A normalidade antiga e a nova

 

 

DE PERTO NINGUÉM É NORMAL (OU O ‘NOVO NORMAL’)

Diante de períodos de crises de ordem política, militar, econômica ou sanitária, as sociedades mostram sua capacidade para se alterar, mas para se ‘conservar’ também. 

Por Lilia Moritz Schwarcz 

Sempre desconfio das expressões que fazem sucesso rápido e acabam servindo para qualquer ocasião. Afinal, o que explica tudo também explica nada.

A expressão “novo normal” tem sido muito utilizada nos últimos meses, quando se percebeu que o coronavírus há de acarretar mudanças para todo o planeta. Isto é, que os efeitos da Covid-19 não se limitarão ao dia em que a pandemia for dada por terminada. E é certo: a história mostra que não se sai de crises como essa da mesma maneira que se entrou.

“Novo normal” não é, porém, um termo recente; tampouco se sabe a origem dele. No entanto, tem sido crescentemente associado a momentos da história em que toda a sociedade é obrigada a se reinventar diante de períodos de crises de ordem política, militar, econômica ou sanitária.

Crise quer dizer “decisão” e, portanto, parece “normal” que diante de grandes acidentes como esses, as sociedades mostrem sua capacidade para se alterar, mas para se “conservar” também. Durante muito tempo as ciências sociais, prioritariamente, se dedicaram a entender não como as sociedades mudam, mas sobretudo como elas têm essa incrível capacidade de se manter. Como dizia Lampedusa: “É preciso que algo mude para que tudo fique absolutamente igual”.

E esse me parece ser o “novo normal”: ele representa, no meu entender, um esforço contínuo no sentido da preservação da sociedade (e de um determinado status quo), nem que, para que isso ocorra, ela seja levemente alterada. Isso porque a humanidade, em seu longo curso, sempre lutou pela manutenção. As pessoas também preferem estados de equilíbrio, de “normalidade”, do que viver no “caos” da novidade. Por isso, se é preciso que alguma coisa se altere, o melhor é que seja bem pouco.

Considero, assim, o “novo normal” um movimento bastante conservador; no sentido primeiro da palavra: conservar. Afinal, esse seria um “novo normal” para quem? Qual seria o nosso coeficiente de “normalidade”? E qual a régua que mede e distingue o que é “normal” do que é “anormal”, ou, ainda, um “novo normal”?

Toda sociedade carrega seus próprios parâmetros e princípios, que serão mais eficientes quanto mais forem vividos como “naturais”, “normais”. A lógica da sociedade, dizia o sociólogo Émile Durkheim, no final do século 19, não corresponde à “soma dos indivíduos”. Por isso, o silêncio que carregamos conosco é uma barulhenta algazarra social, pois procura esconder os critérios que regem essas métricas e não mostra como são obrigatórios esses traços sociais, que nos parecem apenas facultativos.

Arrisco, portanto, dizer que “normal” é acreditar numa história feita apenas por homens, brancos, de classe alta, e celebrados por seus atos célebres. No jogo do “diz que não diz”, chamamos de “história universal”, uma narrativa que diz respeito aos Estados Unidos e à Europa, e em especial à Europa Central. Ela é a “normal”. Tudo o que escapar da “norma” fica jogado na lata de lixo da exceção e do que “não é normal”. Foi assim com a Revolução Haiti (1791-1804), que cometeu o “pecado” de mostrar ao mundo que escravizados podem (e devem) se rebelar e ganhar o comando de seus próprios países. Mas eles romperam com a “norma” e com o “normal”, e sofrem até os dias de hoje, com as severas consequências. Como dizia o etnólogo Claude Lévi-Strauss, “bárbaro é aquele que acredita na barbárie”. Somos nós.

Também agimos com “naturalidade”, quando dividimos as produções visuais de maneira cartesiana: arte ou artesanato; arte X artesanato. O que não dizemos quando deixamos de explicitar esses conceitos? Resposta: que arte (europeia, masculina, de classe alta) é a “norma”, já o artesanato é (com sorte) o “novo normal”. Mesmo assim, não existe termo de comparação entre eles.

Os exemplos são muitos. Mas vira e mexe um “acidente” de proporções globais tem a capacidade de escancarar essas diferenças, que preferimos, em geral, jogar debaixo do tapete. Períodos de guerra fazem isso com as pessoas, que passam a reconsiderar suas verdades. Grandes acidentes naturais – terremotos, maremotos, furacões – também têm a potencialidade de fazer com que nos movamos um pouco do terreno seguro das nossas confortáveis certezas. Mas só um pouco, pois a história mostra como, passado o perigo e a insegurança, lá estamos nós de novo habitando nossas velhas e boas verdades. Algo pode mudar, mas tudo deve permanecer basicamente como está. E esse é o terreno fértil onde se move o “novo normal”. O parâmetro é dado pelo “normal” – que continua lá, resistindo. O “novo do normal” é a cereja do bolo, a fita que envolve o presente.

Foi assim com a gripe espanhola que em dois meses assaltou a imprensa, a imaginação e a realidade das pessoas. Calcula-se que a pandemia tenha atingido, direta ou indiretamente, cerca de 50% da população mundial e levado à morte de 20 milhões a 50 milhões de pessoas: 8% ou 10% dela na faixa dos jovens. Os números eram maiores do que os da Primeira Guerra Mundial, que acabou mais ou menos na mesma época, no dia 11 de novembro de 1918, vitimando entre 20 milhões a 30 milhões de pessoas, entre soldados e população civil. No entanto, quando o “incidente” foi embora, tudo voltou ao “normal”, ou a um “novo normal”, levemente alterado por alguns hábitos de higiene, que também se perderam pelo caminho. 

