Por  Nicole M. Aschoff, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Boston e autora de “The New Prophets of Capital”.

O automóvel foi, em muitos aspectos, a mercadoria que definiu o século XX. Sua importância não decorre de virtuosismo tecnológico ou sofisticação da linha de montagem, mas sim de uma capacidade de refletir e modelar a sociedade. As formas como produzimos, consumimos, usamos e regulamos automóveis são uma janela para o capitalismo do século XX em si — um vislumbre de como o social, o político e o econômico cruzaram e colidiram.

Hoje, num período caracterizado por financeirização e globalização, no qual a “informação” é rei, a ideia de qualquer mercadoria definir uma época pode parecer estranha. Mas mercadorias não são menos importantes hoje, e as relações das pessoas com elas continuam centrais para a compreensão da sociedade. Se o automóvel foi fundamental para captar o último século, o smartphone é a mercadoria que define a nossa era.

As pessoas hoje gastam muito tempo em seus telefones. Elas os checam constantemente durante o dia e os mantêm perto dos seus corpos. Elas dormem perto deles, levam eles para o banheiro e olham para eles enquanto caminham, comem, estudam, trabalham, esperam e dirigem. 20% dos jovens adultos admite até checar seus telefones durante o sexo.

O que significa que as pessoas tenham um telefone em sua mão ou no seu bolso onde quer que vão, durante todo o dia? Para dar sentido à nossa pretensa dependência coletiva do telefone, nós devemos seguir o conselho de Harry Braverman e analisar “a máquina de um lado e as relações sociais de outro, e a maneira pela qual esses dois se juntam na sociedade”.

Máquinas de mão

Insiders da Apple se referem à cidade de montagem da Foxconn em Shenzhen como Mordor — o buraco do inferno da Terra Média de J. R. R. Tolkien. Como uma onda de suicídios em 2010revelou tragicamente, o apelido é um exageiro apenas leve para as fábricas nas quais jovens trabalhadores chineses montam iPhones. A cadeia de fornecimento da Apple liga colônias de engenherios de software com centenas de fornecedores de componentes na América do Norte, na Europa e na Ásia Oriental — Gorilla Glass de Kentucky, co-processadores de movimento da Holanda, chips de câmera de Taiwan e módulos transmissores da Costa Rica convergem em dezenas de fábricas de montagem na China.

As tendências simultaneamente criativas e destrutivas do capitalismo estimulam mudanças constantes nas redes globais de produção, e dentro dessas redes, novas configurações de poder corporativo e estatal. Nos velhos tempos, cadeias de fornecimento orientadas pelo produtor, exemplificadas por indústrias como a do automóvel e a do aço, eram dominantes. Pessoas como Lee Iacocca e a lenda do Boeing, Bill Allen, decidiam o que fazer, onde fazer e por quanto vender.

Porém, a medida que contradições econômicas e políticas do boom pós-guerra intensificaram nos anos 60 e 70, mais e mais países do sul global adotaram estratégias orientadas para a exportação para alcançarem seus objetivos de desenvolvimento. Um novo tipo de cadeia de fornecimento emergiu (particularmente em indústrias leves como roupas, brinquedos e eletrônicos) na qual os varejistas, em vez de os fabricantes, seguram as rédias. Nesses modelos orientados pelo comprador, empresas como Nike, Liz Claiborne e Walmart projetam bens, definem seu preço para os fabricantes e muitas vezes possuem no modo de produção não muito mais do que suas marcas lucrativas.

Poder e governança estão localizados em vários pontos na cadeia do smartphone, e produção e projeto estão profundamente integrados na escala global. Mas as novas configurações de poder tendem a reforçar as hierarquias de riqueza existentes: os países pobres e médios tentam desesperadamente passar a serem nós mais lucrativos através de desenvolvimento de infra-estrutura e acordos comerciais, mas oportunidades de modernização são poucas e distantes entre si, e a natureza global da produção faz as lutas dos trabalhadores para melhorar condições e salários extremamente difícil.

