O isolamento social no Brasil

 

 

As faces do isolamento social no Brasil

Por Matheus Silva de Oliveira (Técnico em Alimentos e Bebidas – IFBA/Barreiras) e Joelia Silva dos Santos (Docente mestre do IFBA/Barreiras)

No primeiro trimestre do ano de 2020 em decorrência da pandemia gerada pela Covid-19 o Estado brasileiro, através das unidades federativas e seguindo as recomendações estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), foi obrigado a institucionalizar o isolamento social como medida protetiva para evitar o contágio acelerado do vírus SARS-CoV-2. Este isolamento social que se materializou no território nacional enquanto ação impositiva, embora necessário, se constituiu também enquanto medida preventiva para não sobrecarregar o sistema público de saúde pelo grande número de pessoas que precisaria de atendimento hospitalar caso contraíssem a doença em um curto período de tempo. Até aqui a ação e intenção do Estado foi plausível para o fim a qual se destinou, porém, o isolamento tem rebatimentos em toda sociedade e afeta todos os setores que a compõe, cujos efeitos mais perversos serão sentidos pelos indivíduos desprovidos das condições básicos para manter sua sobrevivência em meio a quase paralisia de algumas atividades econômicas. Nesse contexto, o reflexo de um país que não possui equidade é o aprofundado das desigualdades já existentes entre as classes sociais.

Na verdade, esse isolamento social em período de pandemia é mais um dos diversos tipos de isolamentos social, econômico, cultural, vivenciado pela população pobre e negra desde os primórdios da colonização até o contexto atual cujo caráter sempre foi coercitivo. A ação de isolar, marginalizar, inviabilizar o acesso à saúde, educação, segurança, moradia e lazer das populações negras persiste como um legado de um país colonial de democracia recente e frágil, legitimada pela estrutura de estado-nação que foi construído para sustentar os privilégios da burguesia branca.

Na psicologia o isolamento social pode ser entendido quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos passa a ser excluído do convívio social pela ação intencional de outros. Anterior a pandemia da Covid 19, no Brasil, o isolamento social pode ser entendido metaforicamente como um processo voluntário do Estado que não assegurou os direitos a todos os brasileiros pela via da equidade social, situação que sempre excluiu, principalmente, a população pobre e negra das oportunidades criadas e direcionadas à elite do país.

Provavelmente, o isolamento social após a pandemia da covid-19 será uma celeuma de imposições e restrições que continuará afetando muito mais os pobres, negros(as), quilombolas, indígenas, ribeirinhos(as) entre outros segmentos sociais que foram invisibilizados durante todo o processo de construção do estado brasileiro. Lembrando que as poucas políticas públicas destinadas a estes segmentos foram frutos das reivindicações e pressões exercidas pela sociedade civil organizada – movimentos sociais, sindicais – na busca pelo cumprimento dos direitos e garantias asseguradas na Constituição Federal de 1988. E como sempre, será necessária muita resiliência para continuar a irromper nessa luta após mais uma etapa do isolamento intensificado pela pandemia. 

Embora algumas políticas sociais tenham sido criadas nas últimas décadas para atender necessidades mais específicas das populações carentes economicamente como: os programas de financiamento estudantil e habitacional, ampliação das universidades públicas e institutos federais, programas de transferência de renda, entre outros, isso não altera a concepção cultural do isolamento institucionalizado sócio-historicamente no país e não reverte todas as suas consequências.

De acordo com o IBGE (2019) a população brasileira é composta por 56,3% de negros, uma maioria que proposital e tragicamente é tratada como insignificante quando se refere ao papel do Estado em institucionalizar políticas públicas direcionadas aos diversos segmentos que a compõe. Alguns dados recentes são expressivos, sendo resultado das faces do isolamento que sempre existiu no Brasil. No mercado de trabalho, os pretos ou pardos representavam 64,2% da população desocupada e 66,1% da população subutilizada (2018). E, enquanto 34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações informais, entre os pretos ou pardos esse percentual era de 47,3% no mesmo ano. Reflexo de uma sociedade racista que sempre viu os negros como sub-humanos e que consequentemente devem ocupar os subempregos sendo subutilizados.

Enquanto 44,5% da população preta ou parda vivia em domicílios com a ausência de pelo menos um serviço de saneamento básico, entre os brancos, esse percentual era de 27,9%. Pretos ou pardos são mais atingidos pela violência. Uma pessoa negra tinha quase 3 vezes mais chances de morrer vítima de homicídio, em 2017, do que uma pessoa branca, além disso, segundo o Mapa da Violência de 2016, do total de homicídios, 70,5% eram de negros e, em média, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil.

