O trabalho remoto e as leis

 

 

Qual é a legislação aplicável ao novo "anywhere office"?

Por Livia Rodrigues Leite - Advogada Especializada em Direito e Processo do Trabalho. Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho e Previdenciário pela FGV. Graduada pela FACAMP. 

O trabalho remoto é uma tendência do mercado que vem se desenhando há algum tempo e que se intensificou após a pandemia do novo coronavírus. Inesperadamente, as empresas tiveram que se adaptar à nova realidade imposta pela necessidade de manter o isolamento social e, mais do que uma necessidade, passou a ser um dos itens de maior desejo dos empregados. 

O home office foi amplamente implementado e o regime de teletrabalho, disciplinado pelo artigo 75-A e seguintes da CLT, ganhou maior espaço de aplicação. Se antes as empresas eram resistentes a esta forma de trabalho, justamente por se tratar de algo novo trazido pela lei 13.467/2017, agora o que se observa é a resistência dos trabalhadores em retomar atividades presenciais. 

A lei 13.467/2017 completou 4 (quatro) anos de sanção presidencial em julho/2021 e, mesmo após esse tempo, ainda há muitas dúvidas sobre o que é teletrabalho e como pode ser implementado, além dos riscos que pode gerar ao empregador, o que se intensificou com a disseminação do home office. 

De maneira geral, a diferença primordial entre as suas hipóteses, isto é, de teletrabalho e de home office, consiste no fato de que o teletrabalho precisa estar previsto no contrato de trabalho, além de que está fundamentado na lei celetista. 

O teletrabalho, portanto, não se restringe ao trabalho desempenhado de forma remota, assim como também o é o home office. Ele apresenta certas exigências de acordo com o que a nova redação da CLT determina. A título de exemplo, essa modalidade de prestação de serviços é aquela realizada preponderantemente fora das dependências da empresa, com a utilização de meios telemáticos, desde que não constitua trabalho externo. 

Por sua vez, o home office não foi algo inovador trazido pela reforma trabalhista ou pela pandemia do novo coronavírus. De acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho, desde 2011 o artigo 6º da CLT tratava do trabalho desempenhado na residência do empregado, o qual não deve apresentar nenhuma distinção entre aquele prestado nas dependências do empregador, desde que presentes os pressupostos da relação de emprego. 

No home office não há qualquer exigência específica de previsão contratual tal como no teletrabalho, podendo ser estabelecido pelas políticas internas da empresa. Nesse sentido, será do empregador o encargo de estipular as regras do trabalho, de modo que cada empresa poderá ter seu regime próprio. 

Em ambas situações, empregados vêm percebendo como vantajoso o trabalho remoto em relação ao modelo presencial. Eles argumentam que experimentaram uma flexibilidade de horários que antes não era possível, o que os fez poder conciliar melhor responsabilidades profissionais e pessoais, além de poder passar mais tempo com a família. Além disso, defendem o ganho de autonomia em relação ao seu tempo, bem mais precioso atualmente. 

Se do lado dos empregados esse foi o ganho experimentado, do lado das empresas houve enorme economia financeira com estrutura física, seja com equipamentos e maquinários, seja com a redução de contas e aluguéis. E mais do que isso, de acordo com estudo realizado pela Fundação Dom Cabral em parceria com a Grant Thornton e a Em Lyon Business School com 1.075 respondentes, no período de 15 a 29 de março1, a produtividade do trabalho remoto vem sendo maior se comparada ao trabalho presencial. 

Delineado esse contexto, as empresas foram além e passaram a oferecer vagas de emprego que podem ser desenvolvidos de qualquer lugar do mundo, o que vem fazendo brilhar os olhos dos candidatos e empregados. É o chamado "anywhere office". 

