Educando com amor, colo e leveza

Carlos González: o pediatra que quebra regras

Um dos mais aclamados médicos do momento, o pediatra espanhol defende uma criação cheia de amor, colo e leveza

Por Aryane Cararo 

Conhecido pela defesa do aleitamento e da criação com apego, ele já foi apontado como o pediatra que vai na contramão de colegas e livros. O jornal britânico The Guardian o definiu como “o médico que quer que os pais quebrem as regras”. O espanhol El País disse que ele tem exércitos de seguidores fiéis, fãs fervorosos que o tratam como guru, mas também críticos ferozes. Sem dúvida, Carlos González é um dos pediatras mais famosos da Espanha, senão o mais conhecido – e sua popularidade tem aumentado mundo afora.

Entrevista com o pediatra Carlos González

De 1999 a 2013, escreveu sete livros, que venderam 250 mil cópias só na Europa e já foram traduzidos para outras 12 línguas, incluindo russo e sérvio. No Brasil, ele lança seu terceiro título em português que, na realidade, foi o primeiro a publicar em sua carreira. Mas o que o torna tão popular? Que correntes ele quer ver quebradas? Verdade seja dita, “contramão” não deveria ser um rótulo dado ao espanhol. O que ele prega soa tão natural que nós é que parecemos ser “do contra”, de tão acostumados a conviver – e quase enlouquecer – com uma série de regras na criação dos filhos.

Quem nunca ouviu: “Se pegar o bebê toda vez que chorar, ele vai ficar mal-acostumado”. “Colo demais o deixa mimado.” “As crianças não devem dormir com os pais, para aprenderem a ser independentes.” “Não raspou o prato, não vai ganhar sobremesa”... Aviãozinho, brinquedo ou uma distração (ou ameaça) atrás da outra é lançada na esperança de êxito com a comida. O que resta é cansaço, angústia e frustração – de um lado, por ser tão difícil seguir as tais regras, de outro, por morrer de vontade de consolar seu filho ou dormir abraçado e “não poder”, já que alguém disse que seria melhor assim.

“Espero ter [netos] em breve, para poder mimá-los à vontade. essa é a principal função dos avós. compensar a absurda rigidez dos pais de primeira viagem.”

Ser pai e mãe não é fácil, nunca foi. Mas talvez a sociedade tenha complicado demais esse papel nas últimas décadas, com regras que González chama de absurdas. Para quem está sendo melhor? E é basicamente essa reflexão e um pouco de bom senso que ele propõe em seus livros, artigos e conferências – e haja palestras, foram ao menos 19 de julho para cá. Ele diz que ninguém aprende “essas baboseiras sem base científica” em livros de medicina, mas viu tantos títulos para os pais reproduzindo tais frases que começou a escrever os seus próprios. O pediatra conta, em entrevista à CRESCER, que nunca escutou o pai ou a mãe dizer: “Eu o deixaria chorar, mas como ouvi que, assim, pode ter um trauma psicológico, não me restou outro remédio a não ser pegá-lo em meus braços”. Em vez disso, tem ouvido centenas de vezes o contrário, sob o argumento de não deixar as crianças mal-acostumadas. “A primeira reação é consolar seu filho, mostrar afeto. Para fazer o contrário, é preciso enganar os pais com alguma teoria absurda”, lamenta.

Não espere dicas. González quer mais é que os pais retomem seus instintos e questionem essas regras, e, muitas vezes, isso é tudo o que você quer ouvir. Para isso, usa de humor, ironia e irreverência – suas marcas registradas – para expor o quão ridículas são algumas dessas situações. Basta substituir a palavra “filho” por mulher, amigo, vizinho ou outro adulto, é o que sempre propõe.

Assim, nos damos conta de que nenhum pneumologista prescreve sessões de choro a um adulto asmático como tratamento. Tampouco ignoramos um amigo chorando. Quantas vezes somos nós que queremos colo e afeto? Dormir sozinho, poucos adultos querem. E você não diz a seu companheiro que, se ele não comer tudo, não sairá da mesa – nem o garçom se recusa a trazer a sobremesa para quem não raspou o prato. Esses são todos exemplos que o médico costuma usar. “O humor ajuda a desdramatizar as preocupações e a desmontar os mitos.”

