Covid 19 e as desigualdades sociais
Coronavírus: uma pandemia que explicita desigualdades sociais
Egberto Siqueira
Os efeitos da pandemia do novo coronavírus e as ações voltadas ao combate da doença causada por ele, a Covid-19, pautaram importantes debates no Congresso Virtual UFBA 2020. Uma das questões mais recorrentes das discussões foi o aprofundamento das vulnerabilidades sociais em diferentes contextos, abarcando desde o acesso desigual aos serviços de saúde entre os municípios até medidas que acentuam a discriminação em determinadas camadas da população brasileira.
Já na abertura, a pandemia foi o tema da sessão “O Brasil no século XXI: conhecimento e políticas públicas no enfrentamento da Covid-19”, que teve a participação da presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade, e dos professores Eduardo Mota e Glória Teixeira, do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA).
A mesa destacou os diferentes impactos causados pela pandemia nos municípios, em especial aqueles localizados na região Norte do Brasil, e o reflexo das vulnerabilidades sociais para a saúde da população. “Há municípios em que as pessoas precisam percorrer, em média, 240 quilômetros para chegar ao hospital e ter acesso a um leito de UTI”, observou Nísia Trindade.
Segundo a presidente da Fiocruz, é preciso que haja maior integração entre o sistema de vigilância e a atenção básica em saúde, com uma atuação mais efetiva dos agentes comunitários de saúde nesse processo. Ela também chamou atenção para as ações adotadas pelos estados brasileiros, a exemplo das restrições às aglomerações, e para a importância do isolamento social para conter o avanço da pandemia. “O conhecimento científico nos mostra que, na ausência de vacina e de medicamentos comprovadamente eficazes, são essas medidas que têm demonstrado o melhor resultado”.
Em debate com Trindade, o epidemiologista professor do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da UFBA Eduardo Mota apontou a necessidade de mais investimentos nas áreas de saúde e educação. Ele criticou o processo de desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e das instituições públicas de ensino nos últimos anos. “As nossas instituições de ensino e pesquisa são as responsáveis pela produção do conhecimento e inovação neste país, algo que se mostra absolutamente essencial em um momento como este”, observou.
Para a também epidemiologista e pesquisadora do ISC Glória Teixeira, além do fortalecimento do SUS, a pandemia também abre uma oportunidade para se discutir sistemas universais em todos os países do mundo. “A pandemia está trazendo à tona o problema da desigualdade, e eu espero que a sociedade brasileira e a humanidade vejam esses exemplos para a construção de um mundo menos desigual e mais a favor da população”.
Trabalhadores de saúde
No Brasil, cerca de 3,5 milhões de trabalhadores de saúde atuam na prestação de serviços, desde a atenção primária até os serviços especializados e hospitalares da rede pública e privada. Durante a pandemia, o papel desses profissionais ganhou destaque, não apenas pela importância, mas também pela vulnerabilidade à qual estão expostos.
O assunto foi o tema da mesa “Trabalhadores de saúde no contexto de pandemia”, apresentada por pesquisadores da Rede CoVida – Ciência, Informação e Solidariedade, uma iniciativa conjunta da UFBA e do Cidacs/Fiocruz, com foco na Covid-19. “Enquanto a maioria da população está em isolamento social, esses trabalhadores estão na linha de frente com riscos”, destacou Isabela Cardoso, diretora do ISC e membro da rede.
A sessão alertou para um cenário de desigualdades até mesmo entre os trabalhadores da saúde, principalmente para profissionais da enfermagem, por causa da divisão técnica e social do trabalho. Segundo o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), 85,1% desses trabalhadores são mulheres; destas, 53% são negras. E são elas as mais expostas aos riscos de contaminação.
“Essas profissionais estão submetidas a extensas jornadas de trabalho e a um maior cansaço físico e mental, o que pode propiciar erros, inclusive, no cuidado de lavagem das mãos e no uso adequado de EPI”, observou Ednir Assis Souza, professora da Escola de Enfermagem da UFBA.