Os mineiros de coltan congoleses estão separados dos executivos da Nokia por mais do que um oceano — estão divididos pela história e pela política, pela relação dos seus países com as finanças, e por barreiras de desenvolvimento que têm décadas, muitas delas enraizadas no colonialismo.

A cadeia de valor do smartphone é um mapa útil de exploração global, política de comércio, desenvolvimento desigual e proezas logísticas, mas o significado mais profundo do dispositivo está em outro lugar. Para descobrir as mudanças mais sutis na acumulação que são ilustradas e facilitadas pelo smartphone, nós devemos nos voltar do processo pelo qual as pessoas usam máquinas para criar telefones para o processo pelo qual nós usamos o próprio telefone como máquina.

Considerar o telefone como máquina é, em alguns aspectos, imediatamente intuitivo. Com efeito, a palavra chinesa para celular é shouji, ou “máquina de mão”. As pessoas frequentemente usam suas máquinas de mão como elas usariam qualquer outra ferramenta, particularmente no local de trabalho. As demandas neoloberais por trabalhadores flexíveis, móveis e conectados em rede tornam-as essenciais.

Smartphones estendem o local de trabalho em espaço e tempo. E-mails podem ser respondidos no café da manhã, fichas revistas no trem para casa e as reuniões do dia seguinte verificadas antes de apagar as luzes. A Internet se torna o local de trabalho, com o escritório apenas um ponto no vasto mapa de possíveis espaços de trabalho.

A extensão da jornada de trabalho por meio de smartphones se tornou tão onipresente e perniciosa que grupos de trabalhadores estão lutando contra. Na França, sindicatos e empresas de tecnologia assinaram um contrato em abril de 2014 reconhecendo a 250 mil trabalhadores de tecnologia o “direito de desconectar” depois de um dia de trabalho. A Alemanha está atualmente contemplando uma legislação que visa proibir e-mails e telefonemas depois do trabalho. A ministra do trabalho alemã Andrea Nahles disse a um jornal que é “indiscutível que há uma conexão entre disponibilidade permanente e doenças psicológicas”.

Smartphones também facilitaram a criação de novos tipos de trabalho e novas formas de acessar os mercados de trabalho. No “mercado de trabalhos ocasionais”, empresas como TaskRabbit ePostmates construíram seus modelos de negócio tocando na “força de trabalho distribuída” através de smartphones.

O TaskRabbit conecta as pessoas que preferem evitar o trabalho penoso de realizar seus afazeres domésticos com pessoas desesperadas o suficiente para fazerem por dinheiro. Aqueles que querem tarefas feitas, como roupa lavada ou faxina depois da festa de aniversário dos seus filhos, se conectam com “taskers” usando o aplicativo móvel da TaskRabbit.

Espera-se que os taskers monitorem continuamente seus telefones por trabalhos potenciais (o tempo de resposta determina quem pega um trabalho); consumidores podem pedir ou cancelar um tasker em trânsito; e depois de completar com sucesso a tarefa, o terceirizado pode ser pago diretamente através do telefone.

Postmates — o queridinho da gig economy — está em ascensão no mundo dos negócios, especialmente depois que a Spark Capital colocou 16 milhões de dólares nele no início do ano. Postmates rastreia seus “mensageiros” em cidades como Boston, San Francisco e New York usando um aplicativo móvel nos seus iPhones enquanto eles se apressam para entregar tacos artesanais e lattes de baunilha sem açúcar em casas e escritórios. Quando um novo trabalho chega, o aplicativo o encaminha para o mensageiro mais próximo, que precisa responder imediatamente e completar a tarefa em uma hora para receber o pagamento.

Os mensageiros, que não são empregados reconhecidos da Postmates, estão menos entusiasmados que a Spark. Eles ganham US$ 3,75 e gorjeta, e como eles são classificados como terceirizados independentes, não são protegidos pelas leis de salário mínimo.