Essa novidade não se confunde com o teletrabalho, pois ainda não encontra respaldo na lei, tampouco precisa ser estabelecida expressamente no contrato de trabalho. A mais importante diferença consiste no fato de que no "anywhere office" não há apenas preponderância da prestação de serviços fora da empresa, mas sim exercício do trabalho de forma integralmente distante. Na mesma linha de raciocínio, esse modelo vai além do home office, pois pressupõe que o empregador não pode exigir do empregado certa disponibilidade, ou seja, que o empregado não será chamado a comparecer presencialmente nas dependências da companhia. 

Assim, abre-se espaço para os casos em que o empregado se encontrará não só em cidade distinta a do empregador, mas até mesmo em país diverso. Afinal, o "anywhere office" não impede que o empregado exerça suas atividades em território nacional, internacional, ou, até mesmo, em ambos. Diante disto, surgem as dúvidas: nestas hipóteses, estaríamos diante de um contrato internacional de trabalho? Qual será a lei aplicável a esta relação empregatícia já que coexistiria em ordenamentos jurídicos distintos? 

As respostas aos questionamentos não são prontas e devem ser construídas caso a caso, de modo que aqui não pretendemos esgotar o assunto, mesmo porque é delicada a questão da legislação aplicável a uma relação jurídica e carece de muito debate, sobretudo quando se trata de contrato de trabalho que tangencia outras áreas do direito, tal como previdenciário e tributário, bem como permite discussões sobre equiparação salarial, isonomia entre empregados, hipossuficiência do empregado e direito coletivo. 

De toda forma, para colocarmos o tema à reflexão, inicialmente é preciso recorrer ao Direito Internacional Privado e à análise dos elementos de conexão existentes, que nada mais são do que os aspectos presentes no contrato de trabalho que o tornam internacional. 

Para as hipóteses em que se exige o deslocamento espacial do empregado, há normas que conduzem à solução do conflito de aplicação de regras existente, tais como Código de Bustamante, Convenção de Roma, Convenção do México e Tratado de Assunção. 

São indicados pelo Direito Internacional Privado os seguintes os elementos de conexão: (i) local da celebração do contrato (lex loci actum); (ii) local da execução do contrato (lex loci executionis); (iii) lei da jurisdição (lex fori); e, (iv) nacionalidade das partes. 

Nesta esteira, considerando que o trabalho "anywhere office" estaria sendo executado em outro país, é possível concluir que seria um contrato internacional. 

De acordo com o teor das normas do Direito Internacional Privado, a regra da solução dos conflitos das leis aplicáveis oscila entre o local da execução do contrato e a autonomia da vontade das partes. E, neste sentido, de acordo com o artigo 198 do Código de Bustamante2 (decreto 18.871/1929), Tratado Internacional ratificado pelo Brasil, a lei aplicável seria a do local de prestação de serviços. 

Tal entendimento, todavia, não é compartilhado pela jurisprudência brasileira, na medida em que as decisões judiciais, em sua maioria, elegem a lei brasileira ou aquela mais favorável ao empregado, regramento que também é admitido como critério para fixação da lei aplicável (princípio da norma mais benéfica). 

Aliás, os Tribunais Brasileiros, não raras as vezes, fundamentam as suas decisões de conflito de normas internacionais no princípio do centro de gravidade, como chamado no direito norte-americano, most significant relationship, que estabelece o afastamento do Direito Internacional Privado quando, excepcionalmente, observadas as circunstâncias do caso, verificar-se uma ligação muito mais forte com outro direito. 

Estes posicionamentos jurisprudenciais ganharam força, inclusive, após o cancelamento da súmula 207 do C. TST, que determinava que deveriam ser aplicados os dispositivos da lei do local de prestação da obrigação. 

Segundo Amauri Mascaro Nascimento3, mencionada súmula foi construída e pacificada no intuito de proteger os trabalhadores estrangeiros que prestavam o labor no Brasil, de modo que não seria analogicamente aplicada aos casos reversos, isto é, a aqueles empregados brasileiros contratados para exercício da atividade no exterior, razão pela qual teve seu cancelamento decretado. 