Em relação ao encarceramento da população brasileira, há um processo histórico que criminaliza os negros sentenciando-os pela cor da pele. Por exemplo, em 1941, cinquenta e três anos após a abolição, foi criada a Lei da Vadiagem que criminalizava a ociosidade atingindo principalmente os negros(as) porque representavam a grande parcela de desempregados que tinha dificuldade de se inserir no mercado de trabalho. Esse e outros fatores como a “guerra às drogas” ajudam a compreender porque, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) 64% dos presos em 2016 eram pretos e pardos.

O adensamento domiciliar excessivo (mais de três moradores para cada cômodo utilizado como dormitório no domicílio) ocorreu entre pretos ou pardos em uma frequência de 7,0%, quase duas vezes maior do que aquela verificada entre brancos que foi de 3,6%. Já o ônus excessivo com aluguel (valor do aluguel igual ou ultrapassando 30% da renda domiciliar) atingiu 5,0% dos pretos ou pardos e 4,6% dos brancos. Além disso, entre a população preta ou parda de 18 a 24 anos que estudava, o percentual cursando ensino superior aumentou de 50,5% em 2016 para 55,6% em 2018, mas ainda ficou abaixo do percentual de brancos da mesma faixa etária (78,8%).

A Bahia possui 81,9% (IBGE, 2019) da sua população de negros e no passado colonial era considerada um berço imponente no país por ser o principal estado que recepcionava e comercializava os africanos em diáspora. No pós-abolição, ao invés de amparar os negros(as) recém libertos, reproduziu a mesma ação contraditória do Estado brasileiro ao atrair os brancos europeus para o seu território com o objetivo de embranquecer a sociedade oferecendo-lhes os principais cargos assalariados, além de ter doado terras para os imigrantes e inviabilizado a reforma agrária para a população local, sendo mais uma das faces da história de isolamento social dos negros. 

Existem contradições presentes nas ações do Estado brasileiro que reverberam no aprofundamento das desigualdades ao destinar subsídios em larga escala para o agronegócio que geralmente não paga a dívida histórica que contraiu enquanto o mesmo Estado destina muito pouco para os agricultores familiares que precisam de subsídio para manter suas propriedades e consequentemente a subsistência das suas famílias.

Foi exatamente isso que aconteceu no oeste da Bahia, onde o governo federal preferiu investir na agricultura capitalizada e favorecer os sulistas que migraram para essa região a partir da década de 1980 em busca de terras para expansão da agricultura mecanizada que seria financiada pelo Estado ao invés de investir nos próprios moradores do local que desenvolviam atividades agrícolas por vias mais tradicionais, além da pecuária extensiva. Barreiras se tornou uma das principais cidades do agronegócio brasileiro, contudo com o capital concentrado na mão de brancos estrangeiros que migraram para nossa terra e enriqueceram pelos largos subsídios concedidos pelo Estado. O município isolou a população nativa que hoje enfrenta muitos desafios para sobreviver em uma cidade rica, mas que produz pobreza pela via da concentração de renda.

Barreiras possui 70,63% da sua população composta por negros(as) e no ano de 2010, segundo o IBGE, possuía um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de 0,721 que é considerado alto e representaria, na teoria, um significativo desenvolvimento social. Contudo, essa não é a realidade da maioria dos barreirenses. Esse “desenvolvimento humano” tem raça e tem classe, esse “desenvolvimento” está presente nos bairros como Morada Nobre, Renato Gonçalves ou no luxuoso condomínio Vento Leste, por exemplo, onde moram as famílias que se beneficiam direta e indiretamente do agronegócio ou que tiveram oportunidades para inserção no serviço público, correspondendo aos 6% da população que recebia uma renda, em 2010, acima de cinco salários mínimos contra os 33% da população que recebia, no mesmo ano, até um salário mínimo. Dentre estes existia uma parcela de vulneráveis à extrema pobreza e exclusão social, sendo aqueles que recebiam entre 1/8 e ¼ do salário mínimo de acordo com o IBGE.

Os empresários do agronegócio, portanto, isolaram uma população majoritariamente negra do processo de geração e apropriação da riqueza e ainda se vangloriam pelo desenvolvimento que trouxeram à região, um desenvolvimento com uma visão colonialista. Muitos desses sulistas brancos possuem o complexo do salvador branco (white savior) pois acreditam que pela meritocracia eles conseguiram alavancar a economia, salvando a população local do atraso. Mas omitem que muitas dessas terras foram griladas, que receberam vultosos subsídios do Estado e não admitem que aprofundaram proporcionalmente a situação de pobreza na região. Por conta de toda estrutura racial segregacionista que moldou a sociedade brasileira, baiana e barreirense, uma pessoa preta, pobre e do interior do país tem bastante dificuldade, além das questões citadas, para encontrar referência e representatividade local frente às faces do isolamento. Sejamos então essa voz.  

Fonte: https://www.geledes.org.br/as-faces-do-isolamento-social-no-brasil/

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