Dessa forma, nossas máquinas de mão se encaixam perfeitamente no mundo moderno do trabalho. O smartphone facilita modelos de emprego contingente e auto-exploração ao conectar trabalhadores a capitalistas sem os custos fixos e o investimento emocional das relações de emprego mais tradicionais.

Mas smartphones são mais do que um pedaço de tecnologia para trabalho assalariado — eles tornaram-se uma parte da nossa identidade. Quando nós usamos nossos telefones para enviar mensagens de texto a nossos amigos e namorados, postamos comentários no Facebook ou percorremos nossos feeds no Twitter, nós não estamos trabalhando — estamos relaxando, estamos nos divertindo, estamos criando. No entanto, coletivamente, através desses pequenos atos, nós acabamos produzindo algo único e valioso: nossos eus.

Eus a venda

Erving Goffman, um influente sociólogo americano, era interessado no eu e em como os indivíduos produzem e moldam a si mesmos através da interação social. Como ele mesmo admitia, Goffman era um pouco shakespeariano — para ele, “o mundo inteiro é um palco”. Ele argumentou que as interações sociais podem ser pensadas como performances e que as performances das pessoas variam de acordo com a audiência.

Nós encenamos essas performances para as pessoas — conhecidos, colegas de trabalho, parentes julgadores — que queremos impressionar. As performances dão a aparência de que nossas ações “mantêm e incorporam certos padrões”. Elas convencem a audiência que nós realmente somos quem nós dizemos que nós somos: seres humanos responsáveis, inteligentes e morais.

Mas performances no palco podem ser volúveis e muitas vezes prejudicadas por erros — pessoas falam coisas estúpidas, não compreendem sinais sociais, têm um pedaço de espinafre preso nos seus dentes ou podem ser pegas mentindo. Goffman era fascinado pelo quanto nós trabalhamos duro para aperfeiçoar e manter nossas performances e pelo quão frequentemente nós falhamos.

Smartphones são uma dádiva divina para os aspectos dramatúrgicos da vida. Eles nos permitem gerenciar as impressões que nós fazemos nos outros com uma precisão de quem é obsessivo por controle. Em vez de falar com os outros, nós podemos enviar mensagens de texto, preparar frases espirituosas e estratégias de evasão com antecedência. Nós podemos mostrar nosso gosto impecável no Pinterest, habilidades maternais no CafeMom e talentos artísticos florescentes no Instagram, tudo em tempo real.

A revista New York recentemente lançou um artigo sobre as quatro pessoas mais desejáveis de New York de acordo com o OKCupid. Esses indivíduos criaram perfis de namoro tão atraentes que eles são socados por pedidos atenciosos e picantes — seus telefones tocam continuamente com mensagens de potenciais amantes. Tom, um dos quatro escolhidos, ajusta regularmente seu perfil, aparecendo em novas fotos e dando nova redação à sua auto-descrição. Ele já até usou o MyBestFace, serviço de otimização de perfil do OKCupid.

Tom diz que todo esse esforço é necessário na nossa atual “cultura das curtidas”. Ele considera que seu perfil no OKCupid é uma “extensão de si mesmo”: “Eu quero que ele pareça bom e limpo, então eu faço ele fazer flexões e o que for”.

O alcance incrível dos meios de comunicação social e a adoção rápida das pessoas produzindo e executando a si mesmas estão gerando o surgimento de novos rituais de interação mediados tecnologicamente. Smartphones são agora centrais na forma como nós “geramos, mantemos, reparamos e renovamos, bem como… contestamos ou resistimos a relacionamentos”.

Tome rituais de mensagens de texto, que, com todas suas regras complexas e não escritas, agora desempenham um papel dominante na dinâmica de relacionamento da maioria dos jovens adultos. Não se precisa lidar com nostalgia nociva para se admitir que rituais novos e mediados tecnologicamente estão deslocando ou alterando radicalmente convenções mais antigas.

Manter, gerar e contestar relações digitalmente através de smartphones é um pouco diferente de usar telefones para completar tarefas associadas com o trabalho assalariado. Os indivíduos não recebem salário pelo seu perfil no Tinder ou para fazer upload das fotos das suas aventuras do fim de semana no Snapchat, mas os eus e os rituais que eles produzem estão certamente à venda. Independentemente da intenção, quando uma pessoa usa seu smartphone para se conectar com pessoas e com a comunidade digital imaginada, o resultado do seu trabalho de amor é provavelmente, e cada vez mais, vendido como mercadoria.

Empresas como o Facebook são pioneiras no empacotamento e venda dos eus digitais. Em 2013, o Facebook teve 945 milhões de usuários que acessaram o site através dos seus smartphones. Ele fez 89% da sua receita naquele ano através de publicidade, metade disso veio de publicidade móvel. Toda a sua arquitetura é projetada para guiar a produção móvel de eus numa plataforma que torna esses eus negociáveis.

É por isso que ele instituiu sua política de “nomes reais”: “fingir ser algo ou alguém não é permitido”. O Facebook precisa que os usuários usem seus nomes legais de forma que ele possa facilmente corresponder os eus corporais com os eus digitais, porque dados produzidos e ligados a um humano de verdade são mais rentáveis.

Usuários do site de encontros OKCupid concordam com uma troca similar: “dados para um encontro” [data for a date]. Empresas de terceiros ficam no fundo do site, colhendo fotos, visões política e religiosas e até mesmo romances do David Foster Wallace que os usuários professam adorar. Os dados são então vendidos aos anunciantes, que criam anúncios direcionados e personalizados.

A quantidade de pessoas que tem acesso aos dados do OKCupid é extraordinariamente grande — OKCupid, junto com outrtas empresas como Match e Tinder, é propriedade da IAC/InterActiveCorp, a sexta maior rede on-line do mundo. Construir um eu no OKCupid pode ou não render um amor, mas definitivamente rende lucros corporativos.

A consciência de que nossos eus digitais são agora mercadorias está se espalhando. A professora da New School, Laurel Ptak publicou recentemente um manifesto chamado “Salários pelo Facebook” e em março de 2014, Paul Budnitz e Todd Berger criaram o Ello, uma alternativa transitoriamente popular ao Facebook.

Ello proclama: “Nós acreditamos que uma rede social pode ser uma ferramenta para empoderamento. Não uma ferramenta para enganar, coagir e manipular — mas um lugar para se conectar, criar e celebrar a vida. Você não é um produto.” Ello promete não vender seus dados para terceiros, ao menos por enquanto. Ele reserva-se ao direito de fazer isso no futuro.

Entretanto, as discussões sobre o tráfico de eus digitais por empresas de dados do mercado paralelo e os gigantes do Vale do Silício estão normalmente separadas de conversas sobre as condições de trabalho cada vez mais exploradoras ou o crerscente mercado de trabalho precário e degradante. Mas esses não são fenômenos separados — eles estão intrinsecamente ligados, todos peças no quebra-cabeça do capitalismo moderno.

iCommodify

O capital precisa se reproduzir e gerar novas formas de lucro ao longo do tempo e do espaço. Ele precisa constantemente criar e reforçar a separação entre trabalhadores assalariados e proprietários do capital, aumentar o valor que extrai dos trabalhadores e colonizar novas esferas da vida social para criar mercadorias. O sistema e as relações que o compõe estão em constante movimento.

A expansão e a reprodução do capital na vida cotidiana e a colonização de novas esferas da vida social pelo capital não são sempre óbvias. Pensar sobre o smartphone nos ajuda a juntar as peças porque o dispositivo em si mesmo facilita e sustenta novos modelos de acumulação.

A evolução do trabalho ao longo das últimas três décadas tem sido caracterizada por uma série de tendências — o prolongamento da jornada de trabalho, o declínio de salários reais, a redução ou eliminação de proteções não-salariais a partir do mercado (como pensões fixas ou regulações de saúde e segurança), a proliferação do trabalho de tempo parcial e o declínio dos sindicatos.

Ao mesmo tempo, normas relativas à organização do trabalho também tem mudado. Modelos de trabalho temporários e orientados a projeto estão se proliferando. Não é mais esperado que os empregadores forneçam segurança ou horas regulares no trabalho, e os empregados já não esperam essas coisas.

Porém, a degradação do trabalho não está dada. O aumento da exploração e da pauperização são tendências, não resultados fixos ordenados pelas regras do capitalismo. Eles são o resultado de batalhas perdidas pelos trabalhadores e vencidas pelos capitalistas.

O uso ubíquo dos smartphones para estender a jornada de trabalho e expandir o mercado para trabalhos de merda é um resultado da fraqueza tanto dos trabalhadores como dos movimentos da classe trabalhadora. A compulsão e a vontade de um número crescente de trabalhadores a se engajarem com seus empregadores através dos seus telefones normaliza e justifica o uso dos smartphones como uma ferramenta de exploração e solidifica a disponibilidade constante como um requerimento para receber um salário.

A não ser na Grande Recessão, as taxas de lucro das empresas têm subindo constantemente desde o final dos anos 80 e não só como um resultado do capital (e do Estado) revertendo os ganhos do movimento operário. O alcance dos mercados globais tem alargado e aprofundado, e o desenvolvimento de novas mercadorias tem crescido em ritmo acelerado.

Expansão e reprodução do capital são dependentes do desenvolvimento dessas novas mercadorias, muitas das quais emergem do movimento incessante do capital de cercar novas esferas da vida social para lucrar, ou, como diz o economista político Massimo de Angelis, “colocar [essas esferas] para trabalhar para as prioridades e movimentos [do capital]”.

O smartphone é central para esse processo. Ele fornece um mecanismo físico para permitir o acesso constante aos nossos eus digitais e abre uma fronteira quase inexplorada da mercantilização.

Indivíduos não são pagos em salários para criarem e manterem eus digitais — eles são pagos em satisfação de participar de rituais e no controle proporcionado sobre eles nas suas interações sociais. São pagos na sensação de flutuar na vasta conectividade virtual, mesmo que suas máquinas de mão mediem os laços sociais, que ajuda pessoas a imaginarem coletividade enquanto as mantêm separadas como entidade produtivas distintas. A natureza voluntária desses novos rituais não os torna nem um pouco menos importantes ou menos rentáveis para o capital.

Braverman disse que “o capitalista encontra no caráter infinitamente maleável do trabalho humano o recurso essencial para a expansão do seu capital”. Os últimos 30 anos de inovação demonstram a verdade dessa afirmação e o telefone tem emergido como um dos principais mecanismos para ativar, acessar e canalizar a maleabilidade do trabalho humano.

Os smartphones garantem que nós estamos produzindo para mais e mais das nossas vidas despertas. Eles apagam a fronteira entre o trabalho e o lazer. Os empregadores agora têm acesso quase ilimitado a seus empregados e cada vez mais, fazendo até um trabalho mal-pago e precário depender da capacidade de se estar sempre disponível e pronto para trabalhar. Ao mesmo tempo, os smartphones proporcionam às pessoas acesso móvel constante aos bens comuns digitais e ao transparente ethos da conectividade, mas apenas em troca pelos seus eus digitais.

Os smartphones borram a linha entre a produção e o consumo, entre o social e o econômico, entre o pré-capitalista e o capitalista, garantindo que se alguém usa seu telefone seja para trabalho ou prazer, o resultado é cada vez mais o mesmo — lucro para os capitalistas.