Em contraponto, pode-se levar como premissa que o contrato de trabalho "anywhere office" não pode ser considerado como internacional, mas um contrato de trabalho brasileiro, porém sujeito às leis do país de origem, em que pese não haja determinação quanto ao local de exercício do trabalho. 

Isto porque é possível entender a questão da liberdade de escolha do lugar de trabalho como um benefício concedido ao empregado, previsto expressamente ou não no contrato de trabalho, mas, no mínimo, regulamentado pelas normas e políticas internas da empresa. 

Parte-se do pressuposto, nestes casos, de que a materialidade do trabalho pode ser exercida de qualquer lugar efetivamente, o que não acontece em casos em que há conflito de normas aplicáveis devido à necessidade de prestação de serviços naquele local específico. 

Assim, se cabe exclusivamente ao empregado a escolha do local de prestação de serviços, seria justo imputar à empresa o ônus de arcar com a aplicação de uma lei diversa daquela que se pretendia, no caso a brasileira? 

Não obstante os pontos trazidos acima, há quem defenda que sim, pois, de acordo com artigo 2º da CLT, o empregador arca com os riscos da atividade econômica e, tendo permitido ao empregado a escolha do local de prestação de serviços, deverá se responsabilizar com eventuais consequências negativas. 

Feitas estas colocações, o que se percebe é que o dinamismo social, indubitavelmente mais veloz do que a atualização das regras que acompanham a sociedade, mais uma vez deu espaço a uma lacuna na legislação, a qual, todavia, está em vias de ser preenchida, com a iminência da alteração da CLT por meio do PL 4.931/2020. 

Este projeto visa alterar determinados dispositivos da CLT, mais especificamente os artigos 75-A e seguintes, que justamente tratam do teletrabalho, além de incluir o artigo 75-I que versa exclusivamente sobre o teletrabalho transnacional. 

De acordo com a nova disposição celetista, em seu parágrafo 2º, em casos de execução de trabalho em outra localidade, serão aplicáveis as leis do local da prestação de serviços, sendo este conceito interpretado como o local do estabelecimento da empresa que mantém o vínculo: 

"Art. 75-I. Considera-se transnacional o teletrabalho quando o empregado estiver em país diverso do qual se localiza o estabelecimento da empresa ao qual esteja vinculado. 

§ 2º No caso de teletrabalho transnacional, aplicar-se-ão as leis do local da prestação de serviços, assim entendido como sendo o local do estabelecimento da empresa ao qual o empregado se encontrar vinculado."  

Mais do que isso, a proposta legislativa propõe alteração do artigo 651 da CLT, com vistas a determinar inclusive o foro de eventual reclamação trabalhista nestas hipóteses de trabalho transnacional: 

"Art. 651 (...) 

§ 4º Na hipótese prevista no § 6º do art. 75-C desta

Consolidação, é assegurado ao empregado em teletrabalho apresentar reclamação no foro do estabelecimento da empresa a que foi vinculado ou no local de sua residência no Brasil. 

§ 5º Na hipótese de teletrabalho transnacional, é assegurado  ao empregado apresentar reclamação no foro do estabelecimento da empresa a que foi vinculado no Brasil." 

Diante disto, podemos concluir que o conflito de normas aplicáveis em casos de contratos de trabalho "anywhere office" estará solucionado? 

Ora, enquanto não se tem resposta a esta pergunta, o que certamente se pode afirmar é que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não aborda estes aspectos atrelados às novas formas de prestação de serviços. 

Portanto, o tema deve ser ponto de atenção para as empresas, o que não exime o Poder Legislativo de tratar da questão com brevidade a fim de regulamentar estas situações e conferir segurança jurídica às partes. 

Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalha-trabalhista/349701/qual-e-a-legislacao-aplicavel-ao-novo-anywhere-office 

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