E eis que 2020 começou e há de terminar com a chegada desse micro-organismo que não é nem ao menos visível a olho nu. E o impossível aconteceu: as rotinas foram suspensas pelo planeta afora e até segundo aviso. Nessas horas em que o medo e a agonia falam mais forte, tendemos mesmo a sonhar melhor e a desenhar o futuro de forma mais solidária. Isso é o que a pesquisadora Rebecca Solnit chamou de “banalidade do bem”. Em momentos de crise, nossa consciência cívica aumenta e o sentimento de pertencimento social também. Passamos a achar que somos uma nação só, irmanada pela mesma realidade.

Nessas horas em que o medo e a agonia falam mais forte, tendemos mesmo a sonhar melhor e a desenhar o futuro de forma mais solidária

E é nessas horas que ao imaginarmos o nosso “normal”, o projetamos para os demais, repaginando-o como um “novo normal”. Somos, porém, um país em que mais de 20% das pessoas vivem em moradias de um cômodo, onde residem quatro ou mais habitantes. No Brasil, 50% das casas não têm acesso ao esgoto sanitário. Trinta e três milhões de brasileiros não contam em seus lares com abastecimento de água confiável. E, mesmo assim, definimos que no “novo normal” – que não tem tempo ou espaço – não viajaremos tanto, não compraremos tantas roupas, não seremos tão consumistas, cozinharemos (quando der) e até arrumaremos a casa. A pergunta, mais uma vez, é a seguinte: “novo normal” para quem?

Há quem diga também que “novo normal” tem a ver com conectividade. Com a maneira como acionamos a energia e nos comunicamos e nos libertamos a partir da tecnologia; grande quimera do século 20. A PNAD Contínua de TIC de 2018 mostrou, todavia, que uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet. Portanto, essa opção ao “novo normal”— “não vou mais estar online o dia todo” – corresponde a que realidade?

Muitos têm defendido a ideia de que esses tempos de pandemia romperam com o preconceito contra a educação remota. Ou seja, que a pandemia nos ensinou a aprender de dentro de casa e no recanto do lar. No entanto, é essa mesma crise na saúde pública que tem acentuado e ampliado as iniquidades na área da educação. Existem alunos que têm seu próprio computador, estudam na calma do seu quarto, e dispõem de toda uma família estruturada pronta para dar amparo nesse momento de “novo normal” que, sem dúvida, atrapalhou (e muito) a rotina dos pais e mães. Não discordo ou discuto. Para eles, o “novo normal” é um estado quiçá passageiro. Mas o que dizer de famílias que receberam o material impresso e organizado bravamente pelas escolas públicas, mas não têm lápis e borracha em casa? Muito menos acesso à internet? Nesse caso vive-se mais do mesmo “normal”.

O conceito de “novo normal” também parte e tem como patamar silencioso, o conceito romântico e idealizado de lar, que faz todo sentido para um determinado grupo social. Não para todos. É por isso que durante a pandemia, o “novo normal” foi também o aumento do feminicídio e do infanticídio, mesmo que com uma imensa subnotificação. E o mais estarrecedor nesse “novo normal” é, justamente, “o velho normal”. Quando existe a denúncia, ela recai sempre por sobre parentes, pais, tios, mães e amigos próximos. O lar e a casa podem ser, portanto, lugares tão perigosos como quaisquer outros.

Não sou contra prognósticos otimistas. Só desconfio deles. Também torço para que saiamos desse estado de anomia, diferentes. Tomara que esse “novo normal” resulte num país mais generoso, plural, inclusivo, cidadão e, sendo assim, republicano. Esse deveria ser o nosso “normal”; mas aceito se a regra mandar que ele seja um “novo normal”.

Se o ‘novo normal’ for uma espécie de estado de exceção, ele (então) confirma a regra. Se não for, será mais uma convenção conservadora

Homens e mulheres são seres classificadores. Classificam para assim se sentirem seguros nem que seja num “novo normal”. Por isso damos nomes aos planetas, aos animais, aos vírus, aos países, às doenças e a nós mesmos. Só dessa maneira nos sentimos plenos e de posse do controle.

Penso que provérbios são peças de linguagem feitas para iludir. Muitas vezes os citamos sem termos certeza do significado. Vou evocar um por aqui: “A exceção confirma a regra”. Se o “novo normal” for uma espécie de estado de exceção, ele (então) confirma a regra. Se não for, se tiver vindo para ficar, será mais uma das nossas convenções conservadoras que pretendem manter, não revolucionar.

Afinal, e como diz Caetano Veloso num dos versos de “Vaca Profana”, “de perto ninguém é normal”. Quem sabe o “novo normal” faça sentido apenas de longe. Numa distância que acomoda; não incomoda.

Bem-vindos ao velho/novo normal. É hora de reconhecer, como poetou Carlos Drummond de Andrade, que “toda história é remorso”. 

Fonte: https://gamarevista.com.br/sociedade/de-perto-ninguem-e-normal-ou-o-novo-normal/?utm_medium=Facebook&utm_source=Social&utm_campaign=LivresGama&fbclid=IwAR1aSznodBNJFe2yWWQ3v6zeq8MDvcujvlOWZXYKM-ZKnFBRdzb7EGkPe5s

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