A mesa também contou com a participação da professora Catharina Matos e do pesquisador Erick Lisboa, ambos do ISC, que apresentaram ações e propostas para os trabalhadores de saúde no enfrentamento da pandemia.
População indígena
O avanço da Covid-19 também tem evidenciado a situação de vulnerabilidade dos indígenas no Brasil. Segundo o boletim epidemiológico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), divulgado no sábado (23), são 760 casos confirmados e 35 mortes no país até a última atualização. As condições de vida dessas populações foram debatidas na mesa “Covid-19 e os povos indígenas: impasses jurídicos, ataques institucionais e formas de enfrentamento coletivo”, apresentada por lideranças dos povos Tuxá (Rodelas – BA), Xucuru-Kariri (Palmeira dos Índios – AL), Tapeba (Caucaia – CE) e Pankararu (Tacaratu, Petrolândia e Jatobá – PE).
Durante a sessão, eles criticaram a atuação do governo federal e as medidas administrativas adotadas pelo Ministério da Saúde. “O modelo trazido para contenção da pandemia em nossos territórios é o mesmo dos centros urbanos. São ações que ferem direitos e princípios básicos dos povos indígenas”, observou Maynamy José Santana, representante dos Xucuru-Kariri. A discussão também abordou questões como as dificuldades para gerenciamento do auxílio emergencial e o aumento desenfreado nos preços dos alimentos nas cidades próximas às aldeias.
Para o advogado e ativista Weibe Tapeba, a vulnerabilidade dos povos que não têm terras demarcadas é ainda mais acentuada devido à proximidade com os municípios e, portanto, ao maior contato com grupos sociais externos. “Os povos indígenas que já apresentaram casos de notificação e mortes estão, justamente, em comunidades com maior fragilidade em relação à gestão do território”, enfatizou.
O coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá, também pediu mais celeridade na aprovação do Projeto de Lei 1142/20, que contém medidas emergenciais para atender a povos indígenas e quilombolas durante a pandemia, assim como a retirada do artigo que autoriza a permanência de missionários em territórios de índios isolados. “Queremos que sejam excluídas as alterações apresentadas pela bancada governista e defendemos a volta do projeto no modelo que foi construído de forma democrática”.
Outras discussões sobre a temática indígena também foram destaque nas mesas “Povos indígenas e desafios frente à covid-19”, “Epidemiologia, cultura e saúde das populações negra e indígena” e “Covid-19 e saúde dos povos indígenas: as emergências na saúde indígena em comunidades na Bahia”.
Quilombolas
Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ, o Brasil tem cerca de 6 mil comunidades remanescentes de quilombos, o que representa um contingente de 16 milhões de pessoas. A vulnerabilidade social e epidemiológica dessas populações no enfrentamento da pandemia foi o tema de discussão da mesa “Vulnerabilidades: populações quilombolas do Norte e Nordeste do Brasil diante da pandemia de covid-19”, apresentada pelos professores Hilton Silva (UFPA), Edna Araújo (Uefs) e Leny Trad (ISC/UFBA), com mediação do pesquisador Alder Mourão (UFPA).
Os pesquisadores destacaram o contexto de extrema pobreza das comunidades, como altos índices de desemprego, ausência de condições mínimas de saneamento e, principalmente, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Segundo a professora Edna Araújo, são velhos problemas que se agravam em um cenário de crise sanitária. “Essa pandemia se refere a uma doença que é altamente grave, que necessita de UTI, e as cidades que ficam mais próximas dessas comunidades quilombolas geralmente tem uma estrutura de atendimento muito limitada”, avaliou.
O professor Hilton Silva também alertou para o número de casos de Covid-19 em quilombos no Pará e a falta de acompanhamento necessário. “Já temos contabilizados 12 mortes em áreas quilombolas no estado e mais de 160 suspeitas que não têm assistência médica até o momento”. Ele também criticou a falta de ações específicas para contenção e controle da pandemia entre as populações quilombolas em todo o país.