A favor da corrente

Defensor do afeto sem limites, do aleitamento materno sob livre demanda, da cama compartilhada, da inutilidade do castigo e do respeito às crianças, ele não gosta de ser rotulado como polêmico – mesmo que defenda questões controversas como o co-sleeping, associado por muitos médicos à morte súbita do lactente. “Não sou nada contra a corrente, não estou dizendo nada fora do comum. Gostaria de ver um livro de pediatria ou um artigo científico que diga que uma criança tem de comer de tudo ou que é para deixá-la chorar. Temo que são os outros que vão contra.”

Ele faz questão de mostrar todo seu embasamento: suas recomendações sobre amamentação são da Organização Mundial da Saúde, do Unicef e da Associação Espanhola de Pediatria. As de alimentação vêm da Espghane (Sociedade Europeia de Gastrenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição). Quanto às necessidades afetivas, segue o psicólogo e psiquiatra britânico John Bowlby, pioneiro na teoria do apego. Sobre a vacinação, recomenda seguir à risca o calendário de cada país. E sua posição a respeito da cama compartilhada, diz, é semelhante a dos maiores especialistas da Grã-Bretanha – e encaminha à CRESCER um artigo do British Medical Journal que fala sobre esse hábito milenar, o sucesso na amamentação e os casos contraindicados.

São quase 30 anos de experiência só no atendimento infantil. Nascido na cidade de Zaragoza, em 1960, González se formou em Medicina pela Universidade Autónoma de Barcelona (1983) e obteve título de especialização em Pediatria no Hospital de Sant Joan de Déu (1987). Sucinto, direto e um pouco sarcástico, diz que escolheu a profissão para curar os doentes, e a pediatria, “bom, porque gostava de crianças”. É especialista em amamentação pela Universidade de Londres, fundou e preside a Acpam (Associação Catalã Pró-Aleitamento Materno) desde 1991, participa do Conselho de Assessores de Saúde de La Leche League International e é assessor da iniciativa Hospital Amigo da Criança, do Unicef. Vive na província de Barcelona, na Catalunha, onde atende em um consultório na região, escreve para revistas e jornais, e percorre o mundo dando cursos e palestras. 

Um pai amoroso

Embora esteja sempre na mídia, o médico, que adora ler e caminhar no tempo livre, costuma ser discreto com relação à família. É casado há 35 anos com uma médica e tem três filhos, mas prefere não dar os nomes, pois não sabe se eles gostariam – o de 32 anos é roteirista, a de 28 é engenheira da computação e a caçula, 25, médica. Foi na criação deles que aprendeu grande parte do que prega hoje – mas também teve ótimas referências de seus pais, que foram afetuosos, o acolhiam na sua cama e nunca bateram nele.

Da mesma forma, colo e cama dos pais nunca faltaram a seus filhos. “Minha profissão consiste em atender o mais rápido possível a um desconhecido que vem ao hospital no meio da noite. Jamais me ocorreu deixar o paciente chorar um pouco, como ia fazer isso com meus próprios filhos?”, diz o pediatra, que também é contra colocar as crianças em creches antes dos 3 anos. Por isso, ele e a mulher se revezaram nos cuidados: ela deixou de trabalhar no primeiro ano, depois foi a vez de ele fazer home office. Ainda não tem netos. “Espero ter em breve, para poder mimá-los à vontade. Essa é a principal função dos avós: compensar a absurda rigidez dos pais de primeira viagem.”

Uma rigidez que ele mesmo parece não ter seguido na criação de seus filhos, que diz ter sido fácil e divertida. “Difícil foi programar o vídeo, nunca consegui. Difícil foi obter a carta de habilitação, me suspenderam nove vezes. Mas criar os filhos é simples, nossos antepassados fizeram isso durante milhões de anos, e aqui estamos.”

Mesmo nas situações mais estressantes, González não perdeu a compostura. “Seguia o conselho que meu pai me deu uma vez: ‘Antes de fazer uma besteira, conte até dez. E depois, não faça’.” Nem caiu na tentação da chantagem diante de um prato não tocado. “Felizmente, eu sabia que não podia obrigá-los jamais. Não forçava a minha esposa a comer, por que obrigaria meus filhos?”, diz ele, que também não come de tudo, como sempre faz os adultos se lembrarem. Em seu caso, nem tentem oferecer carne de cordeiro, pargo, peixe-espada, formigas, gafanhotos, pés de porco e caracóis. 

