Sofrimento psíquico e social

Definição contemporânea de saúde e doença mental sofreu profundas mutações

(por Vladimir Safatle - professor livre-docente no Departamento de Filosofia da USP)

Os pesquisadores de epistemologia da psicologia são unânimes em re­conhecer que os últimos 40 anos do desenvolvimento das clínicas ligadas ao sofrimento psíquico (psicanálise, psicologia, psiquiatria) viram uma profunda guinada organicista. Aparentemente, ela teria sido impulsionada por dois fenômenos.

Por um lado, a ineficácia de tratamen­tos psicoterapêuticos. Por outro, o desen­volvimento exponencial das pesquisas em farmacologia, com o consequente desen­volvimento de novas famílias de antide­pressivos, ansiolíticos e psicotrópicos.

Costuma-se descrever tal desenvolvi­mento como o resultado direto de pesqui­sas ligadas à eficácia do tratamento. Como se os processos de cura mostrassem clara­mente como decidir a respeito da avalia­ção dos modelos clínicos de intervenção.

No entanto, há um dado que normal­mente esquecemos: nossa definição de saú­de e doença mental sofreu profundas muta­ções. Vemos, normalmente, essa continua mutação dos padrões de definição da doen­ça mental como a consequência natural do aprofundamento do conhecimento sobre estruturas neuronais e modelos de inter­venção medicamentosa. Um pouco como uma leitura realista do desenvolvimento da física, que teria sido impulsionado por descobertas que nos colocariam cada vez mais perto de espécies naturais. A clássica teoria da passagem do flogisto ao oxigênio é, aqui, paradigmática.

Há um realismo ingênuo nessa descri­ção. O abandono da neurose histérica como categoria e sua subdivisão em entidades co­mo “transtornos somatoformes” e “trans­torno de personalidade histriônica” não é apenas resultado da compreensão da his­teria como inadequada por pretensamente colocar em relação problemas que deveriam ser analisados de maneira separada e, com isto, criar estruturas inexistentes de relações (entre, por exemplo, problemas somáticos e sexualidade, comportamento teatralizado e conflitos familiares). O abandono deu-se devido, entre outras coisas, a uma mutação do que estamos dispostos a contar por saú­de. Esta mutação não é independente das mutações em um conjunto mais amplo de valores sociais.

Este é um ponto importante. Contrariamente a uma noção de doença de­terminada a partir da possibilidade de lo­calização orgânica, temos um conceito de doença, herdado da medicina grega, mar­cado por um certo dinamismo relacional que insiste no aspecto determinante das relações entre organismo e meio ambiente.

Como dirá o filósofo da ciência Georges Canguilhem: a natureza, (physis) tanto no homem como fora dele, é har­monia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no homem. Está em todo o homem e é toda dele.

A doença aparece assim como um acon­tecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade. Quando classifi­camos como patológico um sistema ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que aquilo que os torna patológicos é a relação de inserção na totalidade indivisível de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser doente é, para o homem, viver uma vida diferente.

Notemos ainda que tal estratégia de vincular o normal a partir de uma relação normativa de ajustamento ao meio im­plica afirmar que não há fato algum que seja normal ou patológico em si. Eles são normais e patológicos no interior de uma relação entre organismo e meio-ambiente.

Mas é neste ponto que algumas ques­tões devem ser complexificadas. Pois de­vemos levar ao extremo a compreensão de que o meio-ambiente vital do ser huma­no não é um meio natural bruto, mas um meio social, construído através de valo­res reguladores que internalizamos e que guiam a maneira com que estruturamos o sentido e a orientação das relações a si, assim como das relações ao corpo.

Tais valores são fundamentais na de­terminação geral dos padrões de saúde e dos vetores de orientação dos processos de cura. Mas, se assim for, temos todo o direito de nos perguntar: como tais valo­res interferem na determinação do que é uma doença mental, qual sua estrutura e característica? Seriam tais valores deriva­dos de valores estéticos (basta pensarmos na natureza sobredeterminada de termos como “harmonia” e “equilíbrio”), políti­cos (pensemos o mesmo para “capacidade de controle e decisão”), entre outros?

Colocar tais questões nos permite tentar recuperar uma articulação perdida nos últimos 40 anos. Ela diz respeito às articulações entre sofrimento psíquico e estrutura social de valores, ou seja, como conjuntos de valores sociais nos fazem sofrer. Desta forma, a reflexão sobre o adoecimento pode voltar a ser um setor importante da crítica social.

 

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