Para a professora Leny Trad, a situação requer políticas públicas que reconheçam as comunidades remanescentes de quilombos e que estejam dispostas a ouvir as demandas diretas dessas populações. “A gente precisa pensar formas para enfrentamento da vulnerabilidade tanto no contexto desta pandemia como para além dela, numa perspectiva que não seja autoritária, de que nós levaremos as respostas e as soluções”.
A temática quilombola também esteve presentes nas mesas “O SUS, o trabalho dos assistentes sociais na saúde e as comunidades quilombolas no contexto da pandemia/covid-19” e “Pesquisa interinstitucional em foco: comunidades quilombolas em risco”.
População de rua
“Os estigmas são muito violentos e a indiferença é o que mais nos faz sofrer”. O desabafo é de Renata Santos, coordenadora estadual do Movimento de População em Situação de Rua, e uma das convidadas da mesa “Não somos invisíveis: direito à saúde da população em situação de rua antes, durante e pós covid-19”.
A sessão discutiu experiências de coletivos sociais, a atuação da universidade e a busca por políticas públicas mais inclusivas, com a participação dos professores Joilda Nery (ISC/UFBA), Cleber Cremonese (ISC/UFBA), do nutricionista Osiyalle Rodrigues e de Tricia Calmon, coordenadora do programa “Corra para o Abraço”, da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia (SJDHDS).
Uma pesquisa do Projeto Axé, feita em parceria com a UFBA e outras instituições, aponta que o número de pessoas em situação de rua pode chegar a 17 mil em Salvador. E é nesse cenário de marginalização e pandemia que foi criado o “Nós nas Ruas”, projeto que já distribuiu mais de 2.500 kits de higiene e alimentos para pessoas em situação de rua. A ação é desenvolvida na cidade por professores e estudantes do ISC/UFBA, com o apoio do Movimento de População em Situação de Rua, programa “Corra para o Abraço” e a Universidade Estadual da Bahia (Uneb).
Além das doações, são realizadas orientações e atividades de treinamento de saúde voltadas para profissionais que atuam no atendimento dessa população. “Enquanto o poder público não chega, nós buscamos dar condições mínimas para que essas pessoas consigam se prevenir contra a Covid-19 em um contexto completamente adverso, que é o cenário das ruas”, destacou a professora Joilda Nery, idealizadora da campanha.
Juventude negra
Dar voz a jovens negros e compartilhar experiências sobre ações desenvolvidas nas próprias comunidades durante a pandemia. Esse foi o objetivo da mesa gravada “Juventude negra e covid-19: propostas de ações diretas no combate aos efeitos socio-raciais da crise”. A sessão foi apresentada por membros do Prosseguir, programa de ações afirmativas coordenado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) em parceria com a UFBA.
“Como vamos falar de distanciamento social em casas de dois ou três cômodos em que moram até oito pessoas? Elas moram em conglomerados, dividindo os mesmos banheiros, sem água para lavar as mãos e sem dinheiro para se alimentar”, afirmou Thayana Victória Silva, estudante de Medicina da Uneb, durante a discussão.
Entre as iniciativas mostradas pelo grupo, está a campanha liderada por Tasciano Santos Solari, estudante de Geografia do Instituto Federal da Bahia (IFBA), que distribui alimentos e kits de higiene para moradores da região de Massaranduba, em Salvador. “A pandemia ajudou a escancarar o que o poder público nunca fez pela sociedade em relação à saúde pública, à educação e à alimentação”, avalia. A ação incluiu ainda a entrega de máscaras de tecido confeccionadas por membros da própria comunidade.
Para Ariana Silva (UFBA), mestra em Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher (Neim/UFBA), as iniciativas partem do entendimento de como as desigualdades sociais são aprofundadas pelo racismo e o impacto que isso traz à vida de pessoas negras e pobres, principalmente em períodos de crise, como a atual pandemia. “São ações que ajudam no básico, mas sem o básico a gente não consegue dar um passo maior”.
Fonte: http://www.edgardigital.ufba.br/?p=17183