Será que a chegada do smartphone significa o momento debordiano no qual a mercadoria completou sua “colonização da vida social”? Não é verdade que não só nossa relação com as mercadorias é fácil de ver, mas que “mercadorias são agora tudo o que há para se ver”?

Isso pode parecer um pouco pesado. O acesso a redes sociais e a conectividade digital através de telefones móveis têm, sem dúvidas, elementos liberatórios. Os smartphones podem ajudar a luta contra a anomia e promover um senso de conscientização ambiental, enquanto ao mesmo tempo torna mais fácil para as pessoas gerar e manter relações reais.

Uma conexão compartilhada entre eus digitais pode também nutrir resistência à hierarquia de poder cujo mecanismos internos isolam e silenciam indivíduos. É impossível imaginar os protestos desencadeados por Ferguson e a brutalidade policial sem smartphones e mídia social. E, finalmente, a maioria das pessoas ainda não está compelida a usar smartphones para trabalhar e certamente não são obrigadas a executar seus eus através da tecnologia. A maioria poderia jogar seus telefones no mar amanhã, se quisesse.

Mas não vai. As pessoas adoram suas máquinas de mão. Comunicar-se principalmente através de smartphones está rapidamente se tornando uma norma aceita e mais e mais rituais estão se tornando mediados tecnologicamente. A conexão constante às redes e informação que nós chamamos de ciberespaço está se trnando central para a identidade. Por que isso está acontecendo é uma especulação labiríntica.

Será, como o especialista em mídia e tecnologia Ken Hillis sugere, que é simplesmente uma outra forma de “evitar o vazio e a falta de sentido da existência”? Ou, como a novelista Roxane Gayrecentemente ponderou, nossa capacidade de manipular nossos avatares digitais fornecem um bálsamo para o nosso profundo senso de impotência em face da injustiça e do ódio?

Ou — como o guru da tecnologia Amber Case se pergunta — estamos todos nos transformando em ciborgues?

Provavelmente não — mas isso depende de como você define ciborgue. Se um ciborgue é um humano que usa um pedaço de tecnologia ou uma máquina para restaurar funções perdidas ou melhorar suas capacidades e conhecimento, então as pessoas têm sido ciborgues por um bom tempo, e usar o smartphone não é diferente de usar um braço protético, conduzir um carro ou trabalhar numa linha de montagem.

Se você define uma sociedade ciborgue como uma em que as relações humanas são mediadas e moldadas pela tecnologia, então nossa sociedade certamente parece cumprir esse critério e nossos telefones desempenham um papel protagonista. Mas nossas relações e rituais têm sido mediadas por um bom tempo pela tecnologia. A ascensão de grandes centros urbanos — cubos de conectividade e inovação — não teria sido possível sem ferrovias e carros.

Máquinas, tecnologia, redes e informação não conduzem ou organizam a sociedade — as pessoas o fazem. Nós fazemos as coisas e usamos as coisas de acordo com a teia existente de relações sociais, econômicas e políticas e o equilíbrio de poder.

O smartphone, e a forma como ele molda e reflete as relações sociais existentes, não é mais metafísico do que os Ford Rangers que uma vez saíram da linha de montagem em Edison, New Jersey. O smartphone é tanto uma máquina como uma mercadoria. Sua produção é um mapa de poder, logística e exploração globais. Seu uso molda e reflete o confronto perpétuo entre os movimentos totalizantes do capital e a resistência do resto de nós.

No presente momento, a necessidade de capitalistas de explorar e mercantilizar é reforçada pelas formas pelas quais os smartphones são produzidos e consumidos, mas os ganhos do capital nunca são seguros e inatacáveis. Eles precisam ser renovados e defendidos a cada passo. Nós temos o poder de contestar e negar ganhos de capital, e devemos. Talvez nossos telefones venham a calhar ao longo do caminho. 

Fonte: http://esquerdasocialista.com.br/a-sociedade-do-smartphone/

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