Sua principal regra foi fazer seus filhos felizes. Se pudesse voltar atrás, mudaria poucas coisas: os pegaria mais nos braços e os colocaria antes na sua cama. Também tentaria ficar mais relaxado com o primogênito. “Os pais de primeira viagem costumam ter expectativas irreais: esperamos que eles recolham seus brinquedos, sejam ‘educados’ e se ‘comportem bem’.” Como agir, então? González diz que não é preciso se ater a muitas normas, e quase todas se aplicam aos adultos: não abusar dos doces, lavar as mãos antes de comer, escovar os dentes após as refeições, não bater, gritar ou ridicularizar ninguém, muito menos os próprios filhos. E, principalmente: “Não tenham medo de deixá-los malcriados. O afeto nunca prejudicou ninguém”. 

“Nunca obrigue uma criança a comer”

Receitas de papinhas, dicas de como fazer as crianças comerem, estratégias para seu filho raspar o prato. Não espere nada disso de Meu Filho Não Come (Editora Timo, R$ 75), escrito originalmente em 1999, mas que só agora chega ao Brasil. Quem já leu Bésame Mucho e Manual Prático do Aleitamento Materno, também trazidos pela Timo, sabe bem que o intuito de Carlos González é sempre outro: questionar e propor uma nova conduta. Nele, o pediatra explica que as crianças comem muito menos do que os pais esperam, que precisam aprender a se alimentar sozinhas – até criaturas sem cérebro como os mexilhões são capazes disso, diz – e mostra o quão prejudicial alguns comportamentos à mesa podem ser. 

Qual é a principal lição do livro?

Nunca obrigar as crianças a comer, nem por mal nem por bem. Nem com gritos, ameaças, chantagem emocional, pressão, castigos, nem com estímulos, promessas, prêmios e distrações. 

Você diz que as crianças devem escolher o que comer. Mas não há o risco de ter uma dieta desequilibrada?

A responsabilidade dos pais é ter comida saudável em casa. Não quer que seus filhos comam balas e bolos ou bebam refrigerante? Não compre essas coisas. Ou compre só quantidades pequenas ocasionalmente. Durante muitos anos, eles não terão capacidade nem dinheiro para comprar esses itens por si mesmos (e, quando tiver, ninguém poderá impedi-los, não é mesmo?). Entre a comida saudável que você oferece, a criança tem, sem dúvida nenhuma, direito a escolher o que quer comer e a quantidade que deseja. Como fará, por certo, em toda a sua vida – e se supõe que a educação sirva para isso, para preparar nossos filhos para ela.

Quando pequeno, você comia só o que queria? Como sua mãe agia?

Minha mãe me dizia para comer de tudo, mas não me obrigava. Lembro perfeitamente de me negar a comer algumas coisas que, simplesmente, me davam náuseas, e recordo como, depois de insistir um pouco, ela acabava dizendo: “Bom, então não coma”.

4 preceitos do Dr. González

Colo: O pediatra lembra que adultos se abraçam, namorados se beijam e ninguém acha suficiente dizer apenas “eu te amo”. Se eles precisam de mais do que palavras, por que não um bebê, que nem as entende?

Amamentação: Defende o aleitamento sob livre demanda. É contra regras rígidas de dar o peito a cada três horas, ou apenas por dez minutos. Diz que as crianças mamam seguidamente e depois dormem por bastante tempo.

Mimo: Ele afirma que nunca as crianças ficaram tanto tempo separadas de seus pais, na história da humanidade, como agora. E, até por isso, é um contrassenso chamá-las de mimadas. O pediatra lembra também que ninguém nunca foi preso por receber amor demais.

Limites: Aqueles lógicos e razoáveis os pais já impõem, defende, como não deixar brincar com fogo ou faca – eles sabem que devem proibir. Para ele, as crianças precisam aprender autocontrole, não serem controladas – e isso se ensina pelo exemplo. Lembra que os adultos vivem tentando superar os limites. Por isso, acha o castigo inútil, pois não punimos os adultos, e crê que a disciplina é uma qualidade interna, não resultado de repreensão.

Fonte: http://revistacrescer.globo.com/Criancas/Saude/noticia/2016/10/o-pediatra-que-quebra-regras.html